Figueiredo Dias A "aula do pijama" do Sr. Penalista

Atingido o limite de idade, 70 anos, "o pai do Código Penal" deu a sua última aula. Deu, é como quem diz. Ficou em casa, até poderia estar de pijama, se assim quisesse. Respeitou a misteriosa tradição da Faculdade de Direito de Coimbra onde só foi mostrar que, após uma vida cheia e um currículo de respeito, está para ficar

a Para ser mesmo à letra, às 12 horas desta quarta-feira, Figueiredo Dias, conhecido como o "pai do Código Penal", devia estar em casa de pijama.Veste afinal um fato impecável mas, na realidade, um pijama bastaria, apesar de aquele ser um momento marcante da sua vida de professor da Universidade de Coimbra. Sentado à secretária, em sua casa vai vigiando o telemóvel onde a filha faz chegar uma mensagem escrita, dizendo-lhe como está a decorrer a "última aula" do pai. Ele lê a SMS e sorri: "Parece que está a correr bem."
Confuso? Certamente. Manda a tradição secular que, atingido o limite de idade, 70 anos, a última aula de um professor catedrático da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra não seja dada pelo próprio, mas por um discípulo. E que o próprio nem sequer deve estar por perto, quanto mais assistir a essa aula.
Ninguém parece saber quando e porquê nasceu esta tradição que a poucos agrada. Entre si, os professores chamam-lhe a "aula do pijama", já que quem a "dá" poderá estar a "dormir enquanto ela decorre". A explicação não é apresentada num tom menos sarcástico: "Ninguém vai ao seu próprio enterro." Mas isto é o que dizem em off.
Em on, ninguém sabe explicar a tradição a que, num vocabulário muito próprio dos professores de Direito de Coimbra, se referiu Costa Andrade, aquele que na sala 8 proferiu "a última aula" de Figueiredo Dias. "[Trata-se] de uma tradição que, nem por estar consolidada, se pode reivindicar da mais apolínea das racionalidades", disse. A mulher de Figueiredo Dias, irritada por ter de deixar o marido em casa para ir assistir, com os quatro filhos de ambos, à última aula daquele com quem está casada há 47 anos, foi mais directa: "Isto é um absurdo!"
Houve quem a quebrasse, à tradição. O mítico Orlando de Carvalho que, sem provocar escândalo - ninguém se espantava com as suas excentricidades - anunciou que, como não tinha discípulos, seria ele a dar a sua última aula. E deu. "Eu não poderia usar a mesma justificação", diz Figueiredo Dias, orgulhoso dos que lhe chamam mestre.
Em casa, não mostra ansiedade. Mas sorri, satisfeito, com a mensagem da filha: "Auditório cheio e colorido. Brancos e pretos, chineses e timorenses, velhos e novos, ministros e funcionários, alunos e ex-alunos. Só falta o homenageado."
Uns minutos depois, é uma assistente que continua o relato: "O Dr. Costa Andrade está a fazer um belo discurso, mas sentimos muito a sua falta. Beijinhos."
Carpe diem
""Beijinhos", vê? Isto mostra a relação fantástica que tenho com os meus discípulos", diz Figueiredo Dias. Pouco antes, enredara-se numa tentativa frustrada de explicar o que é um discípulo. Neste caso, não é um aluno. Mas alguém que, inspirado no mestre, seguiu, em diálogo com este, o seu próprio caminho. Mais tarde, num curto discurso na sala do conselho científico da faculdade (uma fuga à tradição justificada pela recém inaugurada galeria de retratos a óleo de antigos professores), havia de dizer: "Não sei se dei mais aos meus discípulos do que aquilo que recebi. Eles trazem-me as suas investigações. Eu dei-lhes o quê? Recebi-os, ouvi-os, conversei com eles. E assim se fez o fundamental: o espírito da escola."
Há "últimas aulas" pouco concorridas. Não foi o caso, uma prova de que é por muitos reconhecido. Já não é o rapazinho, filho dos donos de uma tabacaria de Viseu, que há mais de 50 anos chegou a Coimbra para cursar Direito. É, dizem muitos, o penalista português mais conceituado, no país e no estrangeiro.
Figueiredo Dias esteve na origem da elaboração e revisão de todos os códigos de Direito Penal e Processo Penal do período democrático, à excepção da última reforma. Tem uma vastíssima obra traduzida em várias línguas - até em chinês. Ocupou todos os cargos possíveis na faculdade. É membro da direcção das mais prestigiadas associações internacionais de Direito Penal. Isto para resumir um longuíssimo currículo que justifica que, enquanto está em sua casa, um auditório se encha.
