Temos um Tintoretto em Portugal há 40 anos e não sabíamos?
Pode ser uma descoberta extraordinária: um óleo perdido em Veneza, no século XVIII, e encontrado em 2007, num mosteiro beneditino português. Se não é um Tintoretto, parece
a Todos os dias, às 7h00 da manhã, 30 monges beneditinos ficam mais perto de um Tintoretto do que alguma vez estiveram na vida. Para eles não é um Tintoretto: é uma Adoração dos Magos de cinco metros de largura por dois metros de altura que ocupa todo o altar-mor da igreja abacial do Mosteiro de Singeverga, Santo Tirso, desde Outubro de 2005. Houve grande aparato quando chegou, em Janeiro desse ano, por causa do montante do seguro de transporte. Mas há mais aparato desde que o historiador de arte Vítor Serrão, acabado de chegar da grande retrospectiva Tintoretto organizada pelo Museo do Prado, olhou para o óleo com olhos de ver e pôs a mão no fogo por esta tese (e desde que o Diário de Notícias contou, ontem, a primeira parte da história): a Adoração dos Magos que está em Singeverga saiu da oficina de um dos mais importantes pintores europeus do século XVI. Há pelo menos 40 anos que a obra está em PortugalOs monges de Singeverga não souberam imediatamente em que lugar do mosteiro pôr a Adoração dos Magos. "Pensámos em vários locais, andámos indecisos, mas quando terminámos o restauro da igreja decidiu-se que ficava aqui, porque a remodelação do coro deixou uma parede livre", explica o monge que nos conduz até ao gigantesco Tintoretto - e é um bocado isso que está a acontecer agora. Ainda não se sabe muito bem em que lugar da história do Renascimento e do Maneirismo italianos, e sobretudo em que lugar da história pessoal de Tintoretto, pôr esta obra. "Quando o meu amigo Manuel Morais me telefonou, em Maio, a dizer que estava diante de um Tintoretto no Mosteiro de Singeverga, estando eu justamente no Prado, a ver a única exposição do Tintoretto em 70 anos, não acreditei. Era a primeira vez que ouvia falar de um Tintoretto em Portugal. Quando cheguei, confirmei que era um óleo de alta qualidade - para mim, é um Tintoretto apurado pelo filho, Domenico, que trabalhou muito com ele na fase tardia. O uso da cor e uma certa displicência nos acabamentos permitem-nos pensar que estamos perante um trabalho de atelier. É por isso que eu aponto para o período compreendido entre 1580 e 1590", explica ao PÚBLICO Vítor Serrão.
40 anos em Lisboa?
Falta saber quase tudo sobre este possível Tintoretto. Vítor Serrão admite que esta seja a Adoração dos Magos (Tintoretto só terá pintado mais duas: uma está no Prado e outra na Scuola Grande di San Rocco, em Veneza) que se perdeu na sequência da destruição da Igreja do Santo Spirito, em Veneza, no auge do período barroco: " A última referência que existe é do século XVIII."
A seguir, é um buraco negro. Mas o final da história pode ser este: "O quadro chegou a Portugal há 40 anos, comprado pelo banqueiro lisboeta Jaime Pinho. Terá sido adquirido em butain de guerre, imagino eu, é uma das muitas obras que correram mundo no pós-guerra. Consta que o dr. José Luís Porfírio [ex-director do Museu Nacional de Arte Antiga] terá visto o quadro, há mais de 20 anos. De facto, é incrível que esta Adoração dos Magos tenha estado 40 anos em Lisboa sem que ninguém se tenha cruzado com ela. Em Janeiro de 2005, após a morte do banqueiro, foi doada ao Mosteiro de Singeverga por disposição testamentária", continua Vítor Serrão. O monge que nos guia até ao Tintoretto do altar-mor lembra-se de ver Jaime Pinho na missa de domingo, todos os Verões. "Tinha uma quinta em Lousada. Ainda me lembro de o ver aqui, vestido de cavaleiro do Santo Cristo. Além deste óleo, deixou-nos uns paramentos sem grande valor."
Se for um Tintoretto, o óleo pode ter um valor incalculável. É improvável que o mosteiro o queira vender, mas podia: não há nenhuma restrição à saída da peça do território nacional. "Não está classificada, nem inventariada", confirma Manuel Bairrão Oleiro, director do Instituto dos Museus e da Conservação. com Isabel Salema
a Há 17 anos no Museu Nacional de Arte Antiga (MNAA), José Alberto Seabra não se lembra de qualquer referência à obra atribuída a Tintoretto do Mosteiro de Singeverga. "Estou vivamente interessado em ver a peça", diz o responsável pela colecção de pintura do MNAA, explicando que não é possível emitir uma opinião sem ver a pintura ao vivo. "Folgo muito por ser, ao que parece, uma descoberta importante. Confio na competência do meu colega Vítor Serrão quanto às atribuições autorais - Tintoretto e o seu filho Domenico."
A confirmar-se esta descoberta, "é um objecto de grande valia para o património nacional", disse o director do MNAA, Paulo Henriques, acrescentando que a equipa do museu "terá obviamente de ver a peça".
Se o estudo deve começar pela análise visual da própria pintura, para a comparar com outras obras, "há toda uma panóplia de exames laboratoriais que podem ser feitos e que também são comparativos", explicou Seabra. Há a fotografia de infravermelhos, para ver o desenho subjacente à pintura - o chamado "desenho preparatório "feito pelo pintor. Há também os raios X, para ter uma noção da técnica pictórica e o estado de conservação da obra: "Podemos ver a maneira como o pincel executa a composição. E também nos dá a cartografia das zonas que podem não ser originais, como os restauros e os repintes." Depois, há ainda as análises microquímicas, para ver a composição das camadas. Descobrir quais os pigmentos que foram usados e a forma como a tela foi preparada. "É para saber se batem certo com os pigmentos usados na época e também para comparar com as obras autógrafas que existem do pintor." Há várias obras assinadas por Tintoretto e, como lembra o conservador, muita desta informação está no Museu do Prado, que este ano organizou uma grande exposição dedicada ao artista. I.S.