Brasileiros? Uns "malandros" e umas "meninas de programa" (nós dissemos isto?)
Antes de ler o texto, pense para si: que imagem tem dos brasileiros? E das brasileiras? Depois, veja as conclusões de um estudo sobre a forma como recebemos estes imigrantes
no nosso país...
a Benalva Vitorio lembra-se do dia exacto: 24 de Novembro de 2007. Estava a fazer compras na Avenida de Roma, em Lisboa, e, enquanto era atendida, ouviu uma cliente habitual conversar com uma funcionária sobre "dramas" do quotidiano. Desabafava a senhora portuguesa à funcionária que o marido a tinha trocado por uma "jovem de 26 anos". Resposta pronta da funcionária: "Só pode ser brasileira". Tranquilamente, Benalva Vitorio meteu-se na conversa: "Nem todas as brasileiras roubam o marido das portuguesas". Ao ouvir o sotaque brasileiro da investigadora, as mulheres portuguesas "ficaram sem graça" e pediram desculpa. Benalva Vitorio agradeceu e explicou-lhes que o comentário só "reiterava" o resultado da pesquisa que havia terminado.
Benalva Vitorio é professora na Universidade Católica de Santos, no Brasil, e acaba de publicar uma tese de pós-doutoramento, feita no Instituto de Estudos Jornalísticos da Universidade de Coimbra, entre Agosto de 2005 e Janeiro de 2006, sobre "imigração brasileira em Portugal: identidade e perspectivas".
Depois de 50 entrevistas a imigrantes brasileiros em Portugal, a que conclusões chegou? "De modo geral, todos atribuíram ao comportamento dos portugueses, oposto ao dos brasileiros, o maior obstáculo para a adaptação no país", lê-se na tese.
Os portugueses têm a cabeça cheia de imagens fabricadas: achamos que os brasileiros são o povo eternamente sensual e afável, ideal para nos servir um café na esplanada, de preferência ao sol, ao mesmo tempo que achamos que os homens são uns "malandros", uns "arruaceiros" ociosos e as mulheres "prostitutas".
Os brasileiros com quem a investigadora conversou revelaram "mágoa e tristeza" com este "tipo de comportamento por parte de portugueses": "Ninguém gosta de ser hostilizado, estereotipado de forma negativa, ainda mais quando está em "terra estrangeira"", explicou a professora ao P2 por email.
O conhecimento de Benalva Vitorio acerca desta realidade não vem só da reflexão académica nem dos livros. Vem das entrevistas - nas quais respeitou o anonimato dos imigrantes devido ao grande número de indocumentados no país - que foram precedidas de observação participante em locais de trabalho e residências.
E vem também da análise de artigos sobre a temática da imigração publicados no Jornal de Notícias e no PÚBLICO, em 2003, e da sua própria experiência enquanto imigrante em Portugal.
Tensão subtil
Benalva Vitorio chegou a Portugal, pela primeira vez, em Dezembro de 1971. Tinha 25 anos. Depois de estudar Jornalismo no Brasil, recebeu uma bolsa para continuar a formação em Portugal. Lembra-se bem da "dificuldade" que teve para "enfrentar o frio do inverno europeu" e "para compreender o falar e a cultura do povo português".
Depois do 25 de Abril e depois do processo de descolonização, foi "tomada por angolana ou moçambicana e lembrada", ainda que de forma subtil, que deveria "voltar" para a sua "terra".
Viveu doze anos em Portugal e, por isso, conhece "relativamente bem a realidade portuguesa" e compreende a "tensão subtil" que diz existir entre portugueses e brasileiros imigrantes em Portugal. Somos preconceituosos?
"Os portugueses não são preconceituosos, xenófobos ou racistas. Enfrentam as consequências da descolonização, da "pertença" à União Europeia, da globalização. Admiram o Brasil como território que um dia lhes pertenceu e sentem dificuldade de cortar o cordão umbilical. Mas, por outro lado, não compreendem a identidade brasileira", explica a investigadora.
Porquê? "Generalizam o brasileiro com base no sol, nas praias, na sensualidade. Imagem que o Brasil veicula nas campanhas publicitárias de turismo, que a Rede Globo de Televisão reitera nos produtos culturais, como as telenovelas", continua Benalva Vitorio.
