Três Perguntas A... Mário Cesariny

"Há trinta anos teria resultados mais positivos em mim"

Como recebeu a notícia deste prémio?
Acho graça que seja a obra plástica, em vez dos poemas. Os surrealistas, em princípio, não aceitam prémios, acham que é uma maneira de a sociedade se desfazer dos remorsos. Mas também me lembro que o Max Ernst recebeu o Prémio da Bienal de Veneza. O Breton ficou muito zangado com ele, mas depois voltaram a ser amigos.

Porque é que a sua obra plástica é tão pouco conhecida?
Não vou a "cocktails". Não vou a lado nenhum onde essas coisas se tramam. Durante 30 anos ou mais, isto esteve nas mãos do senhor José-Augusto França, que era director da [revista] Colóquio Artes, da Gulbenkian, do senhor Fernando Azevedo e do Vespeira, que era o responsável pelas artes gráficas, também na Gulbenkian. A esses, eu chamo o Grupo Surrealista da Gulbenkian. Fizeram todo o possível para abafar, calar tudo o que não eram eles. Chegaram a ter 40 obras do Cruzeiro Seixas [guardadas], sem lhes dar luz. Parece que felizmente apareceu outra geração de críticos. É reconfortante [o prémio]. Mas há trinta anos teria resultados mais positivos em mim.

Continua a pintar?
Se não pintasse, rebentava. Deixei de escrever versos, portanto a pintura foi outra maneira de andar.


Grande Prémio EDP para Mário Cesariny

É quase "um prémio revelação", porque a obra plástica de Cesariny pouco foi vista. Mas tem mais de 50 anos. Pioneira e inventiva, dizem os críticos.

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Nunca a sua produção pictórica foi mostrada de forma alargada. Mas, aos 79 anos (80, no próximo dia 9 de Agosto), é a pintar que o poeta continua: "Se não pintasse, rebentava", resumiu ele ao PÚBLICO, horas depois de saber do prémio (ver caixa).

Na sua primeira edição, em 2000, o Grande Prémio EDP - de atribuição bienal, enquanto os restantes prémios de arte EDP (desenho, pintura e novos artistas) são anuais - distinguira Lourdes Castro. Uma escolha unânime, como esta agora, de Cesariny.

O júri foi composto pelos críticos de arte João Pinharanda, Bernardo Pinto de Almeida e António Rodrigues, pelo ainda director do Museu de Serralves, Vicente Todolí, e pelo representante da EDP, José Borges da Fonseca.

"A partir do momento em que surgiu o nome de Cesariny", lembra João Pinharanda, "tornou-se muito sedutor premiar alguém cuja produção nas artes visuais não tem sido considerada nem tem tido visibilidade. É um prémio polémico porque não é evidente. E vai possibilitar quase uma revelação."

Nos últimos anos, Cesariny tem exposto numa pequena galeria de Torres Vedras. Além de algumas peças no Centro de Arte Moderna da Gulbenkian e na Fundação Cupertino de Miranda, o artista não se recorda de outros museus onde esteja representado. A sua obra está sobretudo em casa de coleccionadores particulares.

""Espero que agora as pessoas abram os olhos", diz Bernardo Pinto de Almeida. "Mário Cesariny é um imenso pintor, tão grande como é poeta. A relação dele com a obra plástica é de uma enorme seriedade, é um inventor artístico de nível internacional. Já não era sem tempo."

E porque não antes? Porque é que mal se conhece o Cesariny pintor? "A cultura portuguesa é dominada por um bando de académicos medíocres, que faz de pintores menores os heróis do dia", acusa Pinto de Almeida. "Mesmo os que gostam da poesia dele, gostam hoje. Cesariny foi sempre um autor controverso. Hoje é um clássico. Mas em Portugal chega-se a clássico aos 80 anos..."

Sobre a importância da obra pictórica de Cesariny, este crítico refere "a invenção plástica absolutamente singular, que não é parecida com nada, e que antecede alguns dos mais marcantes artistas auropeus, como Wols" - um nome da Escola de Paris, do princípio dos anos 40.

"Cesariny trouxe, antes de Wols, desde o fim dos anos 40, uma dimensão informalista para a arte." E ainda hoje, acrescenta Pinto de Almeida, "o que ele faz continua a ser surpreendente, mesmo quando é desigual." De resto, sublinha, não faz sentido separar a obra plástica da obra escrita: "São um todo absoluto."

Um pioneiro

O crítico de arte Rui Mário Gonçalves não fazia parte do júri mas achou a escolha "muito justa". Também ele salienta o "pioneirismo" de Cesariny, e a unidade poesia-criação plástica: "Desde que, em 1947, decidiu aderir inteiramente ao surrealismo, encontrou na prática pictórica informalista a maneira de desemaranhar quer a imagem quer os versos. A sua pintura foi percursora nesta acção, onde explorou provocatoriamente, à maneira Dadá, a exibição de ausência de programa. E chegou a técnicas como o 'sopro': soprava nas tintas para criar imagens inesperadas, ou misturava tintas com verniz para obter texturas diferentes."


Esta obra plástica acabou por não ter reconhecimento "porque temos esta ideia de que um grande poeta não pode ser um grande pintor", justifica Rui Mário Gonçalves. "Para mim, o grande poeta vivo é o Cesariny, mas ele tinha talento para tudo. Também podia ter sido músico, foi aluno de Lopes Graça. Atrevo-me a compará-lo com Henri Michaux, que foi um grande poeta e um grande pintor."

Para Bernardo Pinto de Almeida, este prémio tem também uma dimensão "moral", num "tempo de hipocrisia política e social": "Cesariny é alguém que não fez concessões. Assumiu sempre uma verticalidade imensa. É uma das maiores figuras portuguesas do século XX." Muito além do movimento que lhe serviu de partida: "O surrealismo em Portugal significou sobretudo uma capacidade de distanciamento em relação ao fascismo e ao estalinismo. Foi o ponto de partida de Cesariny, mas depois ele voou muito mais alto."

Este crítico destaca ainda a influência que Cesariny teve em artistas como Paula Rego - "defendeu-a antes de toda a gente" -, António Areal ou Álvaro Lapa.

O encontro de Lapa com a obra plástica de Cesariny deu-se em 1959: "Nos meus anos de formação, era uma obra muito pouco divulgada, mas o que eu tinha visto interessava-me muito", lembra este artista. "Era uma obra muito próxima da poesia, de uma invenção que não era corrente nos pintores, exemplar de originalidade técnica. E continua a ser, ainda produz surpresas."

Também Lapa fala na "precocidade" de Cesariny: "É um criador original da arte contemporânea, num sentido internacional, tanto como a Vieira da Silva. E apagou-se ao tentar divulgar a obra dela."

Mas, como diz um dos poemas de Mário Cesariny, "nada está escrito afinal". Talvez a exposição a que este prémio conduzirá, a realizar até 2004, seja a visível prova disso.

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