Há vida em Trafalgar Square (para além da coluna de Nelson)
Os suricatos de Tracey Emin, o céu de Anish Kapoor, o Iraque de Jeremy Doller, o navio de Yinka Shonibare, os néons de Bob & Roberta Smith ou o homem da rua de Antony Gormley? Resposta em breve, no quarto plinto.
a Não se sabe ainda se o plinto vazio em Trafalgar Square vai ser ocupado por um grupo de mamíferos do deserto do Kalahari, pelo nevoeiro cerrado de Londres, por um carro desfeito de matrícula iraquiana, por uma versão africanista do HMS Victory (o último navio do almirante Nelson), por um slogan anti-guerra em francês (a língua que em Trafalgar talvez tenha começado a perder uma guerra, além de uma batalha) ou pelo cidadão comum - eu, tu, ele, nós, vós, eles, pode vir a ser assim tão democrático. Mas já se sabe que, quer os ocupantes definitivos do quarto plinto sejam os suricatos de Tracey Emin, o céu de Anish Kapoor, o statement sobre o Iraque de Jeremy Doller, o navio dentro da garrafa de Yinka Shonibare, o faites l"art, pas l"amour de Bob & Roberta Smith ou o homem da rua de Antony Gormley, Trafalgar Square, a primeira praça pública de Londres, a capital simbólica do Império Britânico, nunca mais vai ser a mesma. Já havia vida para além da coluna de Nelson em Trafalgar Square - e até no quarto plinto, construído em 1841 para uma estátua equestre do rei Guilherme IV que nunca chegou a ser construída por falta de fundos. Mas tudo o que havia - o rei Jorge VI e os oficiais Charles Napier e Henry Havelock, duas lanças inglesas na Índia - contava a história (colonial e portanto politicamente incorrecta) do Império Britânico. Desde 1999, ano em que Londres iniciou um programa de ocupações temporárias do plinto, a história já é outra. E agora que a cidade se prepara para escolher o ocupante definitivo é mesmo o fim de uma era. Os trabalhos dos seis finalistas - Tracey Emin, Anish Kapoor, Jeremy Doller, Yinka Shonibare, Bob & Roberta Smith e Antony Gormley - divergem em tudo menos na vontade de substituir essa história por outra.
Cabe agora a um comité presidido por Sandy Nairne, director da National Portrait Gallery (que tem vista para Trafalgar Square), escolher qual das seis propostas apresentadas em Londres no início da semana merece contar a história da Inglaterra do início do século XXI. Tendo em conta o tipo de statement que pode ficar para a posteridade - o que é que os restos mortais de um carro destruído num ataque contra civis, no Iraque da pax americana, diz de construtivo sobre a Inglaterra? -, já não é uma escolha artística. É sobretudo uma escolha política.
Despojos de guerra
Já é possível ter uma ideia do que vai acontecer em cima do quarto plinto: desde terça-feira que as maquetas dos seis projectos podem ser vistas na National Gallery. Mas há peças que assumem outras proporções em tamanho real: o carro que Jeremy Doller quer pôr num pedestal, por exemplo. "Ainda não temos o carro, mas vamos ter - terá de ser importado do Iraque, porque é importante que se trate efectivamente de um despojo de guerra, de um carro destruído num ataque contra civis", explicou. The Spoils of War (Memorial for an Unknown Civilian) é, aliás, o título da peça proposta por este artista que ganhou o Prémio Turner em 2004 com Memory Bucket, um documentário sobre Crawford, a terra natal de George W. Bush. Já estamos a ver onde é que ele quer chegar: aos únicos troféus que a Inglaterra pode exibir da intervenção no Iraque. "A apresentação pública de despojos de guerra data pelo menos do fim do Império Romano", diz Doller. Até aqui, estamos no espírito das estátuas de Trafalgar Square. Acontece que este não é um memorial ao soldado inglês desconhecido: é um memorial ao civil iraquiano morto. "Nas notícias que vemos todos os dias na televisão, os carros substituíram os homens. Nunca vemos um corpo rebentado nas notícias sobre o Iraque: vemos carros rebentados."
É um discurso que se repete, com variantes, na peça de Bob & Roberta Smith (pseudónimo do artista Patrick Brill): Faites l"art, pas la guerre recupera o slogan anti-Guerra do Vietname da década de 60 (e é impossível não ler Iraque onde no passado se lia Vietname), mas transcreve-o em francês, uma língua que a Inglaterra começou a derrotar na Batalha de Trafalgar (em parte, é essa derrota que se comemora em Trafalgar Square). Além de um manifesto anti-guerra, é um manifesto futurista: Faites l"art, pas la guerre é uma instalação luminosa alimentada por hélices e painéis solares (resultado da colaboração de Bob & Roberta Smith com vários especialistas em energias renováveis) que tenta reposicionar a praça. "Actualmente, é um memorial ao passado militar do país. Pode passar a ser também um símbolo do futuro cultural da Inglaterra", argumenta.
Nelson numa garrafa
E também pode passar a ser um símbolo do aqui e agora de uma das cidades mais multiculturais do mundo, se Nelson"s Ship in a Bottle, de Yinka Shonibare, for o projecto vencedor. O artista inglês de origem nigeriana colocou uma réplica do HMS Victory dentro de uma garrafa, mas não uma réplica fiel: as velas do navio de Shonibare foram feitas com tecidos africanos. É uma maneira de ver Nelson com outros olhos: "A diversidade cultural de Londres é consequência involuntária do colonialismo. É irónico que Nelson tenha contribuído para vencermos a batalha da diversidade cultural." Que é também a batalha de Antony Gormley em One and Other, ao propor que o plinto seja ocupado por cidadãos comuns, voluntários para turnos de uma hora (ao fim de um ano, 8760 homens da rua já terão tido os seus 60 minutos de fama). "O plinto é uma maneira antiquada de separar a vida da arte. Eu quero o contrário: que a vida ocupe o espaço da arte", diz o artista (outro Prémio Turner, mas de 1995).
É sempre disso que se trata: de substituir os grandes heróis da história militar inglesa por outras entidades. Mais etéreas, no caso de Sky Plinth, de Anish Kapoor (cinco espelhos côncavos que reflectiriam o céu para usufruto dos transeuntes), ou mais concretas, no caso de Something for the Future, de Tracey Emin, que se propõe pôr no plinto um conjunto de suricatos, mamíferos do deserto do Kalahari que vivem em grupos altamente organizados: "Sempre que a Grã-Bretanha está em crise ou sofre uma perda - como a morte de Diana - o programa que a televisão emite a seguir é o documentário Suricatos Unidos." Bem nos parecia a mensagem para decifrar, qualquer que seja o projecto vencedor, era esta: a Grã-Bretanha está em crise.