Torne-se perito

1927-2007 Maurice Béjart A revolução sem rupturas

Tornou-se kitsch e redundante, mas foi um dos mais importantes coreógrafos da Europa dos anos 60 e 70. Um rapazinho franzino, neto de um pescador e filho de um filósofo a quem um médico receitou a dança. Em Portugal, todos se lembram do seu discurso contra as ditaduras durante o Estado Novo

a Quem tenha chegado à dança nos últimos 15 ou 20 anos vê-lo-á como pouco mais do que um autor kitsch e narcisista, perdido na espectacularidade fácil e de gosto duvidoso, criador de obras para coliseus cheios mas com pouco pensamento crítico. Para a história da dança ficará, contudo, como um dos mais influentes e transformadores coreógrafos da Europa das décadas de 60 e 70, um "artesão", como gostava de referir-se a si próprio, que revolucionou o ballet clássico, arrastando-o por caminhos insuspeitos, frequentemente polémicos. Maurice Béjart, o rapazinho franzino a quem um médico um dia receitou a dança como forma de ganhar músculo, morreu anteontem, perto da meia-noite no centro hospitalar de Lausanne, na Suíça, onde tinha sido internado no fim da semana passada pela segunda vez em menos de um mês para tratamentos cardíacos e renais intensivos e previstos para várias semanas, segundo anunciou ontem o Béjart Ballet Lausanne, a companhia que fundou e dirigia há 20 anos. Béjart tinha feito 80 anos a 1 de Janeiro deste ano. Tinha mais de meio século de carreira, incluindo obras de referência como Messe Pour Le Temps Present (1968), Bolero (1961) ou, ainda antes, Sinfonia para um Homem Só (1955), baseado na obra homónima de 1949 dos compositores franceses Pierre Schaeffer e Pierre Henry e conhecido como o primeiro ballet de sempre a utilizar música concreta, um exemplo da sensibilidade moderna que faria a fama do início da carreira de Béjart, também um dos primeiros coreógrafos a usar música electrónica e um dos poucos a trabalhar com vocabulário clássico na Europa que se deixou inspirar pelo movimento hippie norte-americano e se ligou à mitologia oriental, à qual foi buscar uma sensualidade e uma liberdade de movimentos mal vistas pelos circuitos mais conservadores da clássica.
Um rapazinho de Marselha
Béjart e a sua companhia estiveram em Portugal pela última vez em 2004, quando o Coliseu do Porto e o Coliseu dos Recreios de Lisboa fizeram parte da digressão das suas três últimas criações entre as quais Ciao Federico, uma homenagem-obituário estreada na altura dos dez anos da morte do realizador Federico Fellini, com quem o coreógrafo conviveu, e que surgiu na sequência de várias obras dedicadas a uma série improvável de grandes nomes do século XX (Guevara, Pasolini, Chaplin, Godard, Fritz Lang, Versace, Freddy Mercury, Madre Teresa da Calcutá...), e La Musique Souvent Me Prend Comme Une Mer, uma peça autobiográfica, segundo o próprio Béjart, "a estranha história de um rapazinho de Marselha".
"Esse rapazinho sou eu. Nasci em Marselha e tive que repartir o meu tempo entre a escola, a minha paixão pela dança e a obrigação de ajudar o meu avô, que era pescador", explicou na altura.
Filho do filósofo Gaston Berger, Béjart, que em 1994 se tornou membro da Academia Francesa de Belas Artes (recebeu também a Ordem do Sol Nascente, que lhe foi entregue em 1986 pelo imperador japonês Hiroito, e foi nomeado Grande Oficial da Coroa pelo Rei Balduíno da Bélgica, em 1988), começou por estudar dança aos 14 anos primeiro em Marselha, depois em Paris (com Staats, Egorova, Kiss, Rousanne) e Londres (com Volkova). Estreou-se em Vichy em 1945, quatro anos antes de entrar para o International Ballet (1949-1950) onde interpretou quase sempre o Príncipe de O Lago dos Cisnes, ao lado da conhecida primeira-bailarina Mona Inglesby - antes de entar para o Royal Sweedish Ballet (1950-1952).
