Alain Touraine
É um dos últimos maîtres à penser do século XX francês. Em Lisboa, perante uma plateia
de sociólogos, defendeu que a única força de resistência, hoje, contra a globalização,
é o sujeito. E que as mulheres substituíram os operários como actores centrais da História
a "Podia ouvir-se o silêncio. A atenção", diz Manuel Vilaverde Cabral a Alain Touraine, 82 anos, na sala do 5.º andar do ICS, em Lisboa, onde o mais célebre sociólogo francês vivo aguarda o início da entrevista. "Foi muito interessante. Muito reflectido." O presidente do conselho directivo do ICS refere-se à palestra que lhe acabara de ouvir, esta quinta-feira, perante uma sala a abarrotar, no início do novo ano académico.
"Sabe, é uma vida inteira. Amadurecemos, apesar de tudo...", responde, modesto, o elogiado, que mantém ligações com o ICS desde o tempo de Adérito Sedas Nunes, figura tutelar da instituição e da sociologia portuguesa.
Durante as menos de 24 horas que permaneceu em Lisboa, Alain Touraine foi homenageado pela embaixada de França com um jantar no Clube de Jornalistas.
Revisão de algumas das ideias principais, a partir de estudos e observações em França, na América Latina e Polónia, de um sociólogo que se deslocou frequentes vezes a Portugal, antes e sobretudo logo após o 25 de Abril de 1974.
Em Junho de 1975 esteve em Portugal para uma conferência no Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas (ISCSP). Mas esta teve que ser transferida para o ISCTE, porque os estudantes do ISCSP consideraram-no "representante da sociologia burguesa francesa". Lembra-se?
Vim várias vezes a Portugal, nesse período. Trouxe, inclusivamente, a minha família a passar férias em Portugal. Aliás, quando houve aquela grande manifestação, onde foi?...
... Fonte Luminosa, com Mário Soares (19.7.1975)?
Isso mesmo. Estivemos lá todos: os meus filhos, a minha mulher e eu.
E o incidente com os estudantes?
Não me lembro disso. São parvoíces que se ouvem em todo o lado.
Que sociologia representa o senhor, 32 anos passados?
Houve, evidentemente, grandes transformações. Mas quando olho para o meu percurso vejo uma grande continuidade. A minha grande tarefa foi a de fazer uma sociologia do sujeito. O primeiro trabalho que fiz foi sobre a consciência de classe dos operários. Era um tema sobre o qual não havia praticamente nada escrito. Em particular, pelos marxistas. A explicação está nas contradições do sistema capitalista, dizem. Eu digo que não.
Porquê?
O estudo levou-me anos. Vi milhares de operários. A minha resposta foi: a consciência de classe atinge o seu ponto mais alto no momento em que a autonomia do trabalho operário, em particular na metalurgia, é destruída pela organização do trabalho, pelo fordismo, pela lógica do lucro capitalista, se quiser. Demonstrei que a seguir, quando se entrava nas empresas informatizadas, a consciência de classe baixava. Dizia o que digo ainda hoje: tudo depende da autonomia, da liberdade do indivíduo.
Como é que olha para aquilo que se passou em Portugal em 1975?
A realidade, então, era a necessidade de escolher. Já me tinha acontecido em Maio de 1968, já tinha acontecido no Chile, no momento do golpe de Pinochet, ou no fim da Unidade Popular. Pode-se discutir muito, mas a questão essencial é esta: qual a direcção? Nessa altura, entre os intelectuais estrangeiros e talvez também portugueses, os dois grandes grupos eram: Otelo ou Cunhal.
E Soares?
Eu era pró-Soares. Com uma certa consciência dos limites. Mas nessa altura - como aliás noutras ocasiões, antes - disse claramente que a solução comunista era perigosa e mesmo impossível. O fracasso de Cunhal teve um grande papel: os franceses [PSF e PCF] começaram a abandonar o Programa Comum, etc. Otelo era mais um divertimento dos intelectuais esquerdistas, coisa para a qual nunca fui atraído. Devido a esta dupla recusa, que acho importante, encontrei-me, automaticamente, do lado do Mário [Soares], a quem hoje conheço bem.
Acompanhou a evolução de Portugal?
Sim, um pouco. Encontro Mário Soares de tempos a tempos. Falamos disso tudo, incluindo das asneiras que ele fez.
Aquele foi o tempo da esperança. Acha que Portugal cumpriu o seu destino?
Não. Acho que há uma diferença bastante importante entre Portugal e a Espanha. Tem-se a impressão de que os espanhóis têm a consciência de ter cumprido a missão histórica de regressar à Europa.
