Paulo Branco
Fez tanto pelo cinema que ninguém se atreve a dizer o contrário. De resto, tudo se diz dele. Que já não é grande, que usa os pequenos, que é o maior. Uma verdade não exclui a outra. Enquanto recebia estrelas no Estoril tinha gente à espera de ser paga para pagar a renda. Um retrato de Paulo Branco
Está a ver Johnny Depp naquele filme do pirata? Ele é assim
Tem aquela frase fantástica "Telefona-me que eu resolvo". Mas é sempre mentira
Sabe instin-tivamente o que é o cinema
A minha luta com ele foi por vezes brutal mas sempre frontal
Foi a mais longa relação do cinema português e agora não fala de Branco
Deu-me total liberdade e respeitou as minhas escolhas
Prefere não falar até o seu filme Veneno Cura, produzido por Paulo Branco, estrear
Se tenho de pagar dia 1 é dia 1, tanto como produtor como pessoa
O meu caso é especial, mas sei que houve situações graves
Está a dar cabo de tudo o que foi feito
Portugal sem ele tinha muito menos cinema
Uma pessoa que fez tanto não devia transformar-se numa anedota
Ninguém até hoje fez tanto pelo cinema português
O ICA irá reforçar a fiscalização dos projectos em curso
É uma espécie de Adamastor, com muito bons resultados para os filmes
É um dos últimos românticos
do cinema
Não vou
voltar a filmar com ele
Quando ele
se retirar vai ser o colapso
Neste momento, o nome Paulo Branco fecha portas
Foi importante até 2000. Parecia-me um Quixote do cinema português
a Paulo Branco morre e ressuscita várias vezes ao longo deste trabalho.
Na boca dos seus contemporâneos vai aparecer como Adamastor, Fernão Mendes Pinto, Quixote e ex-Quixote.
Uma lenda viva, coisa para que poucos portugueses estarão talhados. Há dias, um artigo na Variety chamava-lhe franco-português, aliás. Franco-atirador também estaria bem.
Uma verdade, segundo pessoas que recentemente trabalharam com ele, adiante identificadas: agora "o nome dele fecha portas". "Não há conversa de actores em que não exista uma anedota sobre a falta de pagamento", "perdeu o sentido da realidade", está em "declínio" e depois aparece "num festival a beber champanhe". As pessoas não falam mais "porque têm medo de ficar fora do sistema". O sistema é ele. É o retrato de um país.
Outra verdade, segundo pessoas que trabalharam ou trabalham com ele, adiante identificadas: o nome dele é o único que abre tantas portas. Foi júri em Berlim e em Veneza, "Bravo Branco!" na Cinemateca francesa e Branco "em retrospectiva" na Filmoteca Espanhola, homenageado em Viena, Tóquio, Locarno, Taormina, Taipé ou no Chile, Paolo, Paulô, aquele que por si só traz os grandes a Portugal ("se o Paulo Branco me convidar", Wim Wenders) e sem o qual não se fariam vários filmes, em Portugal e na Europa. "Defende os autores", "corre riscos", "respeita a liberdade criativa". Em menos de 30 anos, produziu mais de 200 filmes e entretanto tornou-se distribuidor e exibidor. Continua a ser de longe o maior produtor português, foi repetidamente considerado o mais europeu dos produtores independentes, é "o último produtor", "o último romântico", e quanto ao bigode teve razão antes de a moda voltar, nunca mudou - idem para a roupa, que em Cannes ou Alcochete é como se estivesse a tratar dos cavalos, por desplante ou por se estar nas tintas.
A verdade, pela boca dele: para "ter prazer como produtor aos 57 anos", só com "a paixão de acreditar num projecto muitas vezes contra tudo e todos". O prazer é "trabalhar com pessoas tão opostas, aproveitar da experiência deles", "todos os dias serem diferentes", "fazer acontecer o impossível", "o que de outra forma não existiria" - e estar "orgulhoso de 98% dos filmes" que fez (e foi para defender os filmes que fazia, "por obrigação", diz, que se tornou distribuidor e exibidor). Viveu "imensos conflitos muitas vezes positivos", mas não fala deles "antes de os filmes estarem estreados". O resto são "pequenas histórias", "o importante está no ecrã".