Generalizações, muitas vezes, veiculadas pelos próprios órgãos de comunicação social que destacam "com mais frequência" os "casos policiais" que envolvem os imigrantes indocumentados e, sobretudo, as "mulheres detidas em estabelecimentos nocturnos". Para a investigadora, que também é jornalista, estas notícias e reportagens "contribuíram para reforçar estereótipos", criando a "imagem da brasileira como "destruidora de lares"" que perturba as "mulheres de família""
Elas são pouco respeitadas
Quem não se lembra do célebre caso "Mães de Bragança", que teve direito a cobertura internacional? Choveram manchetes, reportagens sobre o "drama das portuguesas que perdem o marido para as "meninas brasileiras" das casas de alterne"...
E isto reflectiu-se na nossa forma de pensar: "Uma das entrevistadas, por exemplo, contou-me que desembarcou em Lisboa da mesma forma que andava pelas ruas do Rio de Janeiro: saia curtíssima e barriga de fora. De imediato, recebeu o convite para trabalhar em uma casa de alterne", conta Benalva Vitorio, acrescentando que a meio da conversa, a rapariga apercebeu-se que, "para a pessoa que fez o convite, todas as brasileiras que se vestiam daquela maneira (comum nas cidades quentes e de praia) eram prostitutas". "Sem mágoa", a rapariga explicou ao empresário que, de facto, precisava de trabalhar, mas não era profissional do sexo.
Na tese de Benalva Vitorio, que para já ainda só está publicada no Brasil, não faltam histórias que ilustrem este preconceito. Abordar brasileiras, tendo por certo que são profissionais do sexo é recorrente. "Por ser brasileira os portugueses pensam que sou prostituta. Daí as dificuldades. A brasileira não é muito respeitada aqui (em Portugal) ", contou outra das entrevistadas, de 25 anos, que trabalha numa pastelaria.
A maioria dos entrevistados trabalha em actividades ligadas ao comércio- restaurantes, cafés, hotéis, casas nocturnas, lojas e supermercados - e não é por acaso. Sabem que os portugueses esperam deles a tal alegria que cremos ser-lhes intrínseca. E dão-nos o que pedimos, para arranjarem emprego com mais facilidade: "Eles, portugueses, querem gente alegre, sem problemas, para servir nos cafés e restaurantes. Então, colocamos a máscara de manhã para tirá-la à noite e lembrar da nossa terra, da nossa família, de tudo que deixamos do outro lado do mundo", desabafou a Benalva Vitorio um dos seus entrevistados, de 45 anos, enquanto lhe servia um café numa esplanada lisboeta.
"Colocamos a máscara da alegria para servir essa gente triste e garantir o nosso emprego", disse outra das entrevistadas, de 25 anos, que também trabalha num café em Lisboa.
Coragem para ficar
Entre os 50 entrevistados, quase todos solteiros, 30 são homens e 20 mulheres. A maioria (70 por cento) tem entre 20 e 30 anos e reparte-se por Lisboa, Porto, Coimbra, Faro e Braga. Apenas 20 por cento tem formação superior.
A seguir aos cidadãos de Cabo Verde, os brasileiros são, neste momento, a maior comunidade imigrante do país (65.463 cidadãos brasileiros legalizados em Portugal). De acordo com os números mais recentes, no ano passado, foram identificados 2508 brasileiros como estando ilegais no país. Apesar de estar muito abaixo das estimativas, este valor coloca esta comunidade à frente da tabela dos clandestinos.
Eles vêm para Portugal dispostos a tudo, "a enfrentar as agruras do trabalho ilegal" e "as condições deploráveis de sobrevivência", mas, apesar de todas as dificuldades, não desistem, como comprova a tese da investigadora.
"Cheguei aqui sozinho, em 1999. Foi a primeira vez que entrei num avião. Tive medo de tudo. Depois foi a dor da saudade na alma, do frio no corpo, da indiferença das pessoas nas ruas, nos serviços... Pensei em voltar mas desisti. Tive a coragem de ficar. Não podia mostrar para a minha gente que era um fracassado", contou um imigrante brasileiro a Benalva Vitorio, enquanto apertava "os lábios para conter as lágrimas" e entrecortava as palavras "de silêncio". Durante a conversa de 40 minutos, manteve "as mãos fechadas", procurando "esconder os calos" cravados pela construção civil, ramo onde trabalha em Portugal.
Será que nos esquecemos do que é emigrar? Esquecer-se-ão os portugueses daquela "coragem de ser outros" de que falava o filósofo Agostinho Silva? "Os portugueses não esquecem que também já foram e continuam a ser imigrantes. Precisam aprender, contudo, a conviver com o imigrante em seu território", defende Benalva Vitorio.