A outra arca de
Milhares de páginas escritas por Fernando Pessoa, incluindo correspondência, poesia inédita e uma grande variedade de outros textos, conservam-se ainda na posse de familiares do poeta. Se o Estado não avançar para a compra deste espólio, é muito provável que alguns dos documentos comecem em breve a ser colocados no mercado. Hoje mesmo, vai a leilão o manuscrito do livro Indícios de Oiro, de Mário de
Sá-Carneiro, que também se encontrava nas mãos da família de Pessoa
a Quando o Estado português comprou, em 1979, os papéis que Fernando Pessoa conservara na sua celebérrima arca, a meia-irmã do poeta, Henriqueta Madalena, manteve em sua posse um baú mais pequeno, igualmente cheio de documentos. Um dos investigadores que esteve em contacto com este espólio, quer em casa da sobrinha do poeta, Manuela Nogueira, quer na de seu irmão, Miguel Rosa, afirmou ao P2 que os papéis ainda na posse da família somarão cerca de três mil páginas manuscritas e/ou dactiloscritas, abarcando praticamente todas as épocas da vida de Pessoa, desde a infância e adolescência na África do Sul até aos tempos do Estado Novo. Embora uma parte significativa deste conjunto diga respeito a correspondência familiar, o acervo seria susceptível de fornecer material para todas as secções temáticas em que hoje se encontra catalogado o espólio de Pessoa na Biblioteca Nacional de Portugal (BNP). "A minha mãe sempre achou que o essencial era o que estava na arca, e que aquilo que o tio Fernando guardou nessa maleta eram coisas a que ele daria menos importância", diz Manuela Nogueira, sublinhando que "só nos últimos dez anos" é que alguns investigadores, como o americano Richard Zenith, organizador de várias edições de Pessoa na Assírio & Alvim, o colombiano Jeronimo Pizarro, autor de dois volumes da edição crítica, ou o alemão Steffen Dix, têm vindo a interessar-se de forma mais sistemática pelos papéis que ficaram na posse da família.
A maior parte deste material está em casa de Manuela Nogueira, que, tal como sempre fizera a sua mãe, falecida em 1992, tem feito questão de o colocar à disposição dos investigadores, permitindo não apenas que o consultem, mas que o fotocopiem e digitalizem. "Tenho vivido sepultada em papéis", diz a sobrinha de Pessoa, que agora, "no final da vida", e com "quatro filhos, oito netos, três bisnetos, e mais dois a caminho", começa a preocupar-se seriamente com o destino a dar a estes documentos.
Dividir o espólio por nove herdeiros - os seus quatro filhos mais os cinco do seu irmão Luís Miguel - não lhe parece uma solução desejável. "Têm a vida deles, andam sempre numa roda viva, e, a não ser a minha filha Isabel, seguiram caminhos que não têm a ver com a literatura." Mas também sublinha que não lhe parece justo optar por uma doação que deserdaria os seus descendentes, alguns dos quais, afirma, "não estão numa situação muito brilhante".
Manuela Nogueira sabe que, nos meios pessoanos, há quem pense que deveria oferecer os documentos à BNP, para que fossem incorporados no arquivo de Pessoa. Mas acredita que "essas pessoas talvez mudassem de opinião se as coisas fossem delas". Recordando que se trata de "um bem familiar", argumenta: "Quando se herda um palacete, vende-se para se dividir o dinheiro pelos herdeiros e já ninguém diz nada."
Como gostaria que estes papéis "ficassem em Portugal", admite que veria com bons olhos a possibilidade de que o Estado viesse a comprar tudo, com o eventual apoio de entidades bancárias, desde que fosse "o mercado a estipular o preço". Mas sublinha que não pode falar pelo irmão. E acrescenta que faria sempre questão de preservar um pequeno conjunto de peças, a título simbólico, para que os filhos ficassem com alguma coisa do tio.