Uma verdade não exclui a outra, entre as várias de que falam os seus contemporâneos: "Ninguém fez mais pelo cinema português", "está a dar cabo de tudo o que fez", continua a fazer o que faz. "Quando desaparecer será o colapso em Portugal" e na Europa "já é difícil encontrar alguém como ele".
Uma perna em Portugal, outra em Paris, e é como montar a cavalo. Ele monta entre os melhores do mundo, e não admite receber ordens.
Há dois anos deu por finda a breve e tumultuosa aventura do maior multiplex do país, 21 salas em Alcochete, declarando insolvência. No mês seguinte era júri no Festival de Roterdão e meses depois apresentava três produções no Festival de Locarno.
Este Novembro, tirou da cartola o seu próprio festival, o European Film Festival, montado em três meses, como se ter cá David Lynch, Pedro Almodóvar e Don DeLillo fosse tu-cá-tu-lá, coisa de telefonar aos amigos.
A essa mesma hora, enquanto recebia as estrelas no Casino do Estoril, actores e técnicos de pelo menos duas produções suas reclamavam serem pagos.
Uma das equipas, a de Cinerama, primeira longa metragem de Inês Oliveira, tornou público o caso e pediu uma auditoria ao Instituto de Cinema e Audiovisual (ICA).
Noutra equipa, a de Veneno Cura, segunda longa de Raquel Freire, há pagamentos em atraso e requerimentos via advogado.
Ainda durante o festival do Estoril, o realizador Sérgio Tréfaut apresentou uma providência cautelar contra Branco por contas a acertar.
Uns milhares de euros aqui e ali, peanuts ao pé dos milhões que Branco move e que fazem mover boa parte do cinema que se faz em Portugal, coisa de peões no grande tabuleiro. Sem peões não haverá jogo, mas os peões são muitos e o jogo é só um - sem jogo é que não há mesmo peões.
É o retrato de um país, ou do estado das coisas.
Caução Vieira da Silva
Nascido em 1950 (Lisboa), num ambiente de cavalos e toiros (Montijo), Paulo Branco foi educado pelos jesuítas do São João de Brito, de onde saiu "ateu convicto". Estagiou no filme Perdido Por Cem de António Pedro Vasconcelos, não acabou por um triz Engenharia Química e partiu para Londres, onde viveu dois anos de expedientes vulgares (restaurantes e etc) e depois do seu invulgar talento de jogador e apostador (poker, corridas). Mudou-se para Paris em 1973 e conheceu Frédéric Mitterrand, que tinha um cinema e o convidou a colaborar.
Mas é com o apoio do pintor Jorge Martins que Branco obtém a sua própria sala, a Action République. Será uma das primeiras lendas, a de como este espaço - por onde passaram Deleuze, Foucault, Godard, Truffaut, Bisset ou Barthes - foi conseguido com a caução de um quadro de Vieira da Silva, que pertencia a Jorge Martins.
E já vêm daí os desentendimentos contabilísticos. "Ele tem uma extraordinária capacidade de trabalho, de intuição", reconstitui Jorge Martins, que em fim dos anos 70 cortou com Paulo Branco. "Mas não é muito escrupuloso com a palavra, o que lhe permite tomar decisões com rapidez."
Jorge Martins diz ter salvo a pintura de Vieira da Silva in extremis, quando Branco já estava a fazer coisas que lhe "escapavam completamente" - a ele, Jorge Martins. No Action République, Branco programou cinema português e fez de Amor de Perdição, de Manoel de Oliveira, um sucesso. Oliveira convidou-o então para produtor e iniciou-se uma longa relação que veio a influenciar todo o cinema português, abrindo-lhe os festivais de todo o mundo, e tornando obras pouco vistas em long sellers internacionais.
Além de Oliveira - e, no estrangeiro, Tanner, Schroeter, Téchiné, Wenders, Honoré ou Auster -, Branco trabalhou com quase todos os realizadores do cinema português de autor.
Estreou recentemente, vai estrear ou tem em produção obras de novos e consagrados - além de Skolimowski e Schroeter -, de José Nascimento, João Canijo e Luís Filipe Rocha, a Raquel Freire, Jorge Cramez, Catarina Ruivo, Tiago Guedes e Inês Oliveira.
Os casos dele
O que está em jogo nas contestações que vieram a público? No caso de Sérgio Tréfaut, "cerca de 8 mil euros da distribuição do filme e não faço a menor ideia de quanto pela distribuição do DVD", de os Lisboetas, diz este realizador, que interpôs a providência cautelar para deter a distribuição. "Paulo Branco tem aquela frase fantástica "Telefona-me que eu resolvo". Mas é sempre mentira. As vezes que tentei falar de pouco ou nada serviram."
