Micas A herdeira de Salazar
Maria da Conceição de Melo Rita desfia, em "Os meus 35 anos com Salazar", as memórias da convivência com o homem que a perfilhou aos seis anos. Não há nada de novo neste retrato de Oliveira Salazar na intimidade
a Maria da Conceição de Melo Rita, a menina que, em 1938, surgiu na capa do jornal O Século, sentada numa cadeirinha, caderno no colo, sob o olhar atento de António de Oliveira Salazar, decidiu, aos 78 anos, deixar um "testemunho aos netos". Primeiro quebrou um silêncio de décadas quando foi entrevistada por Joaquim Vieira para o Expresso em 1988. Este ano aceitou um outro convite do jornalista para converter as suas memórias em livro - o resultado é Os meus 35 anos com Salazar (Esfera dos Livros), que será apresentado hoje, às 18h30, no restaurante da Estufa Real, Lisboa. Os historiadores José Hermano Saraiva e António Costa Pinto são os oradores convidados. Ao longo de 200 páginas, Maria da Conceição, que viveu em casa de Salazar entre os seis e os 28 anos (1935-1957), não faz qualquer revelação sobre o homem que governou autoritariamente o país durante quase meio século - não há confidências nem segredos íntimos. Há, sim, o retrato de uma "família" (Salazar e a governanta, Maria de Jesus) que "perfilhou" Maria da Conceição aos seis anos, estava ela em Lisboa há meses, em casa do irmão José, a pedido da mãe, desesperada com mais sete filhos e sem sustento para todos na aldeia beirã da Lajeosa.
E há também a evocação de episódios domésticos que em nada contradizem aquilo que já foi escrito sobre Salazar na intimidade - que incutia o espírito da "poupança" em casa (a governanta fazia saias com o tecido das velhas calças do então Presidente do Conselho e aproveitava os antigos roupões para fazer vestidos para a criança); que ordenou à criada para fechar a sete chaves todos os pertences do Palácio de São Bento ("entendia que aquilo que era do Estado, não devia utilizar-se"); que Maria era "uma pessoa austera" e implacável com as criadas, recrutadas em orfanatos da província (transformou os jardins de São Bento num aviário cuja produção até dava para fornecer as despensas de alguns hotéis de Lisboa).
As casas (a da rua Bernardo Lima e a residência oficial) e o ambiente familiar eram um retrato, a uma escala reduzida, do país. Salazar governava a casa como governava o país - com mão de ferro, com o vício da poupança, monopolizando em si todas as decisões (com a excepção dos afazeres domésticos). Era afectuoso e "terno" com Maria da Conceição, a quem gostava de "aconchegar os cobertores à noite", e rigoroso com as matérias escolares: "Queria que eu soubesse tudo direitinho, desde a tabuada até à história e geografia", disse ao P2.
Contudo, a política era tema tabu dentro de portas. Pelo menos quando as mulheres da casa estavam presentes. A política nacional, na verdade, não "despertava" a curiosidade de Micas, como carinhosamente lhe chamava Salazar. Mas no livro, a pupila do ditador admite que se soubesse o que sabe hoje teria dado "outro rumo" aos diálogos com o seu tutor. "Nos passeios nocturnos que dávamos pelos jardins de São Bento, por vezes ele falava um pouco sobre política", lembrou, sentada na sala da sua moradia na Parede. "Eu até gostaria de ter falado mais, mas acho que não estava habilitada para perceber aqueles assuntos. Ele só me dizia que depois de morrer as nossas colónias em África tinham o tempo contado, porque estavam desejosas da independência. Mas considerava que aqueles povos não estavam preparados para isso."
Uma rapariga triste
Micas vivia ainda na casa da Rua Bernardo Lima quando foi confrontada com a ideia, ainda que vaga para uma criança de oito anos, de que existiam "homens maus" que queriam "fazer mal" ao seu pai adoptivo. Salazar escapou ao atentado anarquista de 1937 (uma bomba colocada numa caixa de esgoto) e quando chegou a casa, "o fato salpicado com areia", Micas agarrou-se a ele num pranto solto. "Eu não quero que o senhor doutor morra", recorda. "Não sabia por que é que lhe queriam mal..."
Ao longo dos anos, Maria da Conceição manteve-se sempre alheada das questões políticas. Era como se durante o Estado Novo tivesse vivido dentro de um casulo, sem comunicação com o exterior.
Não seguiu o liceu por iniciativa do pai adoptivo, que a encaminhou para o ensino comercial - "dizia que o curso comercial teria mais saídas no futuro das novas tecnologias" -, e o seu primeiro emprego foi no Instituto de Assistência a Menores. Não tinha tempo para divertimentos e no livro são escassas as referências a amizades. "Eu estava um pouco isolada", contou, "convivia pouco com as amigas, não frequentava a casa delas e elas também não iam a São Bento". Era infeliz? "Estava habituada. Fui criada assim desde pequena."