E Portugal?
Só em parte. A Grécia [terceira ditadura, ao tempo], de maneira nenhuma. Não sinto nos portugueses essa satisfação. Das várias vezes que estive em Lisboa fiquei com a ideia de que Portugal, como o Chile, é um país triste. Que os portugueses não são exuberantes nem estão contentes consigo mesmos. Que o peso do passado é maior para Portugal. Tratou-se, na verdade, da maior potência moderna. Não há uma recuperação, mas não sei dizer quais são as forças de bloqueio. Não posso falar disso porque não tenho uma imagem precisa de Salazar. Parece-me que os portugueses se comparam com a Espanha e ficam com a sensação de que tiveram menos êxito no regresso à Europa. Mas conseguiram-no, atenção.
Entre 1975/80, elaborou um "método de intervenção sociológica", para estudar aquilo que designa por acção colectiva. Em que é que consistia esse método?
Os sociólogos, geralmente, colocam questões, estudam estatísticas, olham os factos. O meu método é totalmente diferente: estudo os efeitos da intervenção sociológica. Pego em pessoas que estão em greve, por exemplo. A princípio o trabalho durava vários meses e era feito por dois investigadores: um deles, em dado momento, formava uma imagem do que poderia ser o significado mais elevado (não o mais justo) daquela acção. Reunia-se com as pessoas - é o momento central da pesquisa - e transmitia-lhes essa conclusão. Começa aí a fase de verificação da hipótese. Se esta é justa, isso aumenta a capacidade de pensar e de agir do grupo; se for falsa, lança a confusão e acabará por ser rejeitada. Vivi as duas situações.
Isso não será um certo missionarismo sociológico?
De maneira nenhuma. Ponho a hipótese. Se elas a aceitarem, muito bem. Se não, rejeitam-na. A intervenção é uma interpretação. O seu papel é estudar as respostas do grupo. Desculpe o exemplo, mas é como se estudássemos a intervenção do psicanalista sobre o paciente. [O que nos interessa] É a relação [do psicanalista com o paciente], não o paciente em si. Fizemos um estudo sobre o movimento occitano, em França. Um dos investigadores disse-lhes, em certa altura: "Penso que o vosso movimento significa uma tomada de consciência nacional, económica, cultural, etc." Disseram "sim", "sim". Falaram uma, duas, três, quatro, seis, dez horas e foi a confusão completa: havia pessoas que queriam o desenvolvimento regional e outras que queriam a independência cultural - duas tendências completamente separadas. Era isso que tínhamos concluído. Mas a partir do momento em que tomaram consciência disso não se passou mais nada nesse movimento.
E vocês abandonaram esse tema de investigação?
Não: dei a resposta. E esta foi que aquele não era um movimento social. Outro exemplo, ao contrário: em 1981 trabalhei na Polónia, sobre o movimento Solidariedade. Vimos muita gente. Apenas nas fábricas. A hipótese que pusemos foi de que se tratava de um movimento complexo, ao mesmo tempo social, nacional e democrático. A partir desse momento as coisas aceleram. Era isso, precisamente.
Ao estudar movimentos tão diversos como os operários da Renault em França, o Maio 68 ou a situação da mulher, acompanhou de algum modo, o passo do mundo, nestes últimos 40 anos.
Um pouco.
Qual é o seu balanço? Os operários, por exemplo, quase desapareceram...
Não desapareceram. São mais do que se pensa. Em França, um em cada dois lares tem um operário ou uma operária. Representam 25 por cento da população activa. Já não são é personagem histórica.
A sociologia deixou-os de parte, levada por outros temas, mais na moda?
Não. Observou que o mundo operário e o mundo sindical já não são um actor central da história. Por um conjunto de razões, entre as quais a fragmentação do mundo operário, o trabalho temporário, os contratos a prazo, a chegada de trabalhadores estrangeiros. O problema que sempre me interessou: quem substituiu os cidadãos de Paris que fizeram a Revolução [de 1879]? Os operários. Quem substitui hoje os operários [como actor central da História]?
Quem é?
São as mulheres.
Como? Porquê?
Não as mulheres enquanto mulheres, mas porque, hoje, como vemos no quotidiano, o essencial é a preocupação consigo. Le souci de soi é, de resto, o título de um dos últimos livros de Foucault. Nisso, eu penso como ele. A tradição vem da antiguidade clássica e passou ao cristianismo. O sujeito abstracto pertence aos séculos XVII, XVIII. Depois, pensava-se com base nas determinantes económicas, psicológicas, Marx, Nietsche, Freud. Hoje, 150 anos depois, redescobre-se a autonomia do sujeito, o papel essencial da reivindicação de ser um sujeito na situação actual. A preocupação com o corpo, com a imagem, consigo mesmo são aspectos elementares, mas obviamente importantes. E há essa preocupação maior - não apenas nas mulheres, não apenas nos homens - de construir a própria identidade.