Jogos e medições de crânios
Boa parte deste material é rigorosamente inédito, embora alguns documentos tenham já sido parcial ou inteiramente transcritos por investigadores, e os próprios familiares tenham divulgado outros nos livros que publicaram sobre Pessoa. No álbum Imagens de uma Vida, Manuela Nogueira reproduz cartas, postais, fotografias, dedicatórias endereçadas a Pessoa, e ainda anotações deixadas pelo poeta nas margens de livros. E o seu irmão, Miguel Rosa, já organizara o volume Encontro "Magick" de Fernando Pessoa e Aleister Crowley, onde transcreve parte de um volumoso dossier, com centenas de páginas, onde Pessoa guardou toda a documentação relativa ao mago inglês, incluindo diversa correspondência e os muitos textos preliminares que o poeta chegou a escrever para uma projectada novela em torno do suposto suicídio de Crowley. Uma das filhas de Manuela Nogueira, Isabel Murteira França, publicou igualmente um livro, Pessoa na Intimidade, que divulga documentos na posse da família, ainda que a obra se centre numa longa entrevista à avó da autora, Henriqueta Madalena.
Se estas obras podem servir como uma amostra da documentação que a família de Pessoa conserva, estão muito longe de a esgotar. Os estudiosos que têm contactado com estes papéis afirmam que há muita poesia inglesa inédita, e mesmo alguma em português, além de uma grande quantidade de textos e notas sobre os muitos temas pelos quais Pessoa se interessou, e até possíveis fragmentos inéditos do Livro do Desassossego.
E não faltam, também, papéis menos imediatamente classificáveis, mas curiosos: os registos de uma medição que Pessoa andou a fazer aos crânios de vários familiares, uma carta a um ministro da Justiça do Estado Novo, que nunca terá chegado ao destinatário, ou a descrição detalhada das regras e materiais de um jogo inventado pelo poeta - chamou-lhe Strategy, que, curiosamente veio a ser o nome de um famoso jogo de estratégia recente.
Uma das características mais interessantes deste acervo é justamente a sua diversidade, que o torna uma espécie de amostra reduzida do espólio já conhecido. Mas, ao contrário dos papéis que estavam na arca principal, organizados por Pessoa em envelopes etiquetados - uma organização que já não foi possível reconstituir, depois de tanta gente ter andado a mexer no espólio nos anos que antecederam a sua incorporação na BNP -, a "segunda arca" parece ter estado menos arrumada. Para Jeronimo Pizarro, isto não significa necessariamente que Pessoa atribuísse menor importância ao que nela se encontrava. "Pode ter sido simplesmente um sítio onde ele ia guardando o que ainda estava por organizar", sugere o investigador.
Pizarro, como, de um modo geral, todos os que trabalham em edições críticas, atribui extrema importância a este acervo, admitindo que, se estivesse já convenientemente fixado o texto de todos estes papéis, "haveria material para rever e aumentar quase todas as edições de Pessoa", mesmo as publicadas nos últimos anos. Ele próprio, que percorreu todo o arquivo de Pessoa na BNP para recolher mais de 600 textos respeitantes às relações entre génio e loucura, afirma que descobriu agora mais alguns que não estão nos dois tomos que organizou.
"Enquanto houver papel..."
Para o investigador colombiano, a tarefa mais urgente, mesmo no que respeita ao espólio já inventariado, é aquilo a que chamou, num artigo, citando uma expressão do pessoano alemão Georg Rudolf Lind, "a exumação sistemática da arca". Alertando para o facto de que as incontáveis reedições de textos já conhecidos de Pessoa ameaçam encobrir o facto de que uma parte muito considerável do espólio permanece inédita, Pizarro defende que é prematuro avançar-se para edições supostamente definitivas, ou querer-se antologiar Pessoa, antes de se ter uma visão completa do conjunto. O aparecimento dos papéis em posse da família apenas vem mostrar, na sua opinião, que a tarefa é ainda mais colossal do que já se sabia que era.
