Guimarães é a cidade com mais bombos por metro quadrado

Pode não ser científico, mas é verdade pelo menos a 29 de Novembro. O pinheiro sai à rua e com ele milhares de pessoas

a Eles andam aí - medo, muito medo.Eles quem? Não tanto eles, os homens (e cada vez mais as mulheres, mas lá chegaremos), mas eles, os bombos e as caixas.
Qual é a cidade com mais bombos e caixas por metro quadrado? Pode até nem ser científico, mas a 29 de Novembro só pode haver uma resposta certa: Guimarães.
Eles andam aí e saem de todo o lado. De cada rua (Largo do Toural, Largo da Oliveira, Alameda de São Dâmaso), de cada edifício, de cada café (a cervejaria Martins está a abarrotar de copos vazios e de gente com caixas na mão), de cada restaurante, de cada carro, de cada autocarro (Transportes Urbanos de Guimarães, direcção Nespereira), de cada clínica dentária (!). Eles são uma família e é dia de festa de família na cidade. Salvaguardadas as devidas distâncias, há em Guimarães a 29 de Novembro uma espécie de Natal antecipado - lá mais para a noite, madrugada, vá lá, é mais de uma espécie de Carnaval que se fala.
Até ao próximo dia 7, Guimarães parece estar fechada. Não para obras mas para as Nicolinas, as seculares festas dos estudantes das escolas secundárias que a cidade primeiro estranhou (já lá vão 343 anos) e depois entranhou. E se há momento alto das Nicolinas ele é mesmo 29 de Novembro: é o dia do pinheiro, que marca o arranque das festividades.
E o dia do pinheiro (digamos que ele já é uma espécie de figurante nas festas, o que interessa mesmo são os bombos, as caixas, as jantaradas, o convívio entre novos e velhos nicolinos) vive-se de forma intensa na cidade. Cheira a festa logo pela manhã. E, numa espécie de prenúncio do que vai ser a noite mais longa do calendário vimaranense, o rufar dos bombos faz-se logo notar. Seja nas mãos dos miúdos dos infantários, que saem à rua em fila indiana, seja nas dos mais graúdos, que saem à rua, desordenados, para mostrar o orgulho que têm em ser - ou terem sido - nicolinos.
Na pastelaria Medieval, no Largo da Oliveira, por volta das 14h30, as conversas giram todas à volta do mesmo. "Até amanhã. E juízo no pinheiro, ouviu?", recomenda uma das funcionárias a um cliente. "Tu também vais?", devolve o homem. Ela: "Eu, amanhã, estou aqui para trabalhar às 8h00, mas é claro que vou, até vou trabalhar com mais speed."
A Rádio Santiago, a transmitir um programa de discos pedidos, faz menção ao cortejo do pinheiro; uma senhora, vaidosa, vem mostrar as fotografias que tirou ao filho, três, quatro anos, no desfile "da escolinha"; a dona da pastelaria insiste com os elementos da Comissão de Festas (CF) que conversam com o PÚBLICO que quer "um cartaz das Nicolinas". "Sou vimaranense com muito orgulho e estas festas fazem parte da cidade." Cartazes não há - só um autocolante que vai parar à caixa registadora.

Espécie de tocha olímpica"É, é mesmo assim, as Nicolinas fazem parte da cidade e enchem toda a gente de orgulho", conta Rui Macedo, 18 anos, presidente da CF das Nicolinas deste ano. Ele próprio está orgulhoso por, em dois anos seguidos, ter "a honra" de presidir às festas. "O afecto da cidade perante a comissão é muito e isso dá-nos um sentido de responsabilidade enorme e ao mesmo tempo um orgulho também muito grande." Na mesa estão também André Novais, 18 anos, igualmente da CF, e André Coelho Lima, 33 anos, e Rui Barreira, da Associação de Comissões de Festas Nicolinas.
Isso mesmo: para além da Associação de Antigos Estudantes do Liceu de Guimarães/Velhos Nicolinos (agrupa, claro está, ex-alunos da cidade), formou-se uma associação para agrupar quem já teve "o privilégio" de organizar as festas que os estudantes oferecem à cidade. É disso que se trata: de uns festejos inteiramente organizados por alunos, adianta André Coelho Lima (ver texto ao lado).
Não desfazendo qualquer outro dos números (a designação é mesmo esta) das Nicolinas, a noite do pinheiro é especial. Porquê? Explica Rui Barreira: "Marca o arranque das festas, é como se fosse uma espécie de tocha olímpica, que depois fica plantada ao lado da Igreja de São Gualter até ao fim das Nicolinas."
E de onde vem tal costume? André Coelho Lima: "O nome das festas vem do tributo a São Nicolau, patrono dos estudantes e protector dos pobres e dos mais desprotegidos. Embora se pense que a tradição possa ser ainda mais antiga, a data que se costuma referenciar como a que marca as festas de uma forma contínua é 1664, quando começou a ser construída a Capela de São Nicolau." Aponta lá para fora: da pastelaria Medieval dá para ver o que resta desta capela, contígua à Igreja da Oliveira.
A tradição de tocar caixas e bombos, explica André Coelho Lima, radica "nos costumes do Minho e da Galiza". Até à meia-noite de dia 29, ouve-se por toda a cidade um rufar ensurdecedor - uma espécie de ensaio geral para o que há-de vir. Medo, muito medo.

