O parisiense que nunca estava parado
Criou Astérix, fundou a revista Pilote e lançou os maiores nomes da BD europeia.
Há 30 anos, teve morte prematura, mas as suas criações continuam bem vivas
a Era uma vez um humorista que morreu com um enfarte durante uma prova de esforço. Dito assim, parece o começo de uma história com duvidoso sentido de humor ou mesmo uma piada de mau gosto. Mas foi mesmo isto que aconteceu há 30 anos a René Goscinny, argumentista de banda desenhada, editor e criador de heróis geniais como Astérix, Iznogoud e Le Petit Nicolas.Na manhã de 5 de Novembro de 1977, um sábado, Goscinny deslocou-se a uma clínica do 17º bairro de Paris, onde tinha marcado um exame cardíaco de rotina. Subiu para uma bicicleta ergométrica e começou a pedalar. Pouco depois sentiu-se mal e caiu. Morreu com um enfarte nos braços da sua mulher. Tinha 51 anos.
Toda a imprensa francesa da época assinala o acontecimento com grande destaque. Na revista Paris Match é tema de capa (Astérix chora o seu criador Goscciny) e os jornais Le Parisien e Le Matin chamam o assunto à primeira página com imagens de Astérix e Obélix.
O tom geral é o mesmo: os dois heróis gauleses ficaram órfãos. Mas não foram os únicos e a perda far-se-ia sentir durante muitos anos. Uderzo, o desenhador de Astérix, ficou destroçado e chegou a admitir pôr termo à sua carreira e à do herói que ambos tinham criado.
A morte de Goscinny também abalou Morris, o criador e desenhador de Lucky Luke, e este herói nunca mais voltaria a evidenciar a mesma força cómica e narrativa do período em que o argumentista escrevia as histórias.
Na revista Pilote, que criara em 1959 e dirigia à data da sua morte, Goscinny deixa um enorme vazio entre os seus colaboradores - nomes grandes da banda desenhada francófona como Giraud e Druillet, Cabu e Bilal, Bretécher e Tardi, Christin e Mézières, Fred e Reiser.
Criador único
Nascido em 14 de Agosto de 1926 em Paris, de pai polaco e mãe ucraniana, ambos de origem judaica, René Goscinny tem o seu nome impresso em mais de 500 milhões de álbuns e livros vendidos, traduzidos em mais de 130 línguas e dialectos.
O crítico francês de BD Laurent Mélikian disse ao P2 que se deve a Goscinny, conjuntamente com Jean-Michel Charlier, "o reconhecimento da função do argumentista na BD belga - é um paradoxo, porque isso já era reconhecido em França". "Soube dar um novo tom à BD, generalizando o duplo nível de leitura de uma banda desenhada que os pais compram para os seus filhos mas que eles lêem às escondidas."
"É o autor francês mais notório do seu tempo", garante o crítico de BD e ensaísta Didier Pasamonik. "Essa notoriedade provém da sua qualidade de argumentista apaixonado pelas palavras e criador de diálogos ímpar. Da sua capacidade para criar tipos universais únicos."
Esse potencial criativo é feito à medida da sua inquietação pessoal. Goscinny vive na Argentina entre os dois e os 19 anos, parte depois para os Estados Unidos, onde estuda e convive com os criadores da revista Mad, especialmente Harvey Kurtzman. Está de regresso a França no início dos anos 1950, quando tem 26 anos e se prepara para revolucionar a banda desenhada europeia com a revista Pilote. Antes, porém, passa pelas Editions Dupuis, na Bélgica, e pela revista Tintin. E cria, em 1955, uma agência para proteger os direitos dos criadores com Albert Uderzo e Jean-Michel Charlier, outro argumentista que estará também na génese daquela famosa revista. A iniciativa chega ao conhecimento dos responsáveis da Dupuis e acaba por provocar o despedimento dos três amigos por Georges Troisfontaines, que dirigia a World Press, uma agência distribuidora de BD em que todos trabalhavam.
Outubro de 1959 é o momento de todas as maravilhas. Surge a revista Pilote, de que Goscinny é um dos obreiros. Astérix dá ali os primeiros passos. "É um herói emblemático que [Goscinny] deu à França", lembra Mélikian. "Com Astérix, Goscinny e Uderzo escolheram o humor para ilustrar uma nação generosa, que se recusa a ser dominada, mas que também não deseja dominar os outros."
Colérico e paradoxal
Goscinny morreu antes de saber que contribuiu, involuntariamente, para fazer de Laurent Mélikian um crítico de banda desenhada: "Quando era pequeno, acontecia-me acordar durante a noite com as gargalhadas do meu pai, que devorava Astérix e Lucky Luke, Quis aprender a ler para poder rir como ele!"
Pasamonik sublinha, por seu lado, o carácter paradoxal da obra de Goscinny: "Conta histórias para crianças quando ainda não é pai (Le Petit Nicolas), concebe histórias americanas que não interessam aos Estados Unidos (Lucky Luke) e, ele que detestava o poder, cria o seu arquétipo (Iznogoud)".
Homem de "grande qualidade" e "argumentista genial", o criador de Astérix era também um colérico, "faceta que pouca gente conhecia", lembra Claude Moliterni, editor e divulgador de BD: "Henri Filippini escreveu no France-Soir, a propósito do desenho animado Astérix realizado pelos Studios Idefix, que "não é Walt Disney quem quer". Goscinny teve um ataque de fúria que obrigou a regressar a Paris Georges Dargaud [patrão da editora com o mesmo nome]. A equipa do Pilote chegou a trabalhar num número especial destinado a combater o "terrorismo intelectual" que nunca chegou a sair."
Trinta anos depois da sua morte por que razão continua o criador de Le Petit Nicolas (desenho de Sempé) a estar tão presente no panorama editorial internacional, multiplicando-se as obras de análise de Goscinny ou que recuperam antigas criações suas?
"Ele fazia um género de histórias intemporais", responde o crítico e estudioso Leonardo de Sá. "Liam-se bem nos anos 50 e 60 e conseguem continuar a ler-se sem problema hoje. Astérix é um excelente exemplo dessa realidade." E depois há os herdeiros da linhagem iniciada por Goscinny. Mélikian nomeia Gotlib, autor de BD e fundador da Fluide Glacial que é também um "descobridor de talentos". Didier Pasamonik cita Christopher Arleston e Joan Sfar, mas concorda que o "herdeiro mais importante" é Gotlib: "Tal como Goscinny, fez sair a BD da sua prisão infantil."