A menina desta história tem duas mães
São hoje lançados dois livros infantis que abordam a homossexualidade. A Ilga Portugal diz que se destinam a todas as famílias
a "É TERRÍVEL!" André não queria acreditar. O professor de Português revelou que as pessoas se apaixonam quando crescem. Ninguém na turma se imaginava a dar beijos. "Que nojo!" Mas agora que Marta e André já superaram o choque, decidem que o melhor é resolver o assunto de uma vez - porque "se o professor o disse, é porque vai acontecer" - e escolher por qual dos colegas vão tentar apaixonar-se. "O João quer ser bombeiro para ajudar as pessoas! Gosto muito da farda dos bombeiros! Acho que vou apaixonar-me por ele", diz André.Marta e André são as personagens de Por quem me apaixonarei? - um dos dois livros infantis que a Associação Ilga Portugal e o projecto espanhol eraseunavez.com lançam hoje em Lisboa, com apoio da Fundación Triángulo Extremadura (Espanha).
O segundo livro chama-se De onde venho e fala de uma menina de Braga - na versão espanhola é de Lugo, na Galiza - que tem os olhos grandes e não mais de seis anos. Já não acredita que os bebés venham com as cegonhas. E passa em revista outras possibilidades. Virão pelo correio? Ou serão importados de Paris? "A mamã Carlota disse-me que os meninos e as meninas crescem nas barrigas das mulheres. Essa é que me pareceu a maior mentira que já ouvi. Eu não caibo na barriga da mamã Carlota e na da mamã Ana ainda menos."
Os livros vão ser postos à venda simultaneamente em Espanha e em Portugal (há 350 exemplares de cada um em português). Custam 10 euros. "As histórias e as respectivas ilustrações retratam, de uma forma simples, a diversidade afectivo-sexual, promovendo assim a igualdade, o respeito pela diversidade e a convivência cidadã desde a infância", faz saber a Ilga na nota de apresentação das publicações.
A menina que veio do mar
"Não havia até agora nada assim" no país, diz Paulo Côrte-Real, membro da direcção da associação de defesa dos direitos de Lésbicas, Gays, Bissexuais e Transgénero (LGBT). "Assim" como? "Livros para todas as famílias."
E para todas as crianças, acrescentaria Javier Termenón, 32 anos, autor de De onde venho?
Termenón cresceu com as histórias da Branca de Neve e do Capuchinho Vermelho. Adorava quando os pais reuniam os quatro filhos para lhes lerem contos. Mas não se "reconhecia" neles, diz numa entrevista telefónica ao P2. "Também nos diziam que os rapazes não podiam chorar e eu era um chorão."
Hoje, à distância, acha que todos esses clássicos impõem demasiadamente o "modelo heterossexual". E como ilustrador começou a participar em projectos para crianças que abordam "a temática da homoparentalidade" - que é apenas uma maneira de falar de "uma realidade que é muito mais multifacetada" do que o "rapaz encontra rapariga, rapaz namora rapariga, rapaz e rapariga casam".
Em De onde venho? há uma menina que faz "as perguntas que todas as crianças fazem, vivam em famílias hetero ou homossexuais", nota o antropólogo Miguel Vale de Almeida que hoje fará a apresentação das obras na Livraria Bulhosa de Entrecampos, em Lisboa.
As mesmas perguntas que também Termenón fez - "eu achava que era quando os pais dançavam juntos que nascia uma criança". A diferença entre o autor e a menina de olhos grandes do seu livro é que ele tinha uma família convencional e ela tem duas "mamãs". Há outra: ela conclui que veio do mar.
"O livro dá ferramentas aos pais para iniciarem essa conversa: "e tu, de onde achas que vens?"" - continua Termenón que com De onde Venho? ganhou o prémio da categoria dos livros destinados a crianças até aos cinco anos do I Concurso Internacional de Contos Infantis sobre Homossexualidade da eraseunavez.com - uma associação cultural espanhola que promove projectos editoriais que contribuam para "uma sociedade onde gays, lésbicas, transsexuais, bissexuais e heterossexuais possam conviver com maior igualdade".
O seu livro é apenas um ponto de partida, acredita o autor espanhol - que defende que todos os livros devem ser lidos pelas crianças com os pais ao lado. "Cada criança tem a sua verdade" e encontrará a sua resposta. Pelo caminho, fica a saber que há meninas que vivem com duas "mamãs".
A quem interessa estas obras? "Antes demais a pais ou mães que se assumem como gays ou lésbicas, que têm filhos que nunca vêem ser reflectida a questão de serem filhos de pessoas do mesmo sexo, de terem pais adoptivos do mesmo sexo, ou um pai biológico que vive uma relação homossexual", responde Vale de Almeida.
"Mas também - e se calhar isso é o mais importante - às pessoas que acham simplesmente que os miúdos devem ter acesso a modelos mais diversificados, que queiram mostrar aos filhos as possibilidades do ser-se humano."
"No amor não se escolhe"
Nos Estados Unidos e na Inglaterra, continua o antropólogo e activista LGBT, há muitos livros assim. Em Portugal, só conhece um conto que ele próprio fez para um livro com várias histórias de diferentes autores, da Associação Médicos do Mundo (e que foi vendido com o PÚBLICO em 2006), onde crianças falavam de diferentes tipos de família, incluindo a homossexual. "Neste momento existe um grupo [na Ilga] de pais gays e mães lésbicas que se reúne para discutir estas coisas e uma das coisas que eles dizem é que sentem falta destes livros. Os autores portugueses não escrevem sobre estes temas. Não sei se têm medo de não ser publicados ou de ficar marcados..."
Rosa Lobato Faria é autora de alguns livros infantis, mas sobretudo de poesia e romances para adultos. O seu último, A Alma Trocada (edições Asa), tem como tema a homossexualidade masculina. "Nunca pensei abordar o assunto num livro infantil", diz. Nunca lhe ter ocorrido é a única explicação que dá para não ter introduzido numa das suas histórias para crianças a questão da homossexualidade. "Puxem por mim, que sou bem capaz de escrever..."
Wieland Pena diz que quando era pequeno teria gostado de ler o Por quem me apaixonarei? que escreveu para o mesmo concurso da eraseunavez.com: "Quando és criança, sobretudo num ambiente homofóbico, e te parecem atraentes as pessoas do mesmo sexo, podes chegar a sentir-te como uma espécie de delinquente. Quero acreditar que o meu conto congela os estigmas do sentimento amoroso, tanto na opção heterossexual como na homossexual."
Marta e André, criados por Pena, não chegam a conclusão nenhuma sobre por quem vão apaixonar-se. Pelo Rúben ou pela Alice, que gostam de futebol? O Roberto, que quer ser médico? Ou a Laura que quer pilotar aviões? Depois um professor explica-lhes que "no amor não se escolhe". Simplesmente acontece. E é como "um presente".
"Se fosse criança gostava de ler este livro, mas sobretudo gostava que os meus pais mo oferecessem", continua Wieland Pena. Porque estes livros "são importantes". Não tem que se "inundar" o mercado com eles, acredita Termenón. Mas têm que existir. Desde logo porque, sublinha Pena, "se uma criança pode ver os seus sentimentos reflectidos num objecto tão positivo e prestigiado como um livro, não se sentirá culpada e aceitará as suas emoções como algo natural."