Responde Branco: "É um conflito comercial. Os Lisboetas existem porque um senhor chamado Paulo Branco decidiu dar uma sala de cinema a um documentário que achou interessante. E correu muito bem. Houve um trabalho feito da nossa parte e dele [Tréfaut] que tornou o filme um sucesso. Posteriormente também com o DVD. Há pequenas questões de contas ainda por acertar, mas há muitos sítios para se ir tratar disso."
No outro caso público, o da rodagem de Cinerama, de Inês Oliveira, "não só os salários foram pagos em atraso, como alguns técnicos e a maior parte dos actores receberam cheques sem provisão", diz Michelle Chan, que trabalhou como técnica no filme e preside ao Centro Profissional do Sector Audiovisual. A "constante renegociação das datas para pagamento" resultou num "ambiente de desconfiança", com os novos acordos a serem "feitos individualmente e em tom de sussurro". A resposta de Branco, segundo Chan, "foi parar a rodagem, assumindo que já não tinha o dinheiro atribuído para a produção". "Despediu toda a equipa e impôs como condição para continuar voltar a contratar só os técnicos que aceitassem receber a 31 de Dezembro."
A realizadora diz que "esta fase delicada da produção" não lhe "permite detalhar o processo". Sentiu que "as falhas nos pagamentos se sobrepuseram demasiado aos assuntos criativos", e quanto a Branco acrescenta apenas: "Não pude nunca beneficiar das qualidades que em tempos foram características deste produtor, como a sua enorme rede de conhecimentos. Pelo contrário. Neste momento, o nome Paulo Branco fecha portas..."
A carta de contestação, assinada por 18 técnicos, incluindo a realizadora, foi entregue a Branco a 16 de Outubro. A 22 foi pedida ao ICA a auditoria "para se apurar a razão da falta de dinheiro que já tinha sido entregue ao produtor", mais de 300 mil euros.
O presidente do ICA, José Pedro Ribeiro, adianta que "na próxima semana será tomada uma decisão".
"Se tivessem tornado públicos todos os conflitos que tive com os filmes, os realizadores, tínhamos aí uma telenovela", relativiza Branco. "Há 10 mil pessoas que trabalharam comigo. Que haja alguns técnicos, alguns sem experiência, como essa senhora, que não gostem de mim, é mais do que natural."
Um dos assinantes da contestação, que trabalhou no filme como anotador, é Jorge Cramez, realizador de O Capacete Dourado, que Paulo Branco produziu.
"Entreguei o projecto ao Paulo Branco porque ele tem uma relação privilegiada com festivais de cinema, sabendo que ele é um exibidor", explica Cramez. A rodagem "correu bem mas houve pessoas que receberam um ano depois". "Eu não recebi ainda tudo."
E, "pode ser coincidência", mas "terça-feira a carta [de contestação] foi assinada e quinta o filme desapareceu das salas". "Abri o jornal e não estava lá. E isto na semana em que era mais uma vez o filme recomendado na Time Out. Foi talvez o filme mais mediático dos últimos de Paulo Branco e ele não o manteve. Até na Bola fiz uma página. Foi pedido para 20 ou 30 cineclubes."
Cramez acha que apanhou Branco "no declínio, com a história de Alcochete". "Levei um ano para acabar porque não havia dinheiro, atrasou-se a montagem e só foi acabado porque foi seleccionado para Locarno." Acha que o produtor "nunca morreu de afecto pelo filme".
Sobre a retirada do filme, Paulo Branco garante que "estava com as salas vazias" e mostra um gráfico: "Fez 374 espectadores na primeira semana e ficou mais três. Normalmente um filme com estes números salta logo na primeira semana. Agora, com muita pena minha. Não fico nada contente. Dou as chances todas aos filmes. Se há alguém que deu chances aos filmes em Portugal fui eu."
Cramez tem ainda outra questão recente: "Concorri com o Paulo ao projecto de apoio à escrita de argumentos e ele tirou-o a meio, sem me avisar. Liguei-lhe e ele disse que eu o andava a insultar pela rua. O que eu disse é que ele devia ter tido mais carinho pelo filme..."