Enquanto o ouvia falar na autonomia do sujeito, na conferência, tomei a seguinte nota, que é uma pergunta: "Sim, o sujeito. E a estrutura? O global? E o poder que oprime e guia e determina e está para além dos olhos? Em mundos onde não chegamos: no capital financeiro, na tecnociência?"
É verdade. A realidade de hoje é a globalização. Hoje há poderes mundiais que não são controlados por ninguém. Há redes. Há mercados. O resultado é o fim do social, pois o social significa uma forma de controlo - através dos impostos, da escola, o que quisermos. Vivemos num mundo em que as instituições sociais estão em crise. A cidade, a política, a escola, a família - tudo está em crise. Porque ninguém consegue controlar esta coisa imensa, salvo, talvez, outra coisa ainda maior - guerras religiosas, jihad contra jihad. O que resta, então?
O sujeito?
Três formas de individualismo: a decomposição do indivíduo (veja-se a juventude de hoje); o comunitarismo (Deus sabe quão importante é, veja-se o Paquistão, a Índia); e o sujeito. Quer dizer: face a este mundo, que descreveu de maneira correcta, a única força de resistência faz-se em nome do indivíduo e não dos cidadãos, dos trabalhadores. Já não é classe contra classe...
... mas o indivíduo contra todo o mundo?
Contra o todo.
Não é isso uma questão de fé?
Não, de maneira nenhuma. Há pessoas que agem ou podem agir em função da sua posição num sistema e dos interesses desse sistema (económico, religioso, etc.); e há outras que, pelo contrário, se polarizam sobre a limitação do poder do sistema sobre o indivíduo, à maneira das velhas concepções inglesas, como digo muitas vezes. Esta é a grande questão: temos, por exemplo, um sistema religioso que despreza as mulheres e o outro lado que defende o direito das mulheres à individualidade ou o direito do indivíduo a não pertencer a uma religião [a liberdade do indivíduo está antes dos direitos da comunidade, disse na palestra]. Não é um detalhe. Estes problemas existem muito. Como existe a tendência forte, e nem sempre estúpida, para criarmos um mundo privado - por exemplo na Internet. Não digo que seja bom. Mas é o contrário da lógica de sistema. É por isso que voltamos a falar dos Direitos do Homem. Hoje dizem-se coisas que não se diziam há 50 anos. As pessoas que morrem em lutas étnicas ou nos campos de refugiados - é isso que nos toca mais, hoje. O grande crime, hoje, é não conhecer a humanidade dos homens. Diria, portanto, se me permite usar uma expressão que não deve ser utilizada: o que você está a tentar defender é a alma (mas retire imediatamente a palavra, porque não quero introduzir aqui elementos religiosos...). A subjectividade e, ainda mais, a subjectivação - é essa a grande força de resistência.
Disse há pouco que o actor principal de hoje é a mulher. A mulher está aí, desde sempre...
Esta mudança de cultura, este olhar para o interior, para dentro de si, fez-me aperceber, rapidamente, de que era essencialmente uma questão de mulheres, porque lhes havia sido negada a subjectividade, enquanto os homens estavam completamente ocupados pelo seu trabalho, pela sua energia, pelo seu poder, na conquista do mundo.
As mulheres também, cada vez mais.
Sim, as mulheres de hoje. Porque as mulheres da geração anterior, feminista, não eram nada assim. Faziam reivindicações femininas do mesmo tipo das reivindicações anticoloniais.
Disse, na conferência, que elas são o actor emergente. Ora, hoje, é claro que elas lutam pela igualdade de condições.
Elas não lutam pela igualdade de condições. Lutam, num primeiro nível, pela igualdade; num segundo nível, pela diferença; e num terceiro, pela invenção de uma cultura da subjectividade. Fiquei atónito: todas [sobre as quais incidiu a pesquisa] diziam a mesma coisa. Fico siderado por ninguém ver isto. Não há expressão política, não há expressão ideológica - peço desculpa de o dizer, mas o meu livro é o primeiro em que se fala assim.
Se as mulheres estivessem no poder...
Não.
... o mundo seria melhor?
Não.
Qual é a diferença, então? Se elas são o actor central (do mundo de hoje)?