Béjart tinha 26 anos quando fundou a sua primeira companhia com o escritor Jean Laurent, a Les Ballets de L"Etoile (1953), da qual foi director artístico e solista até à sua transformação, quatro anos depois, no Ballet Théâtre de Paris, para o qual coreografaria, entre outras, obras tão conhecidas como Sonata a três (1957), baseado na peça Houis Clos, de Jean-Paul Sartre e com música de Béla Bártok. Pouco depois criaria a sua mundialmente aclamada Sagração da Primavera (1959) para o Théâtre de La Monnaie da Ópera de Bruxelas, com um corpo de bailarinos especialmente reunidos para a ocasião e que seriam a base da formação do Ballets do Século XX, a companhia residente no La Monnaie quando, face à resistência dos círculos mais tradicionais da dança clássica em França, Béjart decide exilar-se em Bruxelas. O exílio seguinte, e até hoje, seria a Suíça, em 1987, depois de um braço de ferro com o director do La Monnaie, mas é com os Ballets do Século XX que nascem Bolero (1961), A Nona Sinfonia de Beethoven (1964), Romeu e Julieta (1966) e Messe pour le temps present (1967).
Foi por esta altura que a actriz Lídia Franco chegou a Bruxelas para o seu próprio exílio. Tinha 20 anos e era bailarina do corpo de bailado que daria origem ao Ballet Gulbenkian quando saiu de casa dos pais - e quando Margarida Mónica, mãe da socióloga Maria Filomena Mónica e uma das responsáveis pela companhia, lhe disse que ou voltava a viver com eles ou era melhor deixar a companhia. "Eu sei que parece mentira e pré-histórico. Na altura, aproveitei a boleia e fui para a Bélgica", conta a actriz.
Absolutamente fascinante
Na Bélgica, acabada de ser mãe, e praticamente com o filho ao colo (voltou ao trabalho quando este tinha dois meses), Lídia Franco começou por fazer aulas no Conservatório onde foi vista por Béjart e convidada a trabalhar com a sua companhia. "Tenho sempre a imagem de estar no estúdio com o meu filho bebé numa cadeirinha ao lado do Béjart e de ele ficar muito contente quando eu vinha para a frente de cena e de começar a chorar quando eu ia para trás. Lembro-me até de, um dia, quando isso aconteceu, o Béjart olhar para ele e dizer: "Eu gosto muito da tua mãe, mas ela não é a estrela da companhia. Vejo sempre o coreógrafo Maurice Béjart ao lado do cientista Miguel Soares", diz a actriz (o filho é investigador do Instituto Gulbenkian de Ciência).
Lídia Franco recorda Béjart como "uma pessoa absolutamente fascinante" por quem os bailarinos tinham "verdadeira devoção" - só o seu famoso olhar azul, um olhar glacial "de gato, absolutamente magnético, já nos fascinava". E sublinha que a liberdade com que o coreógrafo escolhia intérpretes de diferentes origens e formações ("havia escultores e pintores"), porventura até frágeis do ponto de vista técnico e com corpos longe do cânone clássico, constituía, à época, uma das maiores riquezas da sua companhia. Ela própria era mais forte do ponto de vista interpretativo que técnico, diz, e recorda ser inicialmente também esse o caso de Victor Ullat, hoje tido como uma das figuras chave da dança espanhola, e do argentino George Donn, o companheiro de Béjart que morreu com sida em 1992 e para quem Béjart concebeu muitas das suas obras (Bhakti, em 1968, Nijinsky, clown of God, em 1971, Golestan, or The garden of roses, em 1973, Ce que l"amour me dit, em 1974, Notre Faust, em 1975, Leda, em 1978, Adagietto, em 1981...).