Decidido a "não voltar a filmar com Paulo Branco", Cramez pensa que para este produtor "o cinema já passou a ser uma coisa secundária" e alude ao festival do Estoril: "És produtor, recebes dinheiro, tens que pagar às pessoas. Não pagas e depois estás num grande festival de cinema a beber champanhe?"
A propósito, conclui, "o ICA devia ser responsabilizado pelos filmes que saem, saber o percurso deles, fiscalizar as rodagens e amá-los depois deles estarem feitos".
O P2 devolveu a questão a José Pedro Ribeiro, presidente do Instituto: "O ICA irá reforçar a fiscalização dos projectos."
Veneno Cura, de Raquel Freire, é um dos filmes produzidos por Branco pronto a estrear. Até isso acontecer a realizadora prefere não falar. Mas dois dos actores do filme falam de faltas de pagamento.
"Eu vou ser pago esta semana por um filme que terminou em Maio de 2006", conta Miguel Moreira. "Uma pessoa que fez tanto pelo cinema não devia transformar-se numa anedota. Não há conversa de actores em que não exista uma anedota sobre a falta de pagamento e de seriedade de Paulo Branco. Há uma tensão que se vive no interior das equipas porque se pensa que não vai pagar." Telefonou "várias vezes" ao produtor "a dizer: tens de pagar", e "havia casos de outros colegas em que se tratava de muito dinheiro".
Não é fácil falar porque o meio é pequeno. "Sei que nunca mais entrarei num filme que ele produza." Mas Miguel Moreira acha que é preciso falar: "Estou muito cansado do silêncio. Há menos dinheiro, uuma tensão muito grande, muita gente a abandonar. Esta história do Paulo Branco acontece num sistema que está a apodrecer. Todos os artistas gostariam de ter um Paulo Branco forte, ninguém tem gozo em vê-lo aflito. Não é falar mal. É falar do que é."
A João Garcia Miguel, Branco deve "cerca de 5000 euros". "Passou-me um cheque de 400 euros que não tinha cobertura. Pus o cheque uma segunda vez e ainda não tinha. No final do ano passado insistiu para que eu levantasse o dinheiro." À terceira conseguiu receber os 400 euros. Para o resto, começou a pensar num processo. "O meu advogado escreveu a Paulo Branco, que lhe comunicou que não tinha pago porque o filme tinha problemas técnicos o que fizera com que ele o tivesse parado."
Garcia Miguel interroga-se: "Como é que Paulo Branco pode passar cheques sem cobertura repetidamente? O banco permite? Ele passou a vários de nós cheques sem cobertura."
Também neste caso, Paulo Branco prefere nada dizer: "Não falo em filmes que estão em produção. Os filmes são julgados no fim, o trabalho deles e o meu."
Se Miguel Moreira e João Garcia Miguel são actores que trabalharam residualmente com Branco, que tem a dizer o maior veterano de todos os filmes produzidos por ele, Luís Miguel Cintra?
"Tenho um enorme respeito pelo Paulo Branco, pelo que ele conseguiu fazer. Não é fácil ser produtor de cinema de autor. Felizmente, não tenho conhecimento por que meios conseguiu fazê-lo." Mas ressalva: "O meu caso é especial. Faço cinema porque gosto de colaborar com os realizadores, as relações laborais contam menos, e sei que há coisas difíceis, que tem havido situações graves na relação empregado-patrão com Paulo Branco. Eu sujeitei-me sempre a condições extremamente precárias e sempre tive o respeito dele."
Os entusiastas
Na nova geração do cinema português, Branco também conta com vozes entusiastas.
Tiago Guedes, que com ele fez Coisa Ruim e com ele está a fazer a segunda longa, acha que "Portugal sem Paulo Branco tinha muito menos cinema", porque ele "conseguiu fazer muitos filmes sem dinheiro, arriscou". Vê-o como "um produtor que percebe muito de cinema e dá uma enorme liberdade criativa, defende muito os autores, e essa liberdade vai ser importante para o surgimento de novas vozes e a continuidade de alguns que se calhar sem ele não existiam".
Tendo chegado "na fase do problema económico em que Paulo Branco se encontrou", nomeadamente com o imbróglio de Alcochete, Tiago Guedes "estava à espera de uma rodagem com dificuldades, que não aconteceram".
