Partidos e movimentos
É óbvia a urgência da reforma dos partidos, mas não se vê sinais dela entre nós
Em artigo anterior, contestei a acusação de populismo que foi atribuída por Vasco Pulido Valente à candidatura presidencial de Manuel Alegre e à minha candidatura em Lisboa. É importante saber se a democracia participativa, em que ambas se fundaram, pode contribuir para a reforma da democracia representativa. Pierre Rosanvallon, no seu livro La contre-démocratie, analisa o actual paradoxo da democracia: o ideal democrático tornou-se universal, mas os regimes democráticos são cada vez mais criticados, assistindo-se a uma erosão da confiança nos representantes. Esta questão leva-o a aprofundar o papel da desconfiança, tão importante em democracia como a confiança. Daí o seu conceito de contrademocracia, que se desdobra em três direcções: vigilância sobre os eleitos, poder de impugnação e poder de julgar. A contrademocracia também pode conduzir a derivas, nomeadamente a de uma espécie de soberania popular pela negativa, que paralisa a acção política. Mas só se reforma a democracia reconhecendo e estruturando o espaço próprio da contrademocracia.
A segmentação e "privatização" da opinião pública a que a revolução da Internet deu lugar veio reforçar a contrademocracia. Já não são só os partidos - ou são-no cada vez menos - que explicam a realidade e lhe dão sentido. Também já não cabe aos media o exclusivo da vigilância sobre os eleitos. A Internet, com a sua miríade de blogues e sítios, deu origem a uma apropriação personalizada e infinitamente diversificada da expressão social, tornando cada vez mais difícil a sua leitura global. Há que "repolitizar a democracia", diz ainda o autor, restituindo-lhe a capacidade de construir uma visão comum do mundo, que tem de ser plural e partilhada. Daí a importância crescente das organizações da sociedade civil no espaço público, competindo com o discurso tradicional do poder partidário, obrigando-o a dar explicações e a "descer do seu pedestal".
Se é óbvia a urgência da reforma dos partidos, o que não se vê são sinais dela entre nós. O que vemos é retrocesso ou inércia, excessiva personalização do poder, afastamento das vozes incómodas, esvaziamento do papel das estruturas partidárias, carreirismo, medo de divergir e falta de transparência no financiamento e no uso dos fundos públicos. Pecados e omissões que não são exclusivos dos partidos políticos, bem entendido. Mas que podem e devem ser combatidos por dentro e por fora, que é o que modestamente tenho tentado.
Se o combate partidário interno é difícil, as diversas candidaturas de cidadãos até agora eleitoralmente bem sucedidas em Portugal também encontram grandes obstáculos no passo organizativo subsequente. Sem objectivos eleitorais imediatos e sem apoios financeiros, movimentos de opinião que floresceram com rapidez e dimensão inesperadas, uma vez destituídos do sentimento de urgência imposto por um calendário eleitoral, sem nenhuma fundação nem nenhum lobby económico por trás, têm dificuldade em afirmar-se, como sucede com outros movimentos políticos e cívicos, que só esporadicamente conseguem captar a atenção dos media. A agenda informativa, nomeadamente a televisiva, está ela própria confiscada pelo monopólio partidário. Não porque as editorias dependam dos partidos, mas porque os alinhamentos da "política" raramente vão além dos noticiários partidários. A invisibilidade sistemática torna-se num dos maiores entraves ao fortalecimento de movimentos cívicos, que em Portugal existem e se multiplicam todos os dias, mas poucas vezes logram alcançar uma mobilização alargada fora dos actos eleitorais.
Não se pode falar em reforma do sistema de representação ignorando este estado de coisas. Nem omitindo a reforma das leis eleitorais. Há muita gente que defende a possibilidade de os movimentos de cidadãos se candidatarem à Assembleia da República, como nas autarquias. Outros entendem que os movimentos devem passar a partidos, para poder concorrer em igualdade de circunstâncias. Quanto mais o Partido Socialista se encosta à direita, mais espaço eleitoral abre no espectro político que não reverte a favor do BE nem do PCP, como se tem visto. E vale a pena lembrar que, no caso de Lisboa, uma candidatura de cidadãos requer 4000 assinaturas de eleitores recenseados no concelho, quando para formar um partido se exigem 5000 de todo o país. A desproporção é notória, como são patentes outras desigualdades legais, de que cito apenas duas: os movimentos não têm direito a símbolo no boletim de voto e não podem reaver o IVA, ao contrário do que sucede com os partidos.
Mas o mais grave é que as notícias que temos sobre a reforma das leis eleitorais não vão no sentido da abertura mas sim do fechamento. Um pacto ainda secreto entre o PSD e o PS poderá levar a afastar do acesso ao poder executivo municipal não apenas os movimentos de cidadãos, mas todos os outros partidos, ficando na prática para os dois maiores o seu permanente exclusivo. Aqui, sim, há um "bloco central de interesses" que é preciso desmontar, antes que seja tarde.
São conhecidas as implicações do financiamento partidário e eleitoral, nomeadamente autárquico, na captura do poder político. Assim, é extraordinário que a independência e economia de meios conseguidas no financiamento de campanhas como as de Manuel Alegre ou dos Cidadãos por Lisboa - mais decisiva ainda esta pelo facto de não haver nenhum subsídio público - seja um pormenor sem relevância na generalidade das análises. De que valem os manifestos contra a corrupção, se não se começa por escrutinar com mais cuidado esta matéria?
Não basta por isso analisar programas, discursos e resultados. Diz-me quem te paga e eu te direi quem és, eis um bom tema para a análise crítica objectiva do valor intrínseco de candidaturas de cidadãos, movimentos cívicos e organizações não-governamentais, bem como do seu possível contributo para a abertura e modernização do sistema político democrático. Arquitecta