Imagine que é Jesus Cristo e que eu lhe ponho a seguinte pergunta: "Pensa que para mudar o mundo é preciso tomar o poder?" Sabe bem que Jesus Cristo responderia que não. Também eu digo que não. Não se trata de um problema de poder. Não o digo por brincadeira. O mesmo diz o budismo, etc. O que é essencial hoje, como de resto no passado, sob outro vocabulário, é a capacidade de defender em si o que não pertence ao social. Exemplo: a abolição da pena de morte. Não foi por poder haver erros que ela ocorreu na Europa, como dizem os americanos. Foi porque - como explicaram magnificamente Mitterrand e Badinter [Roger] - a sociedade não tem o direito de tirar a vida, pois não é ela que a dá. O ser humano é outra coisa para além do social. É necessário reconhecer os limites do poder do social e do político. Vivemos num mundo em que a sociedade civil tem uma força cada vez maior.
Pegando nos títulos de alguns dos seus livros mais recentes, mas pedindo-lhe respostas quase telegráficas, pergunto-lhe: o que é a democracia, hoje?
Na grande tradição ocidental (Hobbes e Rousseau), consiste na união de todos - todos por um e um por todos. É a unidade de todos que cria a liberdade de cada um. Não quero isso. Porque sei que isso abre a porta a todos os poderes autoritários que falam em nome do povo, do proletariado, da nação. Prefiro a definição a que chamo britânica: a democracia é a limitação do poder das instituições (Estado, religiões, poder económico, etc.). Não se podendo tocar em certas liberdades, como por exemplo a religiosa. Ou, por exemplo, destruir a terra.
Podemos viver juntos, iguais e diferentes?
Esse é o maior tema de debate sociológico dos últimos 30 anos. Respondo que podemos. Chamei modernidade ao reconhecimento da presença de elementos universais no individual. Aí há duas coisas: a razão e os direitos do homem. Estes são os elementos comuns da modernidade. Depois, há a forma como os diversos países escolhem os seus caminhos, diferentes. Há uma modernidade e várias modernizações.
Como sair do liberalismo? Acrescento: para ir para onde?
Em França objectaram-me: para sair do liberalismo é preciso antes entrar nele... A questão é: é preciso submetermo-nos a algo que é o mais impessoal, mesmo que o consideremos o mais racional, o mercado? Pessoalmente, acho que "basta!". Os Estados começam a preocupar-se com as suas economias nacionais. Vamos abrir as portas aos chineses, aos indianos? Os alemães receiam por exemplo perder os bancos. Julgo que se não tivermos isto em conta, as culturas, as línguas, desaparecerão.
O que é "pensar de outro modo"?
Escapar ao pensamento único - uma mistura de marxismo, de determinismo tecnológico, de visão linguística. Abandonar este mundo de determinação objectiva e reintroduzir o ponto de vista do sujeito.
A sua conferência intitulava-se Actores ou vítimas. Somos actores ou vítimas?
O pensamento dos últimos decénios diz que somos todos vítimas. Em particular as mulheres. Condeno este ponto de vista, que vem do mais puro determinismo. Dediquei-lhe 100 páginas no meu último livro.
Os franceses não compreenderam o que se passou nos bairros dos subúrbios [habitados maioritariamente por famílias de imigrantes]? A violência voltou lá.
Não muito, mas é verdade. Estudei também isso. Na segunda geração há, apesar de tudo, uma certa integração. Eles são cidadãos franceses. O que vivemos neste momento é um movimento de desintegração. Há um aumento da xenofobia, a rejeição das minorias, e uma discriminação crescente. Há 15 anos um professor estrangeiro perguntou-me: "Em França, vocês têm guetos, como na América?" Respondi-lhe: "Não, não temos." Se aquele professor me pusesse hoje a mesma pergunta, eu responder-lhe-ia: "Sim, há guetos em França."
Parece pessimista.
Neste momento sou. Apesar de me considerar um optimista, de uma forma geral, acho que esta situação é grave. Enquanto os ingleses e os norte-americanos conseguiram fazer a integração, e os italianos se têm mostrado mais inteligentes [na resolução do problema], os franceses deixam as coisas caminhar no sentido da rejeição.
E complicam-se com Sarkozy. Ele não é Le Pen, entendamo-nos, mas foi eleito porque tomou medidas
à Le Pen.
Isto não quer dizer que ele vá fazer uma política Le Pen. Mas quer dizer que a maioria actual está muito ligada a esta rejeição da imigração. Os franceses têm tendência a dizer: "Nós somos os depositários do universal; vocês [imigrantes] ou se tornam franceses e serão pessoas respeitáveis, ou não se tornam franceses e nesse caso não há tolerância, vocês são inferiores." Não há melhor maneira de caminhar para a catástrofe.