Catarina Ruivo, que com Branco fez André Valente, e com ele se mantém em Daqui Prá Frente, a estrear, partilha esta visão: "É alguém que gosta de cinema e corre riscos. Que distingue rapidamente o essencial do acessório. Que sempre me deu total liberdade criativa e respeitou as minhas escolhas, o que para mim não tem preço."
Hugo Vieira da Silva, autor de Body Rice, uma primeira obra estreada este ano, foi uma aposta de Branco. "Passei por inúmeros festivais, de Locarno ao México, de Hong-Kong a Buenos Aires, conheci muita gente interessante, e essas pessoas tinham muitas vezes o Paulo como referência", resume. Fala da "liberdade incomensurável" que encontra nele. "Não existe ponto de equilíbrio; tudo são extremos. E isso é sedutor." Salienta o seu "permanente estado de inquietude, um crónico desalinho com todos os que o pretendem domesticar e a capacidade de ter uma visão própria". Diz que "o Paulo não procura objectos "perfeitos"": "Não lhe interessa o design, a mim também não. Ele ignora olimpicamente qualquer tentativa de formatar os projectos em função do sucesso comercial." Sabe "instintivamente o que é o cinema".
Exemplo de um jovem realizador que fez uma primeira obra de sucesso com Branco, Alice, e agora está a trabalhar com outro produtor é Marco Martins. "Foi uma escolha difícil, mas infelizmente não chegámos a acordo sobre as condições para um novo projecto", explica. "Não tanto financeiras mas relacionadas com os direitos sobre a obra." Isto dito, vê Branco como "o maior responsável pela criação e definição do cinema moderno português (pós-cinema novo) e um dos grandes produtores europeus das últimas três décadas". Sendo uma "figura altamente controversa", é "um sobrevivente e um caso único de persistência e longevidade", homem de "grande cultura e um dos últimos românticos do cinema".
No seu caso, Marco Martins reconhece como "muito importante o acompanhamento" de Paulo Branco na montagem de Alice. "Foi ele que após 11 semanas de montagem sugeriu que continuássemos por mais seis com outro montador, Roberto Perpignani."
O mítico montador do documentário Torre Bela. Paulo Branco convidou-o e a toda a família a instalarem-se em Lisboa, e assim nasceu o que o realizador descreve como "um outro olhar sobre o filme", "uma nova e saudável discussão sobre o material filmado".
Ninguém como ele
Luís Filipe Rocha, que recentemente estreou A Outra Margem, produzido por Branco, fala num "respeito absoluto pelos autores", em rapidez, competência e capacidade para defender os filmes até ao fim, da produção à defesa internacional, e destaca em especial "um genuíno amor ao cinema", que "nos últimos 40 anos apenas outro produtor, António da Cunha Telles, demonstrou possuir", um amor que é prazer mas também é risco. Tudo pesado, incluindo os defeitos que Branco também tem, diz, "ninguém até hoje fez e continua a fazer, dentro e fora de Portugal, mais do que ele pelo cinema português".
João Mário Grilo considera "globalmente excelente" os "muitos anos" e quatro filmes em que trabalhou com Branco, até fim dos anos 90. "Acho que estes últimos anos têm sido bem mais difíceis, em parte porque é excepcionalmente difícil a vida do cinema em Portugal e por isso o Paulo foi obrigado a deslocar grande parte das suas capacidades para a distribuição."
Mas se os anos "80 e 90 foram muito bons", deve-se a Paulo Branco. "Não há nenhum realizador que não tenha um bom par de cicatrizes por ter trabalhado com ele, mas não haverá ninguém que não reconheça a importância dessa colaboração no resultado final." A figura que lhe ocorre é a de um "titã", "uma espécie de Adamastor", com o qual os realizadores se confrontaram, "em geral com muito bons resultados para os filmes".
Já hoje, diz, "as piores pessoas no cinema português são as pequenas réplicas do Paulo Branco, os Adamastores de papelão que pouco mais são que arruaceiros".
João Canijo - um realizador que Paulo Branco referiu muitas vezes entre os eleitos, ao lado de João César Monteiro, Oliveira, João Mário Grilo, Pedro Costa - tem um filme para estrear, produzido por Branco, Mal Nascida. Começa por resumir, numa frase: "Foi uma pessoa muito importante para o cinema português até aos idos de 2000." Como? "Inventou maneiras de fazer filmes em Portugal. Produzia sem ter o financiamento total. Nos anos 80, muito difíceis, era um dos poucos produtores activos, à custa de financiamentos que conseguia arranjar em França e países europeus. Conseguia distribuindo o dinheiro em excesso nuns filmes por outros em defeito. O meu primeiro filme foi feito sem um tostão, em 1985, com as sobras de outros, financiamentos do Ruiz. Achei bem durante muito tempo. Pareceu-me uma aventura justa. Uma espécie de Quixote do cinema português."
