Torne-se perito

370 físicos

Em 1912, um físico descobriu que eles existiam. Em 1938, outro físico observou a chuva de partículas que provocam quando batem na atmosfera terrestre. Em 2007, um batalhão de cientistas, incluindo 11 portugueses, descobriu finalmente a fábrica onde são produzidos os raios cósmicos mais raros

a Durante o último ano, a descoberta teve o carimbo de "top secret". Não por recearem que alguém se apropriasse dela indevidamente, mas porque queriam certificar-se do que tinham observado. Seria embaraçoso fazer uma grande revelação sobre os enigmáticos raios cósmicos que, afinal, não passasse de um grande equívoco.Agora, os mais de 370 físicos que andaram à caça da forma mais rara de raios cósmicos - aqueles que têm mais energia - encontram-se em condições de revelar o segredo que tão bem guardaram, num artigo com direito a capa na edição de hoje da revista Science. A descoberta é sobre a origem desses raios: vêm de buracos negros monstruosos, que se encontram activos no centro de algumas galáxias.
"As pessoas não sabiam de onde vinham os raios cósmicos com maior energia. É uma daquelas questões com que se sonha há 100 anos", diz o português Mário Pimenta, um dos 370 caçadores de raios cósmicos, que chefia os dez cientistas portugueses envolvidos no projecto.
Foi o físico austro-americano Victor Hess quem descobriu, em 1912, os raios cósmicos, partículas invisíveis que bombardeiam a atmosfera da Terra, durante experiências com balões. Por tal descoberta receberia o Nobel da Física de 1936.
Tudo o que vem do espaço não é, porém, "raios cósmicos". Numa representação do espectro electromagnético, com a luz visível aos olhos humanos ao centro, ladeada à direita pela radiação infravermelha e à esquerda pela ultravioleta, os raios cósmicos surgem no extremo esquerdo, para além mesmo dos raios gama, em termos de energia.
Em 1938, o francês Pierre Auger foi quem primeiro observou os efeitos da chegada ao nosso planeta desses raios que atravessam o universo quase à velocidade da luz: quando chocam com as moléculas no topo da atmosfera, a cerca de 20 quilómetros de altitude, originam uma chuva de partículas secundárias, que depois atingem a superfície da Terra e cobrem dezenas de quilómetros quadrados. Somos permanentemente atravessados por essa chuvada de partículas.
Mas os raios cósmicos não são todos iguais. Aqueles que têm baixas energias são abundantes, vêm de todas as direcções, principalmente de estrelas no interior da nossa galáxia, a Via Láctea, e sabe-se que são protões e núcleos de átomos pesados. Apesar disto, a única fonte de raios cósmicos conhecida com exactidão, até agora, era o Sol, sublinha Paul Mantsch, o chefe da vasta equipa, num comunicado.
Há ainda aqueles raios cósmicos que os cientistas consideram como diamantes, os tais mais energéticos. Possuem uma energia igual à de uma bola de ténis lançada com uma velocidade de 205 quilómetros por hora. Pode parecer pouco, mas é uma quantidade de energia colossal para um grãozinho que é cerca de dez biliões de vezes (10.000.000.000.000) mais pequeno do que uma bola de ténis. "Eles são 100 milhões de vezes mais energéticos do que aquilo que se produz nos aceleradores de partículas mais potentes da Terra", refere um comunicado.
Armadilha na Argentina
O problema é que estas bolinhas cósmicas são tão raras que, durante um século, apenas uma por quilómetro quadrado atinge a atmosfera. O que explica por que razão alguns dos mistérios que as rodeiam - de onde vêm?, de que são exactamente feitas? - tenham persistido durante quase um século.
Havia que caçá-las, coisa que os cientistas têm procurado fazer. Mas como chegam tão poucas, para apanhar uma quantidade expressiva, só com uma armadilha gigantesca. A ideia para construir essa armadilha partiu de dois físicos, em 1992: Alan Watson, da Universidade de Leeds, no Reino Unido, e James Cronin, da Universidade de Chicago, nos Estados Unidos. Hoje, essa armadilha é conhecida pelo nome de Observatório Pierre Auger, na Argentina, um projecto que começou a ser construído em 1999.
Os restos de um banquete
No início de 2004, o observatório iniciava a caçada e há cerca de um ano surgiam já os primeiros resultados. Tinha-se apanhado uma dezena de raios cósmicos altamente energéticos - ou será que não se tinha?
"As pessoas tiveram muitas dúvidas, por isso esteve no segredo dos deuses, para termos a certeza dos dados", conta Mário Pimenta, um dos directores do Laboratório de Instrumentação e Física Experimental de Partículas (LIP). Ao longo do último ano, reuniram provas e hoje "desclassificam" a descoberta de 27 raios cósmicos ultra-energéticos ou, como dizem os físicos, de 27 "acontecimentos". Nunca antes se tinham detectado tantos raios cósmicos com tanta energia como esses.
Há um motivo para a preferência dos cientistas por raios cósmicos ultra-energéticos: são esses que deixam um rasto desde a sua fonte de origem. Quase não são desviados pelo campo magnético da nossa galáxia, pelo que a direcção de onde vêm no cosmos não é perturbada, ao contrário do que acontece com outros de mais baixa energia.
Ora, o rasto dos 27 raios cósmicos conduziu os cientistas até a "núcleos galácticos activos", como se chamam os buracos negros supermaciços no centro das galáxias. Estes buracos negros colossais, de que se conhecem 318, já estavam entre os suspeitos.
Estavam à espera de um resultado tão cedo? "Não. Ninguém esperava que nos primeiros "acontecimentos" houvesse uma correlação tão nítida [entre raios cósmicos ultra-energéticos e aquele tipo de buraco negro]", responde Mário Pimenta.
Estes buracos negros têm algo como um milhão a 1000 milhões de vezes a massa do Sol, o que os torna sugadores de quantidades descomunais de matéria. Na nossa galáxia também mora um desses monstros, com três milhões de massas solares, mas não é um núcleo galáctico activo. Se fosse, não estaríamos cá ("são fontes de radiação muito intensas, incompatíveis com a vida"). Só um por cento das galáxias alberga um destes devoradores, resultantes, por exemplo, da colisão com outra galáxia.
Enquanto se banqueteiam, estes buracos negros produzem raios cósmicos: "A matéria na vizinhança do buraco negro é atraída para ele e acelerada a grande velocidade. Nesse processo, uma pequena parte acaba por ser ejectada."
O que são
Assim, o que os mais de 370 físicos captaram no topo da atmosfera da Terra são nada menos do que os restos do jantar de buracos negros próximos da Via Láctea (em termos cósmicos, é claro), a 326 milhões de anos-luz. Quais ossos de frango no caixote do lixo, essas sobras chegam sob a forma de protões, outro mistério agora esclarecido. "Estamos a responder à questão de onde vêm. E o que são. Como são produzidos é que não sabemos ainda. O mecanismo exacto não é conhecido. É o mistério que fica", diz Mário Pimenta.
"Agora começamos a compreender os processos violentíssimos que ocorrem nas galáxias vizinhas e vamos aprender mais sobre os buracos negros e o seu papel na evolução do universo", acrescenta James Cronin num comunicado.
Já se olhava para o universo de muitas maneiras; via-se a sua luz visível, os infravermelhos, ultravioletas, ondas de rádio, os raios X... e agora pode ver-se pelo prisma dos raios cósmicos.

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