Catarse colectivaNa verdade, o toque ouve-se a toda a hora e pela madrugada dentro. O dia do pinheiro é de catarse colectiva. As baquetas parecem ter vida própria na mão de cada vimaranense: velho (uma ou outra bengala), novo (muitas chupetas na boca), homem (barba rija ou nem por isso, cachimbos e charutos) ou mulher (écharpes, casacos de peles e muita maquilhagem) - todos com uma caixa ou um bombo na mão.
É praticamente impossível definir um antes e um depois do cortejo. O pinheiro está estacionado no Campo de São Mamede, atrás do castelo, em cima de carros de bois. E na verdade vêm cortejos de todos os lados - vêm bombos de todos os lados, caixas de todos os lados, batucadas de todos os lados. Quando é que isto realmente começa?, apetece perguntar. Mas no fundo isso não interessa nada: o pinheiro está lá, a percorrer as ruas da cidade. E a cidade está nas ruas com ele.
Tradicionalmente, e por ser também um acto de enaltecimento da condição masculina (basta olhar para a forma fálica do pinheiro e notar que, regra geral, é escolhida a árvore mais alta da região), as mulheres ficavam de fora do cortejo. Os tempos mudaram: no desfile de quinta-feira, eram mais eles, sem dúvida, mas elas também lá estavam a bater furiosamente nas caixas e bombos. Conceição Félix, Aurora Cardoso e Alberta Lemos juntaram-se há três anos para desfilar na noite do pinheiro "armadas" com um bombo gigantesco que vão tocando alternadamente. "Primeiro vinham os nossos maridos e nós só vínhamos assistir. Há uns tempos passámos a vir também", conta Conceição. Com elas vieram os filhos.
Definitivamente, Guimarães é a cidade com mais caixas e bombos por metro quadrado. Já não temos medo: primeiro estranhamos, depois entranhamos. E é impossível controlar os impulsos: à falta de melhor, batemos com a caneta no bloco de notas.
Foi apenas uma questão prática. Daniela Xavier, 30 anos, economista, está de pé no restaurante Jordão (fechado ao público, abre apenas a 29 de Novembro para a ceia nicolina da Associação dos Antigos Alunos do Liceu de Guimarães/Velhos Nicolinos) e tem uma caixa na mão. Nada de especial, parece - elas acabaram por "adquirir, gradualmente, o direito de participar no cortejo do pinheiro", há-de explicar Augusto Costa, presidente dos Velhos Nicolinos. Mas há um pequeno equívoco: Daniela está apenas à espera do marido, "que foi à casa de banho" (risos). A opinião dela é claríssima: "Como antiga estudante, participo nesta noite apenas como espectadora. Não concordo que as mulheres toquem caixa ou bombo. Sobretudo porque a simbologia que está associada a este cortejo é de um acto de afirmação sexual. Pelo menos neste dia, acho que as mulheres deviam retirar-se, não faz sentido que não se respeite a tradição."
André Coelho Lima faz questão de sublinhar que não é "nada machista - zero, mesmo", mas vai dizendo que tem uma opinião semelhante. "Esta é, sem dúvida, uma acção iniciática dos rapazes. E, se virmos bem, é até uma exibição um tanto grotesca, não tem sentido as mulheres participarem."
Elas, há-de ver-se pela noite dentro, não estão nem aí - ou melhor, estão em todo o lado, e acorrem em força ao cortejo. Aqui e ali, há mesmo despiques para ver quem bate com mais força. Hoje a cidade não dorme. S.S.C.
Ponto de ordem para esclarecer dúvidas: as Nicolinas são uma festa organizada por rapazes (dez da Comissão de Festas, ajudados por antigos nicolinos) mas são dedicadas às raparigas. O dia 6, consagrado ao desfile das Maçãzinhas, é o que melhor retrata o carácter romântico dos festejos - a explicação segue dentro de momentos.
Agora é tempo de explicar os próximos capítulos. Depois de amanhã, é dia das Posses, que mais não são do que um peditório feito pelos estudantes em alguns locais da cidade. O resultado da colecta - normalmente alimentos - é depois partilhado com a população junto da Praça de Santiago. Para quarta-feira está agendado o Pregão, uma declamação satírica feita por um estudante eleito dentro da Comissão de Festas (aquele que tem a voz mais portentosa) e apresentada em vários pontos da cidade.