Como é que chegou aqui? Fazendo "o que gosta", seguindo o seu lema: Carpe diem (aproveita o dia). Como aluno desprezou as disciplinas que menos lhe agradavam (tendo mesmo notas que diz serem "pouco dignas") e empenhou-se nas que o apaixonaram. Era recém-licenciado quando, em Outubro de 1959, o então professor catedrático de Direito Penal, Eduardo Correia, aproveitou o intervalo de um espectáculo no Teatro Avenida para lhe dizer: "Amanhã quero falar consigo." Estava à espera. Tinha tido um 18 à disciplina e era sabido que havia uma vaga para assistente.
Primeiro assustou-se. Era tímido, assegura este homem de gestos seguros. Mas logo nas primeiras aulas percebeu que ali se soltava e espantou-se: "Caramba! Gosto disto!" "Gostar" é a palavra-chave. Os alunos reconhecem-lhe uma capacidade pedagógica de excepção. Não dava uma aula sem recorrer a exemplos práticos, sem referir um poema, uma peça musical, uma obra literária que davam sentido à mais maçadora das teorias jurídicas. Diz que o fazia "sem esforço". Que a beleza do Direito Penal está nisso mesmo: no facto de estar intrinsecamente ligado à condição humana.
Primeiro "grande ralhete"
Figueiredo Dias lembra-se do "primeiro grande ralhete" de Eduardo Correia, nos anos 60, quando ousou referir, numa aula, aquilo que hoje se designa por interrupção voluntária da gravidez: "Você é doido ou quê?! Lê os apontamentos, pergunta se há dúvidas e pronto."
Foi ele, Eduardo Correia, que lhe ofereceu a oportunidade da sua vida. Encarregado de fazer o primeiro Código de Processo Penal, no início da década de 60, permitiu-lhe assistir à gestação da obra. "Gostava de me ter por perto, nem sei porquê..." A verdade é que quando os projectos foram entregues, Figueiredo Dias estava, nas suas próprias palavras, "um Sr. Penalista".
E "um Sr. Penalista" com uma peculiaridade que não é bem aceite por todos os pares: tinha e tem uma visão que nos últimos dez anos, por exemplo, o fez debruçar-se sobre os riscos futuros, explorando temas como o ambiente e a genética. Justificação, para muitos falível: "Os penalistas têm o dever de proporcionar condições de protecção e de tutela não só à sociedade actual, mas também aos que hão-de vir."
"Amanhã, cá estarei"
À época, Eduardo Correia, que não queria ou não gostava de viajar, abriu-lhe portas no estrangeiro. Figueiredo Dias correu o mundo. Tornou-se numa espécie de embaixador do Código Penal e do Código de Processo Penal portugueses. Mas a timidez só a dominou, diz, com o 25 de Abril, que o fez ingressar numa breve mas intensa actividade política, entre 1974 e 1978. Fundador do PPD, foi obrigado a fazer comícios em salas cheias e vazias, em espaços nobres e em feiras. Dominou a ansiedade, conquistou a capacidade de improviso. Era membro da Comissão Política Nacional do PPD e líder da bancada parlamentar quando soube que estava aberta a vaga para catedrático na Faculdade de Direito, onde não deixara de dar aulas, como assistente.
A "democracia de estilo ocidental" por que lutara estava estabilizada. Desligou-se da vida partidária e regressou a Coimbra "para fazer o que gostava". Mas manteve a actividade política pela mão de Ramalho Eanes, que apoiou na disputa pela Presidência da República. Foi conselheiro de Estado e membro da comissão constitucional até à sua extinção, em 1984.
Assim se enche um auditório. Aquele onde, à margem da "última aula" que proferiu em nome do mestre, Costa Andrade lamentou que Figueiredo Dias não tenha sido ouvido para a recente reforma dos códigos da sua autoria. "Se eu fosse seleccionador nacional, escolheria os melhores jogadores e não outros", criticou. É com estudada ironia que o próprio Figueiredo Dias aborda o assunto: "Muitas vezes me têm pedido pareceres. Desta vez não terá sido necessário."
Dá a entender que não se perde pela demora. Está a analisar os códigos, vai alertando para que "não poucas vezes uma pequena alteração afecta toda a estrutura do edifício" e avisa que, quando achar conveniente, será "sua obrigação e gosto" emitir um parecer. Por enquanto, mede as palavras: "Às pessoas que fazem parte da comissão [de reforma] ligam-me laços de amizade que não quero que sejam tocados."
Não, aquilo que alguns tomam como um enxovalho não lhe estragou o dia, anteontem. Foi à faculdade, onde o seu gabinete lhe continua reservado. E, quando à margem da tradição lhe deram oportunidade de proferir algumas palavras, usou-a para dizer que teve "uma vida feliz, a vida que quis" e da qual gostou. Fez votos de que assim continue a ser e, aos que brincam com a história de ninguém ir ao seu próprio funeral, mostrou que está para ficar: "Amanhã, cá estarei."

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