A borboleta causou um furacão
O pianista norte-americano Ahmad Jamal é uma das figuras marcantes do jazz há mais de cinco décadas. Destacado pelo seu uso económico de notas, usando o silêncio de forma extremamente subtil, o pianista regressou a Lisboa para demonstrar que a sua música continua com a vitalidade e a relevância de um dos grandes momentos da sua carreira: o lançamento do álbum mítico Ahmad Jamal at the Pershing: But Not for Me, de 1958. Tendo sido um dos músicos fundamentais na definição do trio de piano do jazz contemporâneo, Jamal veio provar que é muito mais do que um mero minimalista ou apenas herdeiro artístico de outros grandes nomes como Erroll Garner ou Nat King Cole. Ao longo do concerto de terça-feira à noite, o músico foi, sobretudo, um genial gestor de densidades. Desde as linhas melódicas mais efémeras até à saturação dos acordes, tocados com ambas as mãos, nos registos graves, Jamal extraiu a essência de cada tema, aproveitando todo o seu potencial dramático, através de um equilibrado jogo de intensidades contrastadas.
Dotado de uma técnica superlativa, Jamal soube subjugar a mesma à sua rigorosa sensibilidade estética, preocupando-se mais com a narrativa de cada peça do que em exibir o seu virtuosismo de forma gratuita. Foi com esse sentido de arranjo "orquestral" que dirigiu o seu quarteto, regendo os músicos com a mão esquerda, de forma a realçar os sucessivos momentos de calma ou empolgado dramatismo. Com cada tema contou uma história, como se cada peça fosse uma pequena ópera, com princípio meio e fim.
Ahmad Jamal deixou também claro que continua a saber reinventar-se. Não no sentido radical de quebra com o seu próprio passado, mas sim no sentido de conseguir deslindar novo material rítmico, melódico e harmónico do repertório interpretado, onde Papillon, Paris after Dark ou Poinciana foram bons exemplos. Ao longo da noite, esses três elementos coabitaram e contrastaram-se de forma lúcida. Jamal também não parou de modular os temas, levando-os para inesperadas tonalidades, contaminando-os ainda com súbitas células rítmicas, propulsionando assim a música com uma discreta força titânica. O restante quarteto funcionou como a sua "orquestra", estando à altura das exigências do mestre e dos inesperados contornos que a música acabou por tomar.
Idris Muhammad, o baterista veterano, de Nova Orleães, provou continuar a ser um dos grandes aliados de Jamal, aparecendo novamente nos palcos de Lisboa ao seu lado. Dotado de uma batida marcadamente forte, a sua presença subjugou-se estritamente às exigências da música, intervindo de forma mais veemente apenas quando o pianista o exigia. Foi mais eficaz como acompanhante do que como solista, nos momentos em que Jamal lhe pedia que se sobrepusesse à restante rítmica. Em contrapartida, o percussionista porto-riquenho Manolo Badrena, funcionou melhor a solo, fazendo com que as congas, bongos, timbales e pequenos objectos soassem como uma grande tela sonora dentro da paleta de timbres do quarteto. Como acompanhante, a sua prestação pecou por algum excesso, recorrendo sistematicamente ao naipe completo de sonoridades, em vez de diferenciar os ambientes de cada tema.
O contrabaixista nova-iorquino James Cammack foi o acompanhante mais consistente, tendo uma prestação irrepreensível ao longo de todo o concerto. Dois breves solos absolutos, um com técnica de pizzicato e outro com arco, evidenciaram um excelente domínio da música, som e gosto por aquilo que é o estritamente essencial.
Se houve algo que não resultou tão bem no concerto, foi a sua prolongada duração. No final de cerca de uma hora e três quartos de música exigente, os artistas acabaram por deixar transparecer alguma falta de concentração. Talvez uma duração mais curta fosse o suficiente para o quarteto dizer tudo o que era importante. Em contrapartida, o que não faltou foi o sentido de risco, o efeito-surpresa e o delírio embriagante do swing inconfundível de um grande pianista. Ahmad Jamal acabou por nos demonstrar que, aos 77 anos, a sua música continua contemporânea, temperada agora pela experiência e sabedoria de um mestre.
Rui Horta Santos