Foi também na altura em que Lídia Franco se exilou na Bélgica que, em Portugal, se deu o famoso "caso Béjart".
O caso Béjart
A 6 de Junho de 1968, depois da apresentação de Romeu e Julieta no Coliseu dos Recreios, Béjart, que estava em Lisboa a convite da Fundação Calouste Gulbenkian, subiu ao palco para anunciar o assassinato de Robert Kennedy nesse mesmo dia, nos Estados Unidos - aproveitou também para homenagear as vítimas de todas as ditaduras. "Robert Kennedy foi assassinado... Foi vítima da violência e do fascismo. Como todos os que estão aqui esta noite, somos contra as ditaduras... Peço um minuto de silêncio", terão sido as sua palavras.
A assistência, entre a qual estavam o então ministro dos Negócios Estrangeiros, Franco Nogueira, e a filha de Américo Tomás, terá aplaudido por 20 minutos. Na manhã seguinte, numa recepção da embaixada da Bélgica no Hotel Condestável, Béjart seria preso e levado num carro blindado até um posto fronteiriço num ermo em Espanha, onde foi deixado; a sua companhia foi enviada de avião no dia seguinte ficando canceladas todas as outras apresentações previstas do espectáculo (voltariam todos a Portugal em 1974, logo a seguir à revolução, para apresentar o mesmo espectáculo também no Coliseu).
A expulsão terá sido motivo do rompimento de relações entre o então presidente da Fundação Gulbenkian, José de Azeredo Perdigão, e Salazar, diz o investigador José Medeiros Ferreira num livro sobre os 50 anos da Fundação Gulbenkian que vai ser lançado em Lisboa na próxima semana (dia 29) - o investigador baseou-se em correspondência entre Azeredo Perdigão e Salazar.
O historiador de dança, José Sasportes diz que devemos recordar, "para nos redimir-mos", este "episódio humilhante". "Grato pela experiência estética" de vários bailados, José Sasportes fala de Béjart como "um revolucionário que abalou a França e o academismo", mas também como alguém que "acabou por se fechar num estilo auto-referencial produzindo obras de teatralidade redundante".
Jorge Salavisa, director artístico do Teatro Municipal São Luiz e ex-director artístico do extinto Ballet Gulbenkian, sublinha o lado pedagógico de Béjart tanto nas suas escolas (primeiro a Mudra, em Bruxelas, depois a Rudra, em Lausanne) como no facto de ter sido "o primeiro a levar a dança a grandes públicos, em salas como o Coliseu de Lisboa ou estádios, sempre cheios": "A Mudra, influenciou muitíssimo o ensino da dança e o seu modelo foi sendo repetido, com adaptações, em centros como a Parts [Performing Arts Research & Training Studios], da [Ane Teresa De] Keersmaeker." Que inovação trouxe a Mudra? "Foi nela que Béjart começou por mostrar que a dança não é só dança, que para a estudar e trabalhar é preciso o teatro, a música, as tradições orientais."
Com anos recentes "infelizes" como criador (palavras de Salavisa), Béjart deixa uma "herança muito diluída", diz Vasco Wellenkamp, director artístico da Companhia Nacional de Bailado. "Não criou uma linguagem totalmente nova, de ruptura, como fizeram coreógrafos norte-americanos como Martha Graham e José Limón, ou mesmo os expressionistas alemães, mas foi um grande inovador do ponto de vista teatral. Os seus bailarinos eram brilhantes tecnicamente e serviam perfeitamente o propósito de renovar sem rejeitar - Béjart foi dos primeiros coreógrafos europeus a fazer coisas muito diferentes do clássico e do neoclássico, mas sem nunca lhes virar as costas totalmente."
Béjart foi um "revolucionário conceptual", defende Wellenkamp: "Foi um dos maiores pensadores da dança do século XX, criador de obras com grande densidade e carga dramática." com L.C.

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