Em 1957, Micas casou com Manuel Rita no Palácio de São Bento, onde também se fez a boda. Um ano depois, nasceu António, cujos padrinhos foram Oliveira Salazar e Maria de Jesus, e Micas estava demasiado ocupada com a maternidade para atentar na política e na candidatura do general Humberto Delgado às eleições presidenciais.
O tumulto provocado no regime, com o candidato a percorrer o país perseguido por multidões de apoiantes, era inaudível na residência oficial. O eco das palavras do homem que ousou defrontar Salazar foi abafado e Micas diz que as eleições "passaram despercebidas" em São Bento. "Não discutíamos esse problema. O Humberto Delgado tinha os seus apoiantes, mas Salazar tinha mais."
Sete anos depois, Portugal foi confrontado com os assassinatos de Delgado e da sua secretária, Arajaryr Campos, pelas mãos de homens da PIDE. O Presidente do Conselho demarcou-se publicamente do acto. "Tenho a certeza absoluta de que ele não teve conhecimento prévio. Quando soube ficou muito aborrecido", garante.
O neto adoptivo
A partir dos últimos anos da década de 50, tornou-se quase impossível manter o silêncio, dentro de São Bento, em torno dos acontecimentos políticos. 1961 foi o ano em que, perante a sequência de episódios que abalam o regime, Salazar levou para casa as preocupações que o assaltavam. E eram muitas: Henrique Galvão desviou o paquete Santa Maria; deflagrou a guerra em Angola; deu-se a "ocupação" de Goa, Damão e Diu pela União Indiana; e Salazar deparou-se com a rebelião no interior do seu Executivo, quando o seu ministro da Defesa, Botelho Moniz, liderou um golpe de Estado que não passou da tentativa. "Nessa altura, ele já deixava transparecer uma certa preocupação", diz Micas.
Quando começou a guerra colonial, Micas já tinha dois filhos, António, que foi também "perfilhado" pelo padrinho, vivendo até aos 10 anos em São Bento, e Margarida. Maria da Conceição tem visto na RTP "um ou outro" episódio da série documental A Guerra, de Joaquim Furtado. Não tinha "tanta" consciência sobre a dimensão dos conflitos. "Sabia que as nossas possessões queriam a independência e que aquilo estava um bocado complicado." A guerra juntou-se, portanto, ao rol de temas que Salazar expurgava das suas conversas com Micas.
Sobre Marcello Caetano, porém, falou-lhe algumas vezes. "Gostava muito dele, dizia que era muito inteligente e responsável." Mas isso foi antes das "divergências que os separaram" e muito antes de Caetano assumir a Presidência do Conselho, em 1968, quando Oliveira Salazar julgava ainda ditar os destinos do país, como aqueles que o rodeavam lhe faziam crer. Micas não quis fazer parte desse jogo de fingimento (depois da queda da cadeira, Salazar continuou a viver em São Bento, com todas as regalias de outros tempos, sendo o protagonista involuntário de uma peça de teatro que se prolongou até à sua morte, em 1970). Ela visitava-o todos os dias, ritual, aliás, que começou no dia seguinte ao seu casamento. "Tinha certos momentos de lucidez, por vezes perguntava por um ou outro ministro, mas acho que ele tinha noção de que algo não estava a correr bem."
Quando acedeu ao convite de Joaquim Vieira para escrever Os meus 35 anos com Salazar, Maria da Conceição quis, em primeiro lugar, diluir os "retratos estereotipados" criados em torno de Salazar. "As pessoas desconhecem o homem excepcional que ele foi. É verdade que não gostava de se expor, que não gostava de multidões. Toda a gente julgava que ele era muito fechado mas, na verdade, era uma pessoa muito cativante." Por isso, Micas ficou "muito satisfeita" quando viu o "senhor doutor" ganhar o concurso televisivo Os Grandes Portugueses (mas não votou). "Ao pé dos outros finalistas, ele sobressaía em tudo." Se tivesse de escolher outro "grande português" quem seria? "Aristides de Sousa Mendes", responde logo. "Era uma figura muito simpática."
Maria da Conceição não herdou apenas os "afectos" de Salazar. Guarda vários objectos com que ele a presenteou ao longo dos anos e distingue dois: um retrato emoldurado de Salazar (que ela quer dar à "futura casa-museu" em Santa Comba Dão) e uma medalha em ouro com a imagem da Nossa Senhora de Lourdes, que traz ao peito, pendurada num fio, desde os 16 anos. "Foi como um pai. Tenho muitas saudades dos bocadinhos em que conversávamos à noite, nos jardins de São Bento."