A epopeia dos portugueses na Venezuela
Desembarcaram camponeses, abraçaram outra profissão. Trabalharam de sol a sol, de domingo a domingo. Converteram-se em "sócios com dívidas", pagaram as dívidas, ampliaram os seus negócios. O historiador luso-descendente António de Abreu Xavier conta como foi
a A sua mãe "tinha cumprido o destino que a idiossincrasia portuguesa lhe consignara como mulher, mãe e esposa e só esperava ser bem julgada pela História". Mas, como muitos outros portugueses residentes na Venezuela, era uma desconhecida. "Quando não há narrador, não há História". E se António de Abreu Xavier protagonizasse o narrador em falta?Está tudo em Con Portugal en la Maleta, obra singular na história da imigração venezuelana e na história da emigração portuguesa, resultado de uma tese de doutoramento o ano passado defendida na Universidade Central da Venezuela, em Caracas. O livro (lançado em Agosto pela Editorial Alfa, sem publicação anunciada em Portugal) cruza uma multiplicidade de fontes, inclusive 234 histórias de vida de "heróis anónimos que cumpriram com o consignado e alcançaram o desejado". Como os pais do historiador de 49 anos.
Não lhe faltaram, refere por e-mail, motivos para se empenhar na empreitada. A comunidade "não tinha uma história escrita", apesar de ser "a terceira de origem europeia na Venezuela", depois da espanhola e da italiana. "A quantidade de documentação e informação é muito grande", apesar de dispersa. A comunidade "precisa de se conhecer, de conhecer a sua própria história, como parte integrante - e muito importante - na História da Venezuela".
Pobreza extrema
Muitos ainda recordam a miséria do Portugal que ficou para trás, o "trabalho forçado" nos campos, a sensação de que "qualquer esforço era inútil". A pobreza extrema afectou 54 por cento dos que avançaram para a Venezuela. A política e a guerra colonial também impulsionaram o movimento de saídas do território nacional, mas apenas 25 por cento refere tal circunstância.
Desembarcaram, sobretudo, entre 1948 e 1983, oferecia a Venezuela "possibilidades de ascensão social para todos". O "choque com a sociedade de acolhimento" produziu mudanças na sua concepção de trabalho. Longe da submissão e da dependência laboral reinantes em Portugal, "entre os primeiros portugueses forjou-se, desde cedo, a ideia de independência económica: empregados empenharam-se em ser proprietários".
Os que trouxeram as poupanças já angariadas nas petrolíferas do Curazao depressa montaram os seus pequenos negócios em Caracas, "uma vez que o êxodo campo-cidade lhes mostrou novas possibilidades de progresso": trabalhavam até 20 horas diárias para abrirem as suas lojas o mais depressa possível. Os que vieram depois só tinham a sua força braçal para investir. Muitos converteram-se em "sócios com dívidas". E a capital "foi-se enchendo de uma extensa variedade de comércios e pequenas indústrias dirigidas por portugueses".
"Negociante urbano"
Os métodos de trabalho adoptados estavam "mais vinculados à sua capacidade de observação, compreensão e adaptação ao meio social local do que a alguma atribuição inata da sua origem rural, onde o comércio era ocasional". O português desembarcara camponês, esforçava-se por trocar essa vida "penosa, sombria e rude" por uma vida de "negociante urbano". E conseguia.
Em 1973, o Guía Profesional, Comercial e Industrial da Colonia Portuguesa en Venezuela já registava 4.131 negócios em Caracas, 2.703 classificados como abastecimento, isto é, como automercados, supermercados, adegas, cafetarias, ferrarias, talhos, frutarias, padarias, peixarias.... A tabela, elaborada pelo autor a partir do guia, mostra outros 2.789 negócios detidos por portugueses no interior do país. Também aqui o "abastecimento" pesa 1.741.
O historiador aponta a "concentração em Caracas de 59,7 por cento, tanto da população como das actividades de contacto diário com a comunidade venezuelana". Esta conjugação de factores "favorece a permanência do cliché do "português abastero [abastecedor]"". E acarreta "dificuldades" em preservar a identidade de uma comunidade dispersa por 139 localidades.
