A independência do Kosovo
que mais impressiona neste processo é o ar de fatalidade. Não haverá acordo sobre o Kosovo até à data limite de 10 de Dezembro. Hashim Thaçi, antigo chefe da guerrilha albanesa que acaba de vencer as legislativas, proclamará a independência. Os Estados Unidos reconhecê-la-ão. Os europeus, embora divididos, deverão seguir os americanos. A Rússia e a China vetarão o reconhecimento no Conselho de Segurança. A UE e a NATO serão forçadas a manter o novo Estado sob tutela. É "o último mas inacabado capítulo da balcanização dos Balcãs", iniciada nos anos 1990, escreve no Guardian o colunista Simon Jenkins. Temem-se as consequências em três planos: violência no Kosovo, um efeito de dominó sobre os separatismos, na região e fora dela, e um agravamento da tensão entre o Ocidente e a Rússia.
Um pequeno sinal: Londres seguirá a posição de Washington, mas tanto o MNE David Miliband como o "ministro sombra" da Defesa conservador, Liam Fox, alertaram esta semana para o risco de reabertura dos conflitos na região.
A UE pressiona para que a decisão seja diferida por alguns meses e submetida a referendo. No entanto, o americano Richard Holbrook, que negociou o fim da guerra na Bósnia, declarou a um jornal alemão: "Os albaneses do Kosovo declararão a independência dentro de um mês."
Oito anos depois da guerra de 1999, está fora de questão reintegrar o Kosovo na Sérvia. O problema esteve congelado graças a um protectorado internacional. Belgrado aceita os mais amplos estatutos de autonomia mas não a perda formal da soberania sobre a província. Apoiados pelos EUA, os kosovares só aceitam a independência. A Rússia exige uma solução que tenha o acordo das duas partes. O quadro negocial está, assim, completamente bloqueado.
Em Março, o finlandês Martti Ahtisaari, enviado especial da ONU, apresentou ao Conselho de Segurança a proposta de uma ambígua "independência sob supervisão internacional". O compromisso falhou, mas aquela fórmula continua a ser o único modelo de que a UE dispõe: "A nova nação deve ser categoricamente controlada pela UE e uma força internacional deve permanecer."
A KFOR - a força da NATO - e a polícia da ONU já tomaram medidas para ocupar a fronteira com a Sérvia e pontos sensíveis do território.
cenário da queda dos dominós foi equacionado há muito tempo. Uma declaração unilateral de independência, sobretudo se reconhecida pelos EUA e principais Estados europeus, teria efeitos sobre a República Sérvia da Bósnia, cuja população deseja pertencer à Sérvia. O Norte do Kosovo, de maioria sérvia, recusar-se-á a integrar o novo Estado. Tudo isto teria imediato impacto na Macedónia, cuja região muçulmana se quer ligar à Albânia. Reforçaria também as pulsões separatistas noutras regiões. Moscovo avisa que uma independência unilateral do Kosovo inspirará os separatistas (pró-russos) da Transnístria, na Moldávia, ou os da Abkhazia, na Geórgia: seria abrir a Caixa de Pandora e, se fosse legitimada pela ONU, constituiria um precedente incontrolável em todo o mundo.
O segundo temor diz respeito ao Kosovo. Há eleições mas não existem reais instituições democráticas. É uma província administrada por funcionários internacionais. Um recente relatório da UE traça o quadro negro dum paraíso de máfias e corrupção. Teme-se o recrudescimento dos confrontos intercomunitários e o regresso da "limpeza étnica", agora com sinal inverso. No Kosovo ou na Bósnia, "a paz nunca passou de armistício", escreve um jornal alemão.
Será um país economicamente inviável. O diplomata britânico David Webb diz ao Guardian que os problemas económicos - o mais baixo rendimento per capita da Europa e uma taxa de desemprego de 60 por cento - são tão graves que a independência "será ilusória".
O terceiro efeito é a abertura de uma nova frente de tensão entre Ocidente e Rússia. Os americanos foram os grandes beneficiários da mudança geopolítica dos Balcãs após a desintegração da Jugoslávia. Instalaram bases na região. Moscovo vê a independência do Kosovo como mais um facto consumado imposto pelos EUA e pela NATO. Se houver proclamações unilaterais na Transnístria ou na Abkhazia, a tensão será muito forte.
A ponderação destes riscos leva países "sensíveis" - como Espanha, Grécia, Chipre ou Eslováquia - a rejeitar a independência do Kosovo. A Alemanha encara o problema com pessimismo, mas quando Washington reconhecer o Kosovo Berlim fará o mesmo. A UE acabará por alinhar com os EUA. A razão é límpida: impedir que Moscovo utilize a divisão da Europa para alargar a sua margem de manobra.
O Kosovo é hoje uma causa americana e um problema europeu. A Europa espera que os EUA controlem Hashim Thaçi, seu protegido. E, como este se prepara para dirigir um Estado "assistido", cuja factura é paga pela Europa, esta exige que ele tenha maneiras. "O Sr. Thaçi tem de perceber que há uma diferença entre ser político na oposição e ser primeiro-ministro. Não penso que [os kosovares] queiram ser independentes da comunidade internacional", avisou o antigo primeiro-ministro sueco Carl Bild, com muitos anos de experiência nos Balcãs.
m dos factores que mais complica o jogo é o facto dos principais actores estarem intoxicados pelo passado, recente ou longínquo. "Quem perdeu o Kosovo?" Antes de mais Milosevic, ao anular em 1989 a autonomia da província, como meio de tomar o poder em Belgrado. Como sempre, os sérvios sabem que perderam mas nenhum político está disposto a "suicidar-se" assinando a renúncia ao "berço da nação". A Europa dividiu-se perante a desintegração jugoslava e assistiu impotente à tragédia da Bósnia. Quando chegou a altura de dizer "basta" a Milosevic, europeus e americanos tiveram de proclamar um "genocídio" para legitimar o ataque à Sérvia sem o aval do Conselho de Segurança. A Europa continua a viver a sua "culpa".
Por seu lado, os albaneses não cessam de evocar as suas origens mitológicas e de sonhar com uma "Grande Albânia".
Hashim Thaçi, 39 anos, - "A Serpente", segundo o nome de guerra - merece atenção. É a grande incógnita do jogo que agora se abre. Começou a carreira num grupo partidário da "Grande Albânia", que em 1996 deu lugar ao "Exército de Libertação do Kosovo". Depois de ter constado da lista de "grupos terroristas" do Departamento de Estado, o UÇK foi promovido pela Administração Clinton a movimento de libertação. Thaçi fez o seu papel. A clássica táctica "acção, repressão, acção" acelerou os massacres pelo exército sérvio e marginalizou durante a preparação da guerra o movimento independentista largamente maioritário, a Liga Democrática do Kosovo (LDK), de Ibrahim Rugova, que preconizava a luta por meios pacíficos.
Falecido Rugova, a LDK dividiu-se e Thaçi chegou finalmente ao poder. É o vencedor da guerra de 1999.