A fuga da corte
Durante três dias, o cais de Belém foi o centro de Lisboa. Foi para lá que se dirigiu a família real e milhares de nobres e funcionários, que tentavam arranjar lugar nas embarcações para o Brasil. Os relatos da época traçam um quadro grotesco da fuga de uma nobreza acobardada, falam de caos e de riquezas abandonadas no meio do pânico. Hoje os historiadores olham para o episódio de outra forma. Por Alexandra Prado Coelho
a Chovia muito. As ruas começavam a transformar-se num lamaçal. Havia gente desorientada por todo o lado, e um movimento inusitado em direcção a Belém. Há tempo que corriam por Lisboa rumores de que a família real estaria a preparar a partida para o Brasil, mas no dia 26 de Novembro de 1807 já não restavam dúvidas a ninguém - a decisão fora, finalmente, tomada no dia anterior numa reunião do Conselho de Estado. Com as primeiras tropas francesas já em Portugal, a família real e grande parte da nobreza corria a Belém e preparava-se para deixar o país. Não eram, a acreditar na descrição feita por Raul Brandão em El-Rei Junot, cenas dignificantes. "Na véspera do embarque [que aconteceu a 27, sendo depois a partida a 29] remexe-se tudo: as roupas, as jóias, as inutilidades. Na casa de este, de aquelle, do Lavradio, do Angeja, do Cadaval, do Alegrete, há gritos, cólicas, desmaios, uma mixórdia de saque e de grotesco - arcas arrombadas, farrapos, lágrimas, desespero. Aferrolha-se e clama-se: - depressa! Depressa!... - Foge tudo, foge toda a gente de representação e de vergonha: fidalgos, ricos, pregadores, poetas obscenos, a côrte, as damas frágeis e inúteis, as figurinhas d"encanto, e as creadas, as pretas, os anões. O drama é idêntico em todas as casas soberbas: enfardela-se, enfardelam-se de mistura objectos indispensáveis, seringas de clisteres, jóias, quadros, inutilidades, vergonhas e riquezas. Depressa! Depressa!".
Hoje o olhar da historiografia é bastante diferente destes relatos que Ana Cristina Araújo, especialista no período histórico das invasões francesas, classifica como "visões paródicas, burlescas, que não compreendem verdadeiramente os motivos" da decisão de partir - embora, no caso concreto de Raul Brandão, "muito bem escrito, com um humanismo trágico a perpassar todo o relato, e uma simpatia pelos vencidos da História, tingida de indignação".
D. João, o príncipe regente hesitara até ao último momento, tentando manter a sua política de não hostilizar nem franceses nem ingleses, até ter que encarar a evidência: Napoleão ordenara às tropas francesas que avançassem e derrubassem a Casa de Bragança. Pressionado, sobretudo pelos britânicos, decidia a partida quando se esperava que os homens do general Junot entrassem em Lisboa a qualquer momento.
No entanto, desde o início de Novembro, conta Patrick Wilcken em Império à Deriva, que "D. João tinha saído em segredo de Mafra para outra residência real - o semi-construído palácio da Ajuda". Estava assim mais perto das docas, onde os navios vinham sendo carregados a bom ritmo. Tudo se acelerou a partir de 23 de Novembro, dia em que, continua Wilcken, "chegou a Lisboa, em tempo recorde, uma cópia do órgão oficial de Napoleão Le Moniteur" onde se lia "a notícia que D. João seguramente esperava mas se recusava a acreditar - o anúncio da decisão de Napoleão de pôr termo à dinastia de Bragança e usurpar o trono português".
Palácios esvaziados
Por isso, à meia-noite de 24, o príncipe mandou chamar de urgência ao palácio Joaquim José de Azevedo, oficial de diligências, para o encarregar de preparar a partida para daí a três dias. "Os escolhidos para acompanhar a família real receberam passes para si mesmos, para a respectiva família e bagagens, que tinham que mostrar no cais", conta Wilcken. Nessa mesma noite, o arquivista Cristiano Müller foi também acordado para que acelerasse o empacotamento dos registos do Ministério do Estado.
