Eis a cabeça de Fernando Pessoa
Turismo InfinitommmMn
A partir de Fernando Pessoa
Pelo Teatro Nacional de São João
Dramaturgia de António M. Feijó
Encenação de Ricardo Pais
PORTO, TNSJ, dia 12, às 21h30
Casa a três quartos
A turba de alunos de português sossega aos poucos. O dispositivo cénico de Turismo Infinito suga o olhar do espectador de tal modo que, por uma vez, o vermelho e dourado do teatro São João está domesticado. Uma rampa e um tecto de metal, a estrutura é como uma cunha no espaço e no tempo do palco. A sala torna-se um portal sideral para a constelação de poemas de Pessoa. Magnético, um pequeno rádio portátil emana uma solidão dominical. A paisagem sonora de Lisboa é insinuada aos poucos e com ela vêm fiapos de uma memória semi-ficcionada, dos anos 20, mas também dos anos 50 e 60 do século XX, quase dos filmes. O poder evocativo das palavras traz Tavira e o Canal do Suez para cá. Pequenos gestos, pequenos artifícios teatrais, sustentam o espectáculo, assente no mero poder de sugestão das palavras e na manipulação de alguns objectos muito simples: o rádio, canetas, um espelho retrovisor. Lisboa surge mítica, como cidade portuária, de todas as partidas e todos os destinos, inscrita na memória como o lugar da vida e morte de Fernando Pessoa, o poeta desdobrado em quatro, cinco, seis, por aí fora. O negrume do palco é também a porta de entrada no vácuo, e os poemas uma forma de luto antecipado. A cabeça de Pessoa rola para o infinito. E de lá, o universo reflui, como se a obra de Pessoa fosse um telescópio Hubble apontado à origem do cosmos, e este um palco com vista para o Big Bang. Turismo Infinito pode não ter acção dramática (que não tem), mas transpira teatro por todos os poros. Bom, não é um teatro de transpiração, claro, é diáfano de mais para isso. É um teatro dentro da cabeça de Fernando Pessoa, onde ressoam os poemas, de absoluta potência cénica, ao ponto de começarem a ressoar na nossa cabeça, interpelando o mundo. A poesia impera sobre todos os sentidos e o espectáculo serve-a magnanimamente. Pessoa é um dos nossos heróis literários e é essa imagem do artista que é tudo, metáfora da cidadania, espelho das crises e contradições do século XX, que perpassa neste espectáculo.
O poeta preferia ser considerado "não como um escritor, mas como uma alma que escreve", sediada "na realidade e não na literatura". "O ser poeta e escritor não constitui profissão, mas vocação", disse, e com isso escapou à burocratização da cultura, ao mesmo tempo que se firmava com os dois pés em todos os debates políticos, culturais e artísticos. Engenheiros, guarda-livros, médicos e tradutores, todos com vocação de poetas. Se em cada um de nós explodisse uma mão cheia de pessoas assim, o mundo seria dirigido de outra maneira. "Navegar é preciso", escreveu Pessoa, citando os antigos que viviam do mar, e talvez seja esse o mote principal deste espectáculo de teatro incrustado em plena praça da Batalha. Faz parte, não está à parte. Os espíritos da equipa criativa, Ricardo Pais à cabeça, parecem definir com esta obra um dos lugares dos artistas na vida de todos os dias: os teatros. Os visores dos telemóveis dos adolescentes estavam apagados.
Jorge Louraço Figueira