Que aconteceu a partir de 2000? "Houve uma enorme dispersão de actividade. Os Freeport correram mal." E mais não diz.
Das suas cinco longas-metragens, Teresa Villaverde fez duas com Paulo Branco. Agora está a trabalhar com outro produtor, a Filmes do Tejo. No depoimento que enviou ao P2, fala na luta que sempre há entre realizadores e produtores. "Às vezes luta quase animal, só que sem sangue (até ver, como acho que diria João César Monteiro). A minha luta com o Paulo Branco foi às vezes brutal, mas da minha parte sempre frontal. Por isso, pelo respeito pelo cinema, até pelo amor ao cinema, não me sinto bem expondo aqui razões que me levam a ir trabalhar com este e não com aquele."
Pedro Costa, que com ele trabalhou em dois filmes - antes de partir para projectos radicais, como O Quarto da Vanda -, preferiu não falar.
João Botelho, que trabalhou, deixou de trabalhar, voltou a trabalhar e deixou de trabalhar com Branco, também declinou falar, por não prestar declarações ao PÚBLICO.
E Manoel de Oliveira, que ao fim de 20 e tal anos e tantos filmes, deu por encerrada a mais longa relação realizador-produtor do cinema português - nem Oliveira nem Branco explicam porquê -, respondeu, através da família, que "não dá opinião sobre Paulo Branco".
Ao P2, Paulo Branco só teve palavras elogiosas para Oliveira, "um monstro" que o país ainda não reconheceu: "O cinema português existe graças ao Manoel de Oliveira e as pessoas ainda não se aperceberam disso." Considera-o uma das pessoas com quem mais aprendeu na vida - a par de Serge Daney e de João César Monteiro, de quem diz ter muitas saudades - e declara que Oliveira pode contar sempre com ele.
De resto, não é um problema os realizadores irem e virem, diz. "Em França passa-se muito, as pessoas vão, voltam, é normal, tem que ser normal. É benéfico para ambas as partes." Dá o exemplo de João César Monteiro, "uma relação tumultuosa", com altos e baixos, que não evitou uma amizade extremamente profunda".
Sobre a montanha russa que é a relação de alguns realizadores com Branco, comenta Fernando Lopes, que com ele trabalhou: "Espero bem (para bem deles, claro!) que o Sr. Manoel de Oliveira e o Torquemada que dá pelo nome de João Botelho, não se arrependam."
E quanto a Branco, como é que o vê? "Como há 40 anos, quando o conheci no balcão do Gambrinus. Achei logo que ele iria ser uma espécie de Fernão Mendes Pinto do cinema português (e do europeu). Ou seja, teria as qualidades dos seus defeitos e os defeitos das suas qualidades. Ou seja ainda, como num país em diminuitivo, respeitinho é que é preciso, estava feito (é preciso, aqui, dar desconto à sua megalomania)!... Mas o Paulo, neste país paroquial e provinciano, com o seu modo funcionário de viver, com os seus brandos costumes dos corredores do poder, é a imagem mais cinematográfica que temos do Last Producer do nosso pobre cinema. É por tudo isto, entre outras coisas, que sou amigo dele."
E se indigna: "O cinema português chegou à degenerescência, produção, distribuição e exibição, tal como estava quando começámos, em 1961. Todos os produtores estão tecnicamente falidos. Chegámos à estaca zero e o Ministério da Cultura não fez nada. Esse é que era o dossier a fazer nos jornais. Tenho 72 anos, já fiz 12 ou 14 filmes, mais documentários e curtas, não é por mim, mas as pessoas que estão agora a sair das escolas vão encontrar um deserto, vão trabalhar a senhas de almoço para umas coisas de televisão." Este - avisa- é que é o verdadeiro drama: "Faltas de pagamentos acontecem e não é só em Portugal. Mas quando o Paulo Branco desaparecer como produtor, distribuidor e exibidor vai ser o colapso, e parece que toda a gente quer isso. É o lado de ressentimento, só precisam dele quando acham que ele é importante para os festivais."