O coordenador da edição crítica de Pessoa, Ivo Castro, não conhece em primeira mão os papéis que estão na posse da família, mas avisa que "enquanto houver um papel, há possibilidade de descoberta". E recorda que Pessoa foi um autor que nunca deu nada como fechado, que deixou muito por publicar e que continuou a mexer mesmo no que já tinha publicado, pelo que seria sempre possível que quaisquer papéis viessem a ter relevância mesmo para efeitos de nova fixação de textos já conhecidos. E também está convencido de que "ainda não é altura das edições definitivas de Pessoa" e que "as grandes sínteses só serão feitas daqui a duas ou três gerações, se as actuais trabalharem bem".
A relevância real de muitos destes papéis também só será devidamente avaliada quando for possível equacioná-los com os que já se conhecem. Podem servir, por exemplo, para confirmar uma data, ou resolver uma palavra em dúvida. Este trabalho de colocar os documentos em relação uns com os outros, que distingue a catalogação do mero inventário, até já permitiu presumir a falta de uma peça que, agora, apareceu de facto no espólio que a família conserva. Pela análise dos documentos que existem na BNP, sabia-se que devia ter desaparecido uma versão intermédia do livro de poesia inglesa Mad Fiddler, que agora se veio de facto a descobrir. Não terá muita importância para a edição do texto, mas vem resolver uma lacuna, um salto que parecia inexplicável.
Os pessoanos que têm trabalhado mais em edições destinadas ao grande público, como Richard Zenith e Teresa Rita Lopes, não negam a importância destes documentos, mas não os valorizam tanto como Pizarro. Teresa Rita Lopes acha que "seria um disparate o Estado não os comprar", mas duvida que alterem substancialmente o conhecimento que já hoje temos da obra de Pessoa. Zenith reconhece que alguns papéis podem dar indicações biográficas e ajudar a perceber aspectos da obra, mas pensa que não se encontrarão inéditos "de grande valor literário".
A própria Manuela Nogueira, embora afirme respeitar as duas posições, acha, até "enquanto escritora" - tem 18 livros publicados -, que "já se está a aprofundar mais do que o próprio autor teria aprofundado". E nem sempre tem apreciado as conclusões a que os investigadores têm chegado. Defende, por exemplo, que Pessoa não morreu de cirrose hepática, mas sim, provavelmente, de uma pancreatite aguda, "que na época era fatal". E não acredita que o tio tenha sido alcoólico. "Naquele tempo, os homens iam ao café e, em vez de uma bica, tomavam um copo, mas nunca ninguém o viu alterado pelo álcool." Também não compra a tese de que o poeta tenha sido um homossexual recalcado, argumentando quer com detalhes das cartas que este enviou a Ofélia Queiroz, quer com o que a mãe lhe foi contando ao longo dos anos sobre as "paixonetas" que Pessoa terá tido por várias mulheres.
Um zero a mais
O P2 tentou ouvir a ministra da Cultura sobre a possível aquisição deste espólio, mas Isabel Pires de Lima não se mostrou disponível para comentar o assunto. Também o director da BNP, Jorge Couto, preferiu não adiantar se a hipótese de uma negociação global com os herdeiros de Pessoa está ou não a ser equacionada. Recorde-se que a família vendeu há poucos dias à biblioteca um importante caderno manuscrito do poeta, ao mesmo tempo que doava à instituição o espólio de Henrique dos Santos Rosa, um irmão do padrasto de Pessoa, também ele escritor, e que, segundo Manuela Nogueira, foi uma figura muito influente na juventude do autor dos heterónimos.
No entanto, quando as instituições públicas não se mostram interessadas em adquirir, a família parece agora determinada a ir vendendo algumas peças no mercado, decisão para a qual pode ter contribuído o facto de a obra de Pessoa ter recentemente reentrado no domínio público, privando os herdeiros dos direitos de autor que vinham recebendo. Esta noite, na galeria e leiloeira P4photography, em Lisboa, vão à praça, além de várias fotografias de época de Fernando Pessoa, de exemplares que lhe pertenceram da raríssima revista inglesa Blast, e de uma edição de 1598 do autor ocultista Johann Jacob Wecker, um importante conjunto de objectos que pertenceram a Mário de Sá-Carneiro, incluindo o manuscrito definitivo do livro Indícios de Oiro e vários cadernos com recortes de imprensa e anotações manuscritas.
