A delicadeza urgente
Não chorem. O Beaux Arts Trio despediu-se do público português, mas vai continuar a tocar maravilhosamente pelo menos até Agosto de 2008. E ainda ficarão as suas notáveis gravações de Schubert, Beethoven, Mozart, Haydn ou Chostakovitch.Este trio com mais de 50 anos de história tem um percurso raro. Ali, no palco da Gulbenkian, esse caminho podia ser simbolizado pelo pianista de 83 anos Menahem Pressler (o único membro que está no trio desde o seu início, em 1955). Ele trouxe ao Grande Auditório uma energia contagiante, sem nunca largar o ouvido dos seus companheiros de grupo. E que companheiros! Felizmente havia Hope, Daniel Hope, um violinista inglês de 28 anos, à beira da perfeição: não consegue tocar uma nota ao lado e está sempre profundamente mergulhado na música. Não despreza um único compasso. E depois o violoncelista brasileiro António Meneses, capaz de uma delicadeza emocionante.
E gente desta não toca música só por tocar. O programa anunciava dois trios históricos: em primeiro lugar, o Arquiduque, nome pelo qual é conhecido o Trio para Piano e cordas n.º 7 em si bemol maior, op. 97 de Beethoven. De facto chamá-lo Arquiduque é capaz de ser mais fácil... e o nome ficou, por causa duma dedicatória na partitura, para o Arquiduque Rudolph da Áustria. Este trio é o que se costuma chamar uma obra-prima da música clássica. Um monumento. Mas o Beaux Arts fez da partitura outra coisa: pegou nesta música com 200 anos e trouxe-a descaradamente para os ouvidos presentes, com uma alegria quase juvenil. Os espectadores seguiram em silêncio (devotamente) todos os sons e os gestos destes três músicos excepcionais que se ligavam e punham em diálogo os timbres de cada instrumento como se tocassem juntos desde que nasceram.
Isto era música em acção, já não uma estátua, nem um monumento, nem uma obra-prima, nem um busto de Beethoven (como parece acontecer nos concertos mais aborrecidos), mas exactamente o oposto - era a música presente, tocada para os nossos tempos. E depois do intervalo veio o Trio n.º 2 em mi bemol de Schubert, ainda mais delicado, ainda mais contido, ainda mais urgente. Como se a música nos murmurasse, provocante e esperançosa, o que a vida pode ser.
E não era preciso mais. Mas houve ainda dois encores, vincando o virtuosismo dos intérpretes e evocando a história deste trio.
A fatia de público com menos pressa de ir a correr tirar o carro da garagem ou de ir jantar não queria parar de aplaudir o Beaux Arts Trio. Provavelmente, pela última vez.
Pedro Boléo