A moda dos estimulantes cognitivos
Os habituais estimulantes mentais que permitem trabalhar, estudar,
pensar apesar da falta de sono - café, anfetaminas e outros -, estão
a ceder lugar a uma geração de novos medicamentos aparentemente sem efeitos indesejáveis. Vamos passar a funcionar 24 horas por dia,
sete dias por semana? Será isso que queremos?
Nos próximos dias, você vai precisar de trabalhar 48 horas seguidas (fazendo uma directa pelo caminho) para acabar um trabalho urgente, estudar para um exame ou simplesmente porque tem uma agenda social muito carregada para a semana e só vai ter tempo de dormir umas horas de vez em quando. Lembra-se então de que, há uns meses, um dos seus amigos lhe deu, para este tipo de situações, uns comprimidos de modafinil, um medicamento na moda que "toda a gente anda a tomar", disse ele. Na altura, você não ligou ("eu não sou daqueles que tomam comprimidos para tudo e para nada"), mas como o seu amigo insistiu, guardou-os numa gaveta. Agora vêm mesmo a calhar. A semana começa em grande.Toda a gente sabe o que é o stress da vida quotidiana: as dificuldades financeiras, as pressões do trabalho, as necessidades da família, as exigências da vida social batem constantemente à nossa porta. Da manhã à noite, temos muito pouco tempo para tudo - e ainda menos para descansar. Por isso, há muito tempo que dormimos pouco e mal. Não admira assim que muitas pessoas se tornem alegremente adeptas de substâncias como o modafinil - que, ao que tudo indica, estão desprovidas dos efeitos desagradáveis ou mesmo perigosos do café ou das anfetaminas. Até agora, os efeitos secundários mais incomodativos do modafinil têm sido algumas dores cabeça e enjoos numa minoria de pessoas. Para mais, a substância não parece causar dependência física nos seus utilizadores (o mesmo já não se poderá dizer, porém, da dependência psicológica). E mais: dorme-se pouco mas acorda-se refrescado, dizem os utilizadores, cujos testemunhos têm sido publicados nos media britânicos e outros.
Lançado em 1999 pela empresa norte-americana Cephalon, com indicações terapêuticas específicas, o uso do modafinil tem vindo a generalizar-se como "estimulante cognitivo" nas pessoas saudáveis. E o seu sucesso não pára de aumentar, ao ponto de muitos especialistas considerarem actualmente como inevitável que se venha a tornar tão comum como a cafeína.
O efeito sobre a atenção do modafinil, cujo mecanismo de acção a nível neuronal ainda não é totalmente conhecido, já tinha sido descoberto nos anos 1990... no gato. O francês Michel Jouvet, da Universidade de Lyon, especialista mundial do sono e do sonho e um dos pioneiros do estudo do chamado "sono paradoxal" ou sonho REM (durante o qual sonhamos), publicou com a sua equipa um artigo onde falava do acrescido estado de vigília observado nos gatos tratados com modafinil, mas sem a excitação causada pelas anfetaminas. O modafinil actua ao nível dos receptores cerebrais do neurotransmissor dopamina, impedindo que, uma vez libertada no cérebro, esta substância seja reabsorvida pelas células. A dopamina desempenha funções essenciais ao nível nomeadamente do sono, da atenção, da aprendizagem, e ainda do humor e da motivação.
A indicação inicial do modafinil foi para tratar a narcolepsia, uma perturbação neurológica caracterizada pelo excesso de sono diurno, bem como outros excessos de sonolência patológicos. Actualmente, também estão em curso ensaios clínicos para determinar a sua segurança e eficácia no tratamento da hiperactividade. Uma das vantagens em relação à Ritalina (nome comercial do metilfenidato), o medicamento correntemente utilizado no tratamento deste tipo de perturbações da atenção, é que o modafinil não provoca hipertensão nem palpitações, nem tem o efeito euforizante do metilfenidato.
Hoje, o modafinil já é receitado contra o jetlag ou aos trabalhadores nocturnos. Mas, em paralelo, existe um uso cada vez mais frequente, nem sempre controlado medicamente, por pessoas sem quaisquer problemas de sonolência ou de falta de concentração, para se conservarem mais alertas e funcionarem melhor mesmo após vários dias sem irem para a cama. Por pessoas que não conseguem ter tempo para dormir o suficiente ou que acham que dormir é uma perda de tempo.
A própria Cephalon alerta, no seu site, contra o que qualifica de mal-entendidos em relação ao modafinil: "não é um substituto do sono e não se destina a tratar a privação de sono". Mas a realidade é que a substância está à venda online e que comprar uma dose custa apenas um punhado de euros.