Como o leilão, embora decorra em Lisboa, permite a licitação via Internet, qualquer destes documentos pode facilmente ir parar a um coleccionador estrangeiro, caso o Estado abdique de exercer o seu direito de opção. Manuela Nogueira assegura que todas estas peças foram já reproduzidos e estudadas, à excepção do livro quinhentista, que, por isso mesmo, lamenta que vá a leilão antes de ter sido digitalizado. "Uma sobrinha minha perguntou ao pai o que é que achava de acrescentar o livro ao leilão e o meu irmão, como o livro era dela, disse-lhe que ela é que tinha de decidir; eu fui a última a saber."
Esta é a primeira vez que a família leva a leilão o manuscrito de Sá-Carneiro, embora em tempos tenha colocado um anúncio no jornal para o tentar vender. "Recebemos algumas respostas, mas não interessavam nada, e o caderno ficou cá por casa", explica Manuela Nogueira. Mais recentemente, o caderno esteve depositado durante alguns meses na BNP, com vista a uma eventual aquisição. A instituição acabou por recusar a quantia pedida por Manuela Nogueira, o que pode ter ficado a dever-se ao facto de esta, segundo ela própria confessa, se ter enganado no valor pretendido. "Estávamos naquela altura da transição do escudo para o euro e eu, sem querer, acrescentei um zero a mais", explica. A BNP tê-la-á informado de que, por princípio, não apresentava contra-propostas, e ela própria nunca corrigiu a que tinha enviado, de modo que o original voltou à sua posse.
Se o manuscrito vier agora a ser vendido a um particular, eventualmente estrangeiro, uma das pessoas que ficará mais desgostosa é a actual responsável da Direcção-Geral do Livro e das Bibliotecas, Paula Morão, não tanto pela função que desempenha, mas pela admiração que tem pelo autor. Especialista na obra de Sá-Carneiro, Morão defende que é preciso garantir que a peça fique em Portugal e acha que "o país tem de ter a noção de que tanto é património o mosteiro de Tibães como este caderno".
"Mandei logo arrolar"
A pessoana Teresa Rita Lopes concorda que "seria importantíssimo que o Estado adquirisse o manuscrito". Uma questão que, aliás, a toca pessoalmente, já que foi ela, ainda em vida da meia-irmã de Pessoa, e antes de o espólio ter sido incorporado na BNP, que descobriu este caderno no meio de outros papéis. Também foi ela, de resto, que, ainda no final dos anos 60, alertou o Estado para o facto de a família estar a negociar a venda do espólio para o estrangeiro. "Eu estava exilada em Paris, a fazer a minha tese sobre o Pessoa, e o dr. Veríssimo Serrão, que era director da Gulbenkian, disse-me que a família, não tendo conseguido que a fundação comprasse o espólio, ia vendê-lo para Inglaterra." Teresa Rita Lopes contou o que se passava a António José Saraiva, que, por sua vez, se apressou a avisar o irmão, o historiador José Hermano Saraiva, então ministro da Educação. Este confirma a história: "Quando o meu irmão me disse que a famosa arca corria o risco de ir para o estrangeiro, mandei logo arrolar aquilo tudo, para proibir que saísse do país."
O espólio só viria, no entanto, a ser adquirido dez anos mais tarde, em 1979, tendo sido incorporado na BNP em 1981. Mas o trabalho de inventariação começou a ser feito logo nesse final de 1969, em casa da família e em condições um tanto precárias, por uma equipa que trabalhou durante algum tempo numa sala ao lado daquela onde se encontrava a arca, sem dispor de uma visão integral do espólio. Um artigo em que as técnicas envolvidas relatam esse processo permite também perceber que vários papéis que estão hoje na BNP só mais tarde foram acrescentadas ao espólio, entregues por outros ramos da família ou devolvidos por investigadores que os tinham em sua posse.
