A Biblioteca dos reis que nos fugiu para o Brasil
A historiadora brasileira Lilia Moritz Schwarcz conta, num livro que acaba de ser lançado em Portugal, a história de dois países através de uma livraria real que "ressuscitou" depois do terramoto de Lisboa, atravessou o oceano e tornou-se um símbolo da independência. Por Alexandra Prado Coelho
a Naquele dia de nervos e agitação, poucos eram os que se preocupavam com o que iria acontecer aos 60 mil volumes da Biblioteca Real. Devidamente encaixotados, acabariam por ficar para trás no cais de Belém, quando a família real, e grande parte da corte portuguesa (perto de 15 mil pessoas), embarcava para o Brasil. As tropas francesas estavam prestes a entrar em Lisboa, e não se podia adiar mais a partida. Se os caixotes com a biblioteca não cabiam, paciência. Ali ficaram, à chuva, nesse dia 29 de Novembro de 1807.Já o príncipe regente, D. João VI, a rainha, e o resto da família real iam no mar alto, quando os caixotes, miraculosamente intactos, voltaram para o Palácio da Ajuda. Mas, conta a historiadora brasileira Lilia Moritz Schwarcz no livro A Longa Viagem da Biblioteca dos Reis - que a Assírio & Alvim acaba de editar em Portugal -, D. João VI só receberia a notícia de que a Biblioteca ficara em Portugal algum tempo após a chegada ao Rio de Janeiro.
Em Outubro de 1808, Alexandre António das Neves, o responsável pela Real Biblioteca da Ajuda, escreve a D. João VI contando-lhe "em tom exaltado" como no dia da partida da corte se recusara a executar a ordem real de queimar os papéis existentes nos gabinetes das bibliotecas. "No entanto, vangloriava-se o funcionário de que a situação não era desesperadora: apesar das diligências dos franceses, prontos a rapinar preciosidades, nem um livro ou documento fora roubado [...]. Pedia então que finalmente fossem despachados para a colónia, com a seguinte recomendação: "Que no caso não esperado de ataque de inimigos, sejam lançados ao mar os ditos papéis: os quais hão de formar um pequeno pacote."". E oferecia-se para os acompanhar na viagem.
O "vomitório geral"
Alguns meses depois, no início de 1809, com os rumores de que estaria iminente uma segunda invasão francesa, António das Neves repetia o mesmo apelo. Só a 21 de Janeiro a ordem veio do Brasil. D. João dizia para "irem encaixotando e embarcando a Livraria, papéis importantes do Paço, tudo de consideração, que se acha a cargo de José Diogo de Barros, o Real Arquivo da Torre do Tombo, o mais precioso das Reais Cavalariças [...]". Mas só no princípio de 1810 é que a Real Biblioteca partia, finalmente, em direcção ao Brasil.
Dois séculos mais tarde, Lilia Schwarcz estava a escrever um livro sobre D. Pedro II, chamado As Barbas do Imperador (lançado em Portugal também pela Assírio & Alvim), para o qual passava dias e dias a fazer pesquisa na Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro. No meio dos muitos livros que lhe passaram pelas mãos reparou que havia vários com o carimbo da Real Biblioteca. "Tudo começou com um projecto de classificação desses livros, que não estavam na biblioteca como uma colecção", conta a historiadora ao P2. "Aos poucos comecei a perceber a importância dessa biblioteca tanto para a história portuguesa como para a brasileira. E comecei a dar-me conta de que os bibliotecários envolvidos eram também grandes narradores da história."
Um dos que acompanhou a segunda remessa de livros, enviada em Março de 1811 (mais tarde iria ainda uma terceira), foi Luís Joaquim dos Santos Marrocos, que em cartas ao pai descreve a travessia "feita entre céu e água, sobre mil aflições, desgostos e trabalhos, quais nunca pensei sofrer", com o "vomitório geral da gente da fragata", comida estragada, "barris de carne salgada podre" lançados ao mar - "enfim, tudo aqui é uma desordem, pela falta de providências em tudo", resume, não escondendo o desespero nem a indignação por se levar a Biblioteca para a "bárbara colónia tropical".
