São essas qualidades - inteligência, elegância, modernidade - que reencontramos na segunda longa-metragem de Wright, adaptando o romance de Ian McEwan sobre uma paixão destruída por um mal-entendido na Inglaterra da II Guerra Mundial. E tanto o guião do dramaturgo Christopher Hampton como a encenação fluida e vistosa de Wright repetem a proeza de fazer cinema que nem por um momento trai a sua origem literária mas nunca se resume à simples ilustração visual de um livro.
E, contudo, as armadilhas estão lá todas. A "expiação" do título é o "mea culpa" de Briony Tallis, que conhecemos na primeira imagem do filme com apenas 13 anos de idade a terminar a sua primeira peça para ser representada com os primos numa "soirée" familiar na sua casa de campo, e que nos abandona nas últimas imagens (sob os traços de Vanessa Redgrave), idosa escritora celebrada que acaba de publicar o seu derradeiro romance, intitulado "Expiação". Tudo o que se conta nas duas horas que medeiam entre ambas é que se conta no romance: o relato autobiográfico da tragédia que a adolescente precipita nessa noite fatal na província inglesa e as suas consequências, cinco anos mais tarde, já em plena II Guerra Mundial.
Mas esse relato autobiográfico, mediado pela escrita de Briony de que Wright se faz câmara omnisciente, incorpora elementos ficcionais, numa espécie de "compensação" criativa pela tragédia que não se pôde ou soube evitar. A inteligência de Hampton e Wright está toda no jogo limpo que faz com o espectador sobre os múltiplos níveis de leitura e pontos de vista de um mesmo acontecimento, jogando ao mesmo tempo com o lugar-comum superficial do melodrama romântico e a profundidade dos vários níveis de leitura possíveis, numa encenação que nos recorda o clássico "A Amante do Tenente Francês" (1981), de Karel Reisz.
Claro que "Expiação" não é outra "Amante do Tenente Francês": nem Wright é Reisz, nem Keira Knightley é Meryl Streep nem James McAvoy é Jeremy Irons. É esse o problema central de "Expiação": é um filme demasiado enamorado da sua própria construção cinematográfica, demasiado consciente do jogo de espelhos que propõe e elabora. Está sempre a pedir-nos para o admirar - "olhem que bem que conto esta história, que bem que filmo" - mas nesse percurso perde de vista o seu objectivo final que é o de emocionar o espectador, revelando uma precisão quase gélida, meticulosamente calculada.
Depois de uma extraordinária primeira hora de quase insustentável tensão dramática resolvida com mão de mestre, revelando uma subterrânea e surda luta de classes através de detalhes subtil e minuciosamente apresentados, Wright perde-se na segunda metade do filme: o espantoso planosequência da praia de Dunquerque é por si só uma proeza técnica de notável impacto dramático que parece no entanto pertencer a outro filme, "travando" o curso da narrativa em nome de uma desnecessária demonstração de savoir-faire. E aos próprios actores, por muito bons que sejam, não é pedido mais do que uma representação em segundo grau dos arquétipos do melodrama romântico: a verdadeira "heroína" da história é Briony, a narradorademiurga que manobra as suas "personagens" tanto na vida real como na ficção, interpretada pela adolescente Saoirse Ronan como uma menina petulante e mimada e, já mulher, por uma Romola Garai penitente e apagada.
"Expiação" recupera à medida que embala em direcção ao seu final silenciosamente devastador, a que a presença imperial de Vanessa Redgrave empresta uma notável dignidade, mas o mal está feito e Joe Wright falha a grandeza por excesso de confiança. O que não invalida que este seja um bom filme que se sai com inteligência de um difícil caderno de encargos.