"A música de Esteves é muito bela, tem um carácter muito vocal"

Sob a direcção de Graham O"Reilly, o Ensemble Européen William Byrd apresenta hoje, na Academia das Ciências, um programa dedicada a João Rodrigues Esteves, um dos compositores mais importantes do barroco musical português

a Graham O"Reilly tem uma paixão pela música anterior a 1750, mas não se contenta com o repertório consagrado pelo mainstream. Há vários anos que este musicólogo, cantor e maestro australiano a residir em França desenvolve uma intensa pesquisa em busca de obras-primas de países e regiões como a Inglaterra, a Boémia, a Polónia, Portugal ou os Países Nórdicos. Depois, coloca-as no contexto da tradição musical do centro da Europa (Itália, França e Alemanha) através das interpretações do seu Ensemble Européen William Byrd. Este agrupamento, especializado na música vocal renascentista e barroca, dará esta noite, às 21h, um concerto na Academia das Ciências, em Lisboa, inserido no ciclo de música antiga da Gulbenkian. O programa será inteiramente preenchido com música de João Rodrigues Esteves (1700-c.1751), um dos mais importantes compositores portugueses do século XVIII, e retoma as obras registadas em disco no âmbito da edição de 2005 do Festival de Ambronay, centrada na música dos países ibéricos e das suas antigas colónias na América Latina. "Gostamos de programas pouco usuais e de os pôr em paralelo com os compositores consagrados", contou Graham O"Reilly ao P2 em conversa telefónica. "No século XVII cada país tinha um estilo próprio, mas no século XVIII passou a dominar o estilo italiano, que foi assimilado de maneira diferente conforme as regiões. Acho muito interessante percorrer estas tradições, ver os pontos de contacto e as divergências." O Ensemble William Byrd já tinha abordado pontualmente a música portuguesa - com participações nas Jornadas Gulbenkian de Música Antiga e no Festival de Mafra - mas o projecto Rodrigues Esteves foi o mais ambicioso. "Estivémos em Lisboa há sete anos e pedi a Rui Vieira Nery mais música portuguesa. Ele enviou-me o volume de Esteves [edição da Portugaliae Musicae] e foi uma descoberta. Começámos depois a procurar outras peças como o Miserere a três coros, e fizemos um programa completo que demos a ouvir em Ambronay." O CD que se seguiu, editado pelo próprio festival, inclui três primeiras gravações mundiais (o notável Miserere a três coros, a Lamentação de Jeremias a oito vozes e o motete Cum turba plurima), além de obras já conhecidas como o Stabat Mater e a Missa a oito vozes.
Voz individual
O"Reilly acha que a música de Esteves está "muito bem escrita" e representa uma "fascinante combinação" entre a influência italiana e alguns traços ibéricos. "Esteves foi um dos compositores enviados para Roma por D. João V para aprender com os mestres italianos e mandava regularmente peças para Portugal. Por exemplo, o seu Stabat Mater é muito italiano, é possível que tenha sido influenciado pela audição do Stabat Mater de Alessandro Scarlatti. Mas noutras peças é um compositor português ou, se quisermos, ibérico, sobretudo nas progressões harmónicas. Assimilou os modelos italianos do stile concertato e do barroco colossal romano mas os seus mestres em Roma não lhe terão dito: vais ter de compor como nós!", acrescenta o maestro. "Esteves tem uma voz individual. A sua música é muito bela, tem um carácter muito vocal e temos muito prazer em interpretá-la Curiosamente, quando olhamos para a página escrita não parece muito interessante, mas quando cantamos é uma descoberta, ganha uma nova luz."
Rodrigues Esteves estudou em Roma entre 1719 e 1726, ocupando no regresso a Lisboa o lugar de professor no Seminário da Patriarcal, a principal escola de música antes da fundação do conservatório. Na sequência do grande investimento na renovação das estruturas musicais da corte e da promoção da Capela Real a Patriarcal (tomando como modelo o Vaticano), D. João V financiou também o aperfeiçoamento em Roma de Francisco António de Almeida e António Teixeira. O"Reilly já dirigiu música sacra de Almeida - "outro compositor excelente, com um estilo similar" -, mas até agora ainda não abordou nenhuma peça de Teixeira.
Três coros
Constituído por 12 cantores, o Ensemble William Byrd usa geralmente uma voz por parte nas suas interpretações. "O uso do coro é uma coisa mais tardia. Naquele tempo não era comum ter duas pessoas a cantar a mesma parte lado a lado. Em Roma, no século XVII, se havia oito pessoas a cantar a mesma peça, estas eram separadas em dois grupos, um era colocado à direita, outro à esquerda, formando dois quartetos solistas." Esta disposição tem sido aplicada pelo grupo à música de Rodrigues Esteves e será mantida no concerto de Lisboa. "Vamos até mais longe porque a Missa é para dois coros mas vamos cantá-la com três. O terceiro coro junta-se uma vez a um, outra vez a outro. É esta a maneira mais adequada de distribuir as 12 pessoas sem as dispor como se fossem um coro do século XIX." O maestro refere que assim se obtém "uma estrutura contrapontística mais clara e uma maior individualidade das vozes no todo. "A harmonia do conjunto é muito importante mas cada voz deve contribuir com a sua personalidade e intensidade emocional individual."
Deste modo, a interpretação da música de Esteves será uma solução de compromisso entre as práticas de execução romanas (na disposição espacial dos cantores) e ibéricas na escolha dos instrumentos do baixo contínuo. No concerto da Academia das Ciências esta secção, responsável pelo suporte harmónico, será mais reduzida do que no CD, contando apenas com harpa, arquialaúde, violone e órgão. "Na Capella Giulia [Capela da Basílica de São Pedro de Roma] não se usava harpa, mas usava-se o violone. Em Portugal era comum a harpa no século XVII e início do século XVIII mas não sabemos até que ponto a imposição dos modelos italianos por D. João V a aboliu da Capela Real. No entanto, opto por a incluir devido à sua grande beleza sonora."
A guitarra portuguesa
Nos seus próximos concertos o Ensemble William Byrd continuará a dar atenção a compositores esquecidos mas irá também começar a preparar obras de dois consagrados com vista às efemérides de 2009: os 250 anos da morte de Handel e os 400 anos do nascimento de Purcell. Quanto à música portuguesa o maestro menciona Estevão de Brito (1575-1641), uma das suas mais recentes descobertas, e fala de um desejo mais inesperado. "Quando vou às casas de fado quase me esqueço da voz e só presto atenção ao som maravilhoso da guitarra portuguesa. Gostava de a incluir num projecto, mais fantasioso do que musicológico."

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