A ambição de D. João V
Mas, como veio a descobrir Lilia Schwarcz, a Real Biblioteca já tinha sofrido dissabores bem piores. Aliás, a versão que seguia nessa atribulada viagem para o Brasil era a segunda - a primeira biblioteca formada pelos reis portugueses fora completamente consumida pelas chamas que devoraram Lisboa na sequência do terramoto de 1755.
É por isso que a historiadora brasileira começa o seu livro - que não é apenas sobre a biblioteca, mas sobre um período fundamental das histórias de Portugal e do Brasil, e da forma como estas se cruzam e influenciam - com a descrição do terramoto, acontecimento que muda o país - um país "marcado por uma religiosidade extrema" e em que (segundo Voltaire) "as autoridades portuguesas não conseguiram pensar em nada melhor do que dar ao povo um esplêndido auto-de-fé".
A tradição real dos livros "ajuntados no Paço" vem já de D. João II (1477-95), escreve Lilia Schwarcz. "Mas foi com D. João V (1706-50) que a Biblioteca Real adquiriu proporções grandiosas, à altura das aspirações deste soberano que, por meio do teatro da política, pretendia construir de forma espectacular o absolutismo real". O monarca mobilizou "livreiros estrangeiros, agentes diplomáticos, académicos de renome" para satisfazerem as suas necessidades "cada vez mais imperativas, insaciáveis e urgentes". A Biblioteca Real era elogiada no estrangeiro e o rei costumava dizer que tinha para ele tanta importância como o ouro que vinha do Brasil. Era um garante de prestígio para um soberano e uma corte que não saíam particularmente bem do retrato que deles faziam os visitantes estrangeiros que descreviam D. João V como "balofo" e "novo rico" e a rainha D. Maria Ana como uma mulher de uma "religiosidade extremada, que vinha no lugar da sua pouca elegância".
Porque "não há monarquia sem a sua Real Livraria", não surpreendente que, depois da tragédia de 1755, uma das preocupações tenha sido a de refazer a biblioteca. Assim, D. José I "empenhou-se em juntar o pouco que sobrara e deu início a uma nova colecção". Foram compradas importantes colecções sobreviventes do terramoto, como de Diogo Barbosa Machado, composta por cinco mil volumes, entre os quais a Biblioteca Lusitana, (três tomos com a "memória dos grandes líderes, intelectuais e religiosos da nação"), colecções de retratos, álbuns de estampas religiosas e mapas, e a do dono de um jornal português, José Maria Monterroio de Mascarenhas, com muitos dicionários e livros genealógicos portugueses, castelhanos e ingleses. Aceitavam-se todas as doações.
800 contos de réis
Como esta atravessou, atribuladamente, o oceano, já sabemos. Avancemos por isso para o ano de 1821, quando um acabrunhado D. João VI deixa o Brasil regressando a Portugal, de onde saíra 14 anos antes. Para trás deixa o filho D. Pedro e... a Biblioteca. O rei levava consigo "apenas parte dos Manuscritos da Coroa, os documentos referentes à história de Portugal, que começava a ser escrita de forma distinta dessa que seria a história do Brasil independente".
Com a independência da colónia, Portugal pede um "ressarcimento "pelos bens deixados pela Coroa no Brasil" - dentre eles nossa Real Biblioteca". A historiadora cita o documento Conta dos objectos que Portugal teria direito de reclamar do Brasil, onde o valor da biblioteca é calculado em oitocentos contos de réis (250 mil libras esterlinas), aparecendo logo em segundo lugar, a seguir à soma da "metade da dívida pública até 1917". Depois de longas negociações, foram pagos dois milhões de libras esterlinas, explica Schwarcz num capítulo a que chamou "Pagando caro".
Mas não eram apenas os livros acumulados ao longo do tempo pelos reis de Portugal, sobreviventes de catástrofes, e levados até aos trópicos, que o Brasil pagava. Era muito mais do que isso. "Não há nação que se queira independente sem sua Biblioteca que se converte, rapidamente, numa espécie de espelho e demonstração." Por isso, "o melhor era dizer, em alto e bom som, que o Brasil recém-independente possuía a melhor biblioteca do Novo Mundo e quiçá um exemplo para o Velho Continente." E por 800 contos de réis isso era possível.