Debate precisa-seSeja como for, o recurso a este tipo de medicamentos - já agora, outras substâncias com mecanismos de acção diferentes do modafinil estão em desenvolvimento - levanta questões complexas, de saúde pública e outras. Por exemplo: será justo permitir o seu uso em situações de competição, como exames académicos? Ou será este um uso equiparável ao doping dos atletas? E a longo prazo, poderão estes medicamentos surtir efeitos nefastos sobre os nossos neurónios, ainda não detectados, nomeadamente desencadeando um declínio cognitivo precoce, devido a um indetectável cansaço acumulado?
A prova mais recente do burburinho em relação ao modafinil foi a publicação, na última edição da Nature, de um artigo de opinião em que duas especialistas britânicas dizem o que pensam do fenómeno e apelam ao debate em torno da questão, em particular no seio da comunidade científica e médica. Barbara Sahakian e Sharon Morein-Zamir, da Universidade de Cambridge, colocam perguntas como: "Você utilizaria estes medicamentos para aumentar a sua potência cerebral?" ou "Como reagiria se soubesse que os seus colegas - ou alunos - estão a tomar estimulantes cognitivos?"
As investigadoras fornecem alguns elementos de resposta. À primeira questão, escrevem: "Existem casos em que a maioria das pessoas concordaria em dizer que o uso de estimulantes cognitivos deveria pelo menos ser regulamentado e monitorizado, por exemplo em situações de competição ou por crianças saudáveis. Mas há também situações em que muitos concordariam que a utilização de medicamentos que permitem melhorar a concentração ou a planificação podem ser tolerados, se não fomentados, por exemplo pelos controladores aéreos, cirurgiões e enfermeiras com turnos alargados. E até é possível imaginar situações em que o seu uso seria recomendável, como por exemplo nos seguranças que operam as máquinas de raios X nos aeroportos ou os soldados no campo de batalha."
Para a segunda pergunta, têm uma resposta surpreendente: "Da mesma forma que ninguém diria que uma chávena de café bem forte constitui o segredo do sucesso académico ou de uma progressão acelerada na carreira, a utilização destas substâncias não implica necessariamente que se está a fazer batota. (...) E o que é que interessa que a substância em causa venha sob forma de um comprimido ou de uma bebida?"
Num recente artigo no Guardian, Sahakian, professora de neuropsicologia e autora de um recente relatório sobre a situação no Reino Unido a pedido de Associação Médica Britânica, declarava: "Os meus colegas tomam [modafinil] para contrariar o jetlag e o cansaço, e já aconteceu que alguém me propusesse um comprimido quando me queixei do meu próprio jetlag durante um congresso ou do facto de a minha conferência ter sido programada para o fim do dia.(...) O uso destas substâncias está claramente muito difundido na minha profissão."
Na Nature, as investigadoras escrevem ainda: "Pensamos que seria difícil travar a generalização do uso de estimulantes cognitivos num mercado global do medicamento e com o acesso online cada vez mais facilitado. A vontade de auto-melhorar a suas capacidades cognitivas poderá vir a ser tão forte, e talvez mais forte, do que a vontade de melhorar o seu aspecto físico ou o seu desempenho sexual."
Mesmo assim, é preciso, salientam, abordar a questão da idade dos utilizadores, que poderão vir a ser cada vez mais novos, uma vez que o uso a longo prazo pode ter consequências desconhecidas sobre o cérebro em desenvolvimento. "Talvez seja preciso inventar uma nova forma de regulamentação", concluem, "porque o âmbito das actuais agências de saúde e do medicamento é o da regulamentação dos medicamentos para fins terapêuticos e não para fins de melhoramento."
Para além destas considerações, será que um dia deixaremos de precisar de dormir mesmo - ou pelo menos, de dormir tanto? Talvez, na medida em que estes e outros (futuros) medicamentos consigam melhorar a qualidade do nosso sono. Ora, segundo um artigo publicado no ano passado pela New Scientist, "talvez a coisa mais notável do modafinil é que os utilizadores não parecem ficar com uma "dívida de sono" por pagar. Normalmente, ficando 48 horas sem dormir, seria preciso dormir 16 horas para recuperar. Mas por alguma razão, o modafinil permite recuperar com apenas umas oito horas de sono."
E para quem gosta mesmo de dormir muito, fica aqui um conselho de puro senso comum: há vida para além do modafinil!