Ucrânia contra planos de paz europeus que “salvem a face de Putin”
Algumas vitórias importantes e surpreendentes no terreno, e um novo pacote de assistência financeira dos EUA, deixam a Ucrânia numa posição negocial mais forte do que no início da invasão russa, segundo Kiev.
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Com a guerra na Ucrânia prestes a entrar no quarto mês, os apelos ao início de negociações de paz começam a ocupar cada vez mais espaço nas declarações de alguns líderes europeus. Mas, no terreno, a hipótese de um acordo entre a Ucrânia e a Rússia nos próximos tempos é um desfecho cada vez menos provável.
Na última semana, o jornal italiano La Repubblica noticiou que o ministro dos Negócios Estrangeiros do país, Luigi Di Maio, partilhou com o secretário-geral da ONU, António Guterres, o esboço de um plano de paz. E tanto a França como a Alemanha já mostraram estar mais dispostas a dialogar com o Kremlin do que países como a Polónia, o Reino Unido e os Estados Unidos.
Mas a reacção irada no lado ucraniano à maior abertura do Presidente francês, Emmanuel Macron, para que as partes negoceiem um acordo de paz o mais rapidamente possível, indica que esse é o desfecho menos provável para a guerra na Ucrânia, pelo menos nesta fase. Na semana passada, o Presidente ucraniano, Volodymyr Zelensky, acusou Macron de estar a tentar “salvar a face” do Presidente russo, Vladimir Putin.
“Queremos que o Exército russo saia da nossa terra. Nós não estamos em solo russo”, disse Zelensky numa entrevista ao canal italiano RAI. “Não pagaremos com o nosso território qualquer ajuda para salvar a face de Putin. Isso seria injusto.”
Fim da invasão
No centro da divisão está a ausência de referências à saída imediata das tropas russas da Ucrânia nas propostas apresentadas ou sugeridas por líderes como Macron, o chanceler alemão, Olaf Scholz, e o primeiro-ministro italiano, Mario Draghi.
Segundo o plano de paz noticiado pelo La Repubblica, o primeiro passo para o fim da guerra seria a declaração de um cessar-fogo e a desmilitarização da frente de combate sob supervisão da ONU.
Só no fim, depois de negociações sobre o estatuto da Ucrânia; de um acordo em que a Crimeia e a região do Donbass teriam total autonomia, embora com a soberania a regressar à Ucrânia; e de um acordo multilateral com vista à segurança na Europa, é que as tropas russas teriam de abandonar o território ucraniano.
“Não nos proponham um cessar-fogo”, respondeu um conselheiro de Zelensky, Mikhaylo Podolyak. “Isso não é possível sem uma retirada total das tropas russas. A Ucrânia não está interessada num novo Protocolo de Minsk e no recomeço da guerra dentro de alguns anos.”
Apoio dos EUA
A confiança da Ucrânia num renovado desejo de vitória contra a Rússia — com a expulsão das tropas russas do Leste ucraniano e da Crimeia, num regresso às fronteiras anteriores às invasões russas de 2014 e 2022 — tem crescido à medida que vai aumentando o apoio dos Estados Unidos.
Ao mesmo tempo, a descoberta de atrocidades cometidas por tropas russas, em cidades como Bucha ou Irpin, fez com que o ódio a Vladimir Putin na Ucrânia impeça qualquer apoio popular a um acordo de paz que tenha como objectivo salvar a face do Presidente russo.
O editor de Política da revista The Spectator, James Forsyth, diz na edição desta semana, citando fontes do Governo britânico, que o Presidente ucraniano está disposto a negociar com a Rússia o estatuto da Crimeia — mas salienta que essa é uma posição cada vez menos consensual entre os conselheiros de Zelensky, com uma linha dura a defender uma contra-ofensiva para reconquistar a península.
Depois de terem resistido à captura de Kiev pelos russos, e de terem retomado o controlo de Kharkiv, as forças ucranianas vão ser reforçadas, nos próximos dias e semanas, com um pacote de 40 mil milhões de dólares (38 mil milhões de euros), aprovado pelo Congresso dos EUA e promulgado, este sábado, pelo Presidente norte-americano, Joe Biden.
Desde o início da invasão russa, os EUA já desbloquearam 50 mil milhões de dólares (47 mil milhões de euros) em assistência à Ucrânia — mais do que o orçamento anual de Defesa da Austrália, e numa ordem grandeza semelhante ao valor anual reportado oficialmente pela Rússia, de 65 mil milhões de dólares (62 mil milhões de euros).
Com este tipo de apoio, é cada vez menos provável que os ucranianos aceitem condições para a paz que já seriam difíceis de aceitar quando a situação no terreno era menos favorável.
Opinião pública
O posicionamento dos vários interesses é também uma corrida contra o tempo, e os próximos passos vão depender muito do apoio que a Ucrânia continuar a receber na opinião pública, tanto na Europa como nos EUA.
E se as brechas começam a ficar mais visíveis na Europa, ao ritmo das crises de energia e alimentar, o consenso alargado nos EUA pode ter os dias contados. Ainda que o novo pacote de assistência à Ucrânia tenha sido aprovado no Senado norte-americano, na quarta-feira, com 86 votos a favor e 11 contra, a minoria republicana que exige o fim do apoio financeiro aos ucranianos é cada vez mais sonora.
Numa altura em que a subida da inflação nos EUA é, segundo as sondagens, um problema muito maior do que a invasão da Ucrânia pela Rússia, é provável que a campanha eleitoral que se avizinha para o Senado e para a Câmara dos Representantes, em Novembro, fique marcada por promessas de poupança nos gastos militares externos.
E se o Partido Republicano conquistar a maioria no Congresso — com mais candidatos de uma linha nacionalista e proteccionista à imagem de Donald Trump —, Biden terá dificuldade para obter a aprovação de pacotes de assistência militar na ordem dos milhares de milhões de dólares.
Na quinta-feira, o conselho de opinião do jornal New York Times juntou-se aos apelos para uma rápida solução da guerra na Ucrânia, mesmo que isso signifique perdas importantes — e, neste momento, inaceitáveis em Kiev — para o lado ucraniano. O principal argumento é o de que o sonho de vitória contra a Rússia é “um objectivo irrealista”.
“Não é do interesse da América mergulhar numa guerra aberta contra a Rússia, mesmo que um acordo de paz obrigue a Ucrânia a ter de tomar decisões difíceis”, diz o conselho de opinião do Times.