Na Associação de Produtores há "20 e tal" profissionais, diz o presidente Tino Navarro. "Mas os únicos com regularidade nos últimos 20 anos sou eu e o Paulo." Navarro relativiza o retrato lancinante de Lopes: "O presente é sempre a pior altura do cinema português. Sempre ouvi dizer que "nunca esteve tão mau"."
Quanto às faltas de pagamento serem quase norma, distingue: "Sempre assumi os compromissos nos prazos devidos. Se tenho de pagar no dia 1 é no dia 1."
O distribuidor Pedro Borges, que trabalhou anos com Paulo Branco, acha que ele está a destruir o seu próprio trabalho.
"Durante 16 anos, os anos em que o Paulo Branco deixou, entre nós, de ser apenas mais um produtor, para se tornar o produtor de quase tudo o que de extraordinário se fez no cinema em Portugal; os anos em que se fez uma das melhores distribuidoras do mundo; os anos em que aqui se fizeram cinemas como mais ninguém fez; trabalhei com ele com muito gosto. A socos e pontapés, contra a indiferença, senão mesma a hostilidade aberta, das instituições oficiais e do pequeno meio invejoso do cinema português, fizeram-se coisas maravilhosas que hão de ficar para sempre. Deixei lá couro e cabelo com muito orgulho. Há um ano e meio, por divergências insanáveis, deixei de trabalhar com o Paulo. E porque ele não honrou a sua palavra, cortámos relações. Mas mais do que por isso, o que não sei se poderei perdoar-lhe é ter vindo, nos últimos anos (e mesmo tendo em conta a situação catastrófica por que passa o cinema em Portugal) a dar cabo de tudo o que foi feito."
E quem tem dinheiro a haver não aceita o passado como justificação.
"Tenho admiração pelo que Paulo Branco fez", diz João Garcia Miguel. "Mas parece que perdeu a noção da realidade. Fala connosco como se ficasse ofendido. Está num processo de auto-justificação. Numa entrevista, dizia que as dívidas eram uma questão menor, que o importante era a audácia, pôr a cabeça no cepo, ter feito filmes. Mas isso não pode ser feito à custa das pessoas. Se não existe capacidade de o país gerar meios para os artistas pagarem as contas, não existe o país. Ele está a ser financiado pelo dinheiro que é de todos nós."
O realizador Werner Schroeter conhece Branco há 30 anos. Um dos filmes seus que Branco produziu foi O Rei das Rosas. "Tudo tinha que ser muito rápido porque Madalena Montezuma, a actriz e minha companheira, estava a morrer com um cancro. E ele organizou, improvisando tudo. E foi algo muito belo de ver, o que é possível improvisar."
Um homem capaz disto, diz Schroeter, simplesmente "não precisa de ser confirmado por idiotas, não precisa de se justificar". Lembra um artigo na imprensa alemã em que Branco era referido como "um dos poucos que tinha arranjado dinheiro, mesmo pirateando-o". Dinheiro para o cinema, e "é tão raro gente que ama realmente o cinema".
De resto, Paulo Branco não pode viver sem isto: "Um dia sem risco não é um dia, disse-me ele. Ele é carpe diem." Aproveita o dia. "É uma necessidade, é a vida dele, jogando, improvisando, com intuição, tudo isso. Como produtor, é um artista, de alguma forma." E "não é sentimental, é valente". Em suma: "Está a ver o Johnny Depp naquele filme do pirata? Ele é assim. O único pirata do cinema europeu, o melhor pirata, o pirata mais maravilhoso. Os piratas têm dois lados, mas eu não falo do lado negro, porque não sou contabilista."
Schroeter volta em breve a Portugal para filmar uma ideia do seu velho amigo Branco, uma adaptação de Juan Carlos Onetti.
Paulo Branco conta que em tempos Godard lhe pediu ajuda para conhecer Onetti. Branco arranjou o encontro e ficou ele próprio muito impressionado com Onetti. O filme que Branco e Godard chegaram a planear (metia Pessoa, O Filme do Desassossego) nunca aconteceu e é uma das coisas que Paulo Branco lamenta, nunca ter produzido Godard.
Portanto, desse não-filme de Godard ainda vai sair o filme de Schroeter. A Branco basta saber que as coisas aconteceram assim. Ele fê-las acontecer.