E há uma peça crucial, o manuscrito principal de O Guardador de Rebanhos, de Alberto Caeiro, que só foi incorporado no arquivo já no início dos anos 90, quando Pedro Santana Lopes era secretário de Estado da Cultura. Aparentemente, nunca esteve na arca e acabou por ir parar às mãos de um privado, que o emprestou a Ivo Castro, o que permitiu que este publicasse, em 1986, a edição crítica do documento. O caderno foi depois vendido a um livreiro, que, finalmente, o vendeu à Biblioteca Nacional.
Mas podem continuar desaparecidos papéis de que nada se sabe, já que, durante anos, o espólio foi sendo consultado, em casa da família, por inúmeras pessoas. "A minha mãe deixava toda a gente à vontade, não estava ali a fazer de polícia, saía para beber um chazinho", diz Manuela Nogueira, explicando que não está a criticar, uma vez que ela própria faz o mesmo.
"Qualquer dia vendo a arca"
A sobrinha de Pessoa queixa-se de que o Estado comprou o que estava na arca - que continha mais de 27 mil folhas - "por um preço irrisório". A família recebeu seis mil contos, pagos em duas prestações anuais, que foram divididos pelos três herdeiros de então, todos meios-irmãos de Pessoa. Mesmo na época, não terá sido, de facto, um negócio da China, mas Pessoa não tinha, no final dos anos 70, a projecção que tem hoje, e convém lembrar que, em 1979, seis mil contos correspondiam a 800 salários mínimos.
Certo é que os actuais herdeiros não parecem agora dispostos a vender muito abaixo do preço de mercado. E algumas peças poderiam atingir somas consideráveis, sobretudo se vendidas no estrangeiro, como é o caso do dossier Pessoa-Crowley, que teria seguramente muitos potenciais compradores em Inglaterra.
No leilão desta noite, a Biblioteca Nacional de Portugal terá a possibilidade de exercer o direito de opção, igualando a licitação mais alta. Mas se algumas peças começarem a ser directamente transaccionadas no estrangeiro, não é teoricamente de excluir que o Estado possa tentar avançar para um processo de classificação, procurando evitar que os documentos saiam do país, mesmo tendo em conta que a legislação mudou muito nas últimas décadas. Mandar arrolar de um dia para o outro um espólio que não estava sequer inventariado, como fez José Hermano Saraiva em 1969, não seria hoje exequível.
A própria sobrinha de Pessoa garante que o seu desejo é que as coisas fiquem em Portugal, mas ao optar pela solução do leilão, como agora fez, a família mostra-se objectivamente disposta a aceitar o risco de que algumas peças venham mesmo a ser vendidas para o estrangeiro.
Para Manuela Nogueira, que afirma que "99 por cento das coisas já estão digitalizadas", o mais importante é que "os estudiosos continuem a ter acesso" aos papéis. No entanto, mesmo do ponto de vista da investigação, o acesso aos originais pode ser relevante. "Há sempre um momento", diz Paula Morão, "em que é necessário consultá-los". Embora defendendo que, por razões de conservação, os investigadores até devem trabalhar com cópias, explica que é muitas vezes necessário "ir aos originais, para fazer, por exemplo, a distinção entre dois tipos de lápis, ou de papel", algo que uma fotocópia ou uma reprodução digital dificilmente permite.
Morão não tem dúvidas de que "estas coisas deviam estar todas classificadas, tratadas e devidamente acondicionadas numa instituição". E acha que, para lá da sua utilidade imediata para os estudiosos, se trata de peças com valor intrínseco, enquanto objectos. "Um manuscrito do Pessoa, ou do Pessanha, ou do Nobre, é um documento comoventíssimo sobre a prática do que é ser um escritor, é o retrato de uma consciência."
O que não tem nenhuma serventia para os estudiosos, mas tem, sem dúvida, valor simbólico, é a arca em que Pessoa foi arrumando a sua obra. O Estado comprou o que estava lá dentro, mas não adquiriu o móvel. E Manuela Nogueira, que conserva a mítica arca na sua casa do Estoril, não exclui a hipótese de se vir a desfazer dela. "Qualquer dia, vendo-a", diz a sobrinha de Pessoa, uma vez que não pode "cortá-la em quatro bocados", para a repartir pelos seus filhos.