A especialização
Ao "constante crescimento" dos negócios dos portugueses, Xavier soma a especialização. "Isto quer dizer que não só levaram o desenvolvimento económico às zonas de interior com uma diversidade de actividades, como também as profissionalizaram". O seu contributo no comércio, em particular de alimentos, "é inegável".
Xavier socorre-se do exemplo da Central Madeirense. Em 1949, era um abasto. Num instante se transformou num supermercado. Em 2004, já era uma cadeia de 43 supermercados e dois hiper. A comunidade ocupa um lugar cimeiro neste ramo. As seis maiores redes de supermercados pertencem a famílias portuguesas e empregam cerca de dez mil pessoas.
Os portugueses "não foram uma carga para a Venezuela, nem competição para o trabalhador local. Pelo contrário, geraram emprego", conclui o investigador. Para o provar, pega nos seus "historiados". "Uma rápida revisão dos empregos gerados por eles indica que, em 2000, os cem homens entrevistados tinham criado com o seu investimento entre 960 e 1.200 empregos. Por sua vez, uma cifra situada entre 145 e 155 corresponde a 22 mulheres empregadoras. Com excepção de 27 homens com trabalhos independentes, a média para o resto do grupo mostra que cada entrevistado patrão dá emprego a 15 pessoas". O que aconteceu? "A maior parte dos que eram abasteros dedicam-se agora à pequena e à média indústria".
Longe de Portugal
Os portugueses adoptaram a Venezuela. Apreciam "o clima cálido, a diversidade paisagística, a cordialidade, a variedade gastronómica, o igualitarismo, a anomia cidadã e um certo caos que se entende como produto da liberdade individual". Agrada-lhes "o cosmopolitismo urbano, que muitos opõem às aldeias portuguesas, não às suas cidades". Só "a insegurança e o excesso de normas oficiais" - quando "o português não merece porque nunca se meteu na política", dizem - alimentam o desejo de partir.
O historiador lê nestes argumentos "uma aculturação resultante do distanciamento territorial e comunicativo". "As histórias orais sobre a comunidade são menosprezadas e exercem pouca influência na tomada de consciência do que significaram valores como o trabalho, a perseverança, a poupança, a família e as redes de apoio para a história da Venezuela". Ao mesmo tempo, "está a perda da imagem de Portugal" e a "falta de presença e de unidade da comunidade frente à sociedade venezuelana, porque os líderes conformam-se em pousar para revistas de clubes e não são vistos na imprensa nacional local".
Cá e lá
Romper laços com a Venezuela parece difícil. "Há desde 1975, aproximadamente, o sentimento de que a vida deve continuar de forma repartida entre os dois países". Sobretudo, porque reina a ideia "de que o ramo comercial desenvolvido lá não alcançaria os mesmos lucros em Portugal nem cobriria, com a mesma rapidez, os gastos e o conforto a que a família está habituada".
O historiador refere ainda razões de natureza social: "Para a maioria, a vida de trabalho e êxito económico alcançado já não se compaginam com o que os espera em Portugal. Apesar da casa e de outros pequenos investimentos, abandonaram o seu esforço para fazer um lugar permanente na sua terra natal. Nela são doutores ocasionais, mimados enquanto estiverem na emigração, tiverem dinheiro e fizerem turismo em Portugal". Voltar seria "perder esse estatuto". No lado oposto, estão os que não querem regressar por não terem meios: "Um reinício em Portugal é visto por eles como uma coisa vergonhosa na qual se manifesta o velho cliché salazarista: um emigrante é bom cidadão se tem êxito e manda remessas para a pátria".
E há ainda a influência dos descendentes, amiúde detentores de uma imagem "distorcida e desactualizada" de Portugal. A morada dos filhos influi na dos pais. Deste modo, "65,8 por cento dos emigrantes que têm filhos fora, vive na Venezuela mas visita-os com frequência ou quando pode. Outros 19,2 por cento confessam-se dispostos a estabelecer-se com os filhos onde eles estiverem desde que a família esteja unida". As novas residências? "Portugal, Estados Unidos, Canadá, França. Espanha, Alemanha, Austrália, Brasil, Reino Unido, por esta ordem".