Em A Longa Viagem da Biblioteca dos Reis (que a Assírio & Alvim se prepara para lançar em Portugal), a historiadora brasileira Lilia Moritz Schwarcz dá a real dimensão do que se preparava. "Não eram, porém, indivíduos isolados que fugiam às pressas, carregando seus objectos preciosos, suas vaidades e receios. Era, sim, a sede do Estado português que mudava de endereço, com seu aparelho administrativo e burocrático, seu tesouro, suas repartições, secretarias, tribunais, seus arquivos e funcionários". Entre os objectos mandados para Belém encontrava-se, refere Schwarcz, "um moderno equipamento tipográfico recentemente comprado da Inglaterra, que ainda estava na embalagem original".
Nas residências reais, em Queluz e Mafra, a azáfama era enorme, com "criadas de copa, pagens e valetes" a "desmantelar ornamentos do palácio, a despir a basílica de todo o ouro e prata e a carregar pinturas a óleo para o exterior, sob a chuva de Outono" (Wilcken). Antiguidades, porcelanas e pratas eram enfiados em coches, que se dirigiam ao porto.
O relato de Raul Brandão é, também aqui, bem mais impiedoso, sobretudo para o príncipe regente. "Na quarta-feira à noite juntam-se as riquezas das reaes capellas, de Queluz, da Ajuda, da Bemposta e as do palácio real, as preciosidades, os thesouros que tinham celebridade na Europa. É um verdadeiro saque: calcula-se que vão para o Brasil mais de 80 milhões de cruzados."
José Trazimundo Mascarenhas de Barreto, que viria a ser o 7º marquês da Fronteira, tinha na altura apenas cinco anos, mas guardou memórias fortes desses dias, diz o investigador Nuno Simão Ferreira, a preparar uma tese de doutoramento precisamente sobre as memórias do marquês. "Minhas tias mandaram logo pôr duas carruagens que nos levaram a toda a pressa ao Cais de Belém onde reinava a maior confusão e desordem", descreve José Trazimundo.
"As bagagens da corte, expostas ao tempo e quase abandonadas ocupavam desde a rua da Junqueira até ao Cais, e as carruagens não puderam entrar no largo de Belém, porque o Estado do Príncipe, o imenso povo que estava no largo, as bagagens, e o regimento de Alcântara que faziam a guarda de honra, impediam o trânsito", escreve o marquês, que recorda a enorme tristeza das despedidas, as lágrimas, o desespero dos que já não chegavam a tempo de dizer adeus aos familiares.
No dia 26, D. João junta-se à família em Queluz, e, mais uma vez, Raul Brandão traça um retrato patético do governante, que na véspera tinha sofrido "um forte ataque de hemorrhoidal" e que anda pelo palácio, desorientado, "de beiça caída". O historiador José Acúrcio das Neves (citado por Jorge Pedreira e Fernando Dores Costa na sua biografia de D. João VI) não o ridiculariza desta forma, mas descreve o seu estado de espírito: "Queria falar e não podia, queria mover-se e, convulso, não acertava a dar um passo: caminhava sobre um abismo, e apresentava-se à imaginação um futuro tenebroso e tão incerto como o oceano a que ia entregar-se".
"Vão pensar que fugimos"
No dia seguinte, entre as onze e o meio-dia (Pedreira e Dores Costa seguem a versão de Acúrcio das Neves, que consideram a mais plausível), o príncipe regente é o primeiro membro da família real a chegar ao cais - "não havendo ninguém à sua espera, tal a dificuldade de circulação na cidade, e a deficiência na organização do embarque" - acompanhado pelo sobrinho, o infante de Espanha, D. Pedro Carlos. Nessa altura, havia já uma grande agitação entre o povo, exaltado com aquilo que via como a fuga dos poderosos. A tal ponto que "quando D. João se apeou, a multidão parecia querer precipitar-se sobre ele, sendo-lhe necessário afastar com o próprio braço o povo que o cercava".
Chegou em seguida a rainha, D. Maria, "a louca", a quem é atribuída a frase que, na altura, muitos consideraram como a única lúcida. "Não corram tanto, ainda vão pensar que fugimos", terá dito a mãe de D. João. Por fim chegou a princesa, D. Carlota Joaquina, e os filhos, D. Pedro e D. Miguel, Maria Teresa, Maria Isabel, Maria da Assunção e Ana de Jesus Maria - os homens e a rainha ficaram no Príncipe Real, o navio-almirante, e as mulheres no Afonso de Albuquerque.