Chegámos às Maçãzinhas. Acontece no dia mais importante - o Dia de São Nicolau. Na prática, é um desfile em que, de lança em punho, os rapazes oferecem maçãs às raparigas que assistem ao espectáculo das varandas. Em troca dos frutos, elas retribuem com pequenas prendas simbólicas. Ao longo dos tempos, tem sido dos números menos participados das Nicolinas, uma vez que o contacto entre rapazes e raparigas é cada vez mais facilitado. No mesmo dia, acontecem ainda as Danças de São Nicolau, um espectáculo próximo do teatro de revista integralmente representado pelos rapazes. Também a 6 de Dezembro - ou no domingo que lhe for mais próximo -, a Irmandade de São Nicolau manda rezar a missa de devoção ao santo que deu o nome às festas.
A 7 de Dezembro, o Baile Nicolino encerra os festejos. Pelo meio, há ainda as novenas (nove missas, de 30 a 8 de Dezembro), que são também de tributo a Nossa Senhora da Conceição. Os estudantes assistem a algumas destas missas, às 6h30, e regressam à cidade a tocar bombos e caixas.
As Roubalheiras é que já não têm data fixa - já houve alguns aproveitamentos. Como o nome indica, consistem em pequenos furtos que já levaram carrinhos de choque para o meio de uma praça da cidade. Todos os objectos "desviados" são sempre devolvidos aos respectivos donos. S.S.C.
a Uma vez em Guimarães, é impossível não reparar em três coisas: na devoção à própria cidade (em que outro lugar alguém se lembraria de ter como toque de telemóvel o hino de Guimarães?); na devoção ao Vitória Sport Clube (não há varanda que não tenha uma bandeira); e na devoção às Nicolinas (elas são uma instituição da cidade, ponto final.) Falta é perceber porquê.
Augusto Costa, presidente da Associação de Antigos Alunos do Liceu de Guimarães/Velhos Nicolinos, dá uma ajuda. "Há em Guimarães um espírito nicolino muito impregnado nas pessoas", analisa. Esse espírito, prossegue, resulta "de um reviver do espírito académico, que é também um espírito fraternal e de solidariedade". À parte os dias de folia, continua, as Nicolinas "têm um ADN humanista extraordinário, que se junta aos valores da amizade e da alegria que lhes são característicos".
É deste espírito que fala a estátua que o escultor José de Guimarães concebeu para a cidade. O monumento ao Nicolino, revela Augusto Costa, evoca uma espécie de capa nicolina em ondulação (vermelha e não preta, como manda a tradição) e tem mais ou menos implícita esta mensagem: "Uma vez estudante, estudante para toda a vida."
O monumento de José de Guimarães foi apresentado como uma das jóias da coroa das Nicolinas deste ano mas não há ainda certezas se será inagurado ainda durante as festas. "Está em fase acabamentos, de pintura, numa fábrica automóvel em Lisboa. E aquilo é um trabalho que leva o seu tempo", informa Augusto Costa.
Como também leva o seu tempo a candidatura das Nicolinas a Património Imaterial da UNESCO. "Já houve a aprovação de uma proposta na assembleia municipal. E para que o processo vá avante é preciso criar um lobby, é assim que as situações se resolvem. E a verdade é esta: não somos nós que podemos fazer este lobby, julgo que é a câmara que o deve fazer", comenta Augusto Costa.
A acontecer, este reconhecimento da UNESCO dará ainda mais relevo às Nicolinas, acredita Augusto Costa. Mas pode também trazer "alguns perigos inerentes à profissionalização". "As Nicolinas, para serem Nicolinas, têm de continuar a ser organizadas por estudantes", sublinha. Porque é por isso que elas são "tão atraentes e têm tanto charme."
Mais do que charme, elas são verdadeiramente "mágicas", classifica Daniela Xavier. O PÚBLICO procurou saber se há algum ponto de contacto entre as festas dos alunos das escolas secundárias de Guimarães e as Queimas das Fitas, mas o máximo que conseguiu foi o esboçar de sorrisos quase trocistas. "Eu estudei no Porto e a Queima nunca me disse nada. É apenas uma festa de loucura, sem qualquer objectivo. Nas Nicolinas tudo faz sentido, os estudantes vivem-nas de forma sentida. São mágicas, sabe?"
De resto, os alunos das escolas secundárias de Guimarães "são os únicos que usam capa e batina", e as Nicolinas foram "as únicas festas que nunca foram interrompidas por qualquer regime político", realça André Coelho Lima. Sorri, vaidoso, e depois sai-se com esta: "Se as Nicolinas fossem em Lisboa, no Porto ou em Espanha, tinham uma dimensão portentosa. Mas se calhar ainda bem que é assim, são nossas e nós sentimo-las intensamente."
É o orgulho da cidade a funcionar, está mais do que visto. S.S.C.
1664
é a data que se costuma referenciar
como a que marca a realização das festas de uma forma contínua

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