Para além da família real, terão embarcado para o Brasil entre 10 e 15 mil pessoas. "Era uma entourage sobretudo fidalga e muito numerosa", diz Ana Cristina Araújo, sublinhando que, ao contrário do que parecem indicar muitos relatos da época, "a corte que partiu é altamente ilustrada e inclui figuras marcantes na cena política internacional de finais do século XVIII".
Era o príncipe regente uma figura tão frágil e indecisa como é a que surge nestes relatos? Ana Cristina Araújo acha que não. "Foi pusilânime porque retardou a decisão [de partir], mas o que ele queria era passar a ideia de que a decisão fora tomada in extremis, e a verdade é que há muito que as embarcações vinham sendo preparadas". E, sublinha, tratou-se de uma decisão "justificável no contexto da salvaguarda do Império e da renegociação, num segundo momento, de uma posição influente no plano internacional".
A ideia de que a partida se deu no meio de um enorme caos e de que muita coisa teria sido abandonada no porto também é hoje rejeitada por muitos historiadores, que falam em "retirada estratégica" e não em "fuga". "[O caos] é uma ideia distorcida, que sustentaria a tese da fuga da família real, da qual discordo categoricamente", afirma o historiador da arte José Monterroso Teixeira. "D. João teve uma série de iniciativas e precauções em relação ao que levou, inclusivamente mandou fazer embalagens especiais para o envio da baixela francesa, que tinha milhares de peças. Quando regressou a Portugal, em 1821, o rei deixou parte da baixela para o filho D. Pedro, mas trouxe a maior parte."
O príncipe teve também, segundo Monterroso Teixeira, "o cuidado de proceder à remessa e embalagem muito cautelosa de uma pepita de ouro nativo, que faz hoje parte dos nossos tesouros nacionais, e que ele terá levado no seu camarote". As tropas francesas terão depois procurado esta pepita por todo o lado, no Palácio da Ajuda, porque vinha citada "numa lista bastante exaustiva de bens a saquear".
Onde estava a coroa?
Mais misterioso é o destino do tesouro da Real Capela de Vila Viçosa, em relação ao qual os historiadores se dividem, explica Monterroso. Há, por um lado, a tese de que D. João tinha dado ordem para que fosse acondicionado e levado para Lisboa, mas há também quem defenda que foi objecto de saque pelos franceses. Certo é apenas que o tesouro desapareceu. Misterioso também parece ser o destino da coroa, que D. João IV, primeiro rei da dinastia de Bragança, oferecera simbolicamente a Nossa Senhora da Conceição de Vila Viçosa pela protecção concedida na altura da Restauração de 1640, e que, por isso, não era usada pelos monarcas. Só se ouve falar de coroa novamente quando D. João VI manda fazer em 1817 uma nova, já no Brasil, e que hoje está guardada no Palácio da Ajuda.
Mas, apesar de todas as precauções, conta Lilia Schwarcz, "nas praias e cais do Tejo, até Belém, espalhavam-se pacotes, caixas e baús abandonados na última hora. No meio da bagunça, e por descuido, toda a prataria da Igreja Patriarcal, trazida por catorze carros, foi esquecida na beira do rio e só alguns dias depois voltou para a igreja. Carros de luxo foram abandonados, muitos sem terem sido descarregados. Houve quem largasse a mala, embarcando de mãos vazias, apenas com a roupa do corpo". Para trás, "abandonados no porto [...] debaixo de sol e chuva", ficou também um dos grandes tesouros nacionais - os sessenta mil volumes, encaixotados, da Biblioteca Real da Ajuda (é a história desta biblioteca que Schwarcz reconstitui no seu livro) - que acabariam por seguir mais tarde e por ficar no Brasil.
Entretanto, a tensão crescia, ouviam-se insultos do povo - "os que estavam prestes a ser abandonados ao invasor francês" (Wilcken) -, cada vez mais numeroso junto ao cais. Já dentro das embarcações, a família real e os nobres ainda tiveram que esperar mais um dia, porque a chuva e o vento impediam a partida. Só a 29 de manhã as condições melhoraram e a frota régia deixou, finalmente, o porto iniciando uma longa e difícil viagem até ao Brasil.
No dia seguinte Junot chegava às portas de Lisboa.