Torne-se perito

Saúde Uma cimeira mundial para falar de casas de banho

Há mais de 2600 milhões de pessoas para quem
esse acto banal que é ir ao WC é um luxo, uma situação que as Nações Unidas querem ver resolvida até 2025

a Pode parecer cómica, uma Cimeira Mundial sobre a Casa de Banho. Não é, pelo contrário. O assunto é sério e levou 170 especialistas em saneamento básico e saúde, de mais de 40 países, a reunirem-se numa cimeira mundial, até amanhã. Nova Deli, na Índia, é o local desta conferência, ou não fosse esse um dos países onde os problemas de saneamento básico atingem uma dimensão inimaginável: mais de 700 milhões de indianos não têm acesso a instalações sanitárias, fazendo o que têm a fazer ao ar livre.Ainda os números: em todo o mundo, mais de 2600 milhões de pessoas não têm uma casa de banho em condições, segundo estimativas da Organização Mundial de Saúde. Só na Índia e na China vivem mais de metade.
Quem já viajou pela Índia, onde milhões de pessoas nem sequer uma barraca têm para se abrigar, já se deparou com o cenário de pessoas a fazerem-no ao ar livre, ao longo de estradas, caminhos-de-ferro, campos, contaminando a água que se bebe e disseminando doenças, como a diarreia, infecções por vermes e outros problemas gastrointestinais. Estima-se que, na Índia, morram por ano 500 mil pessoas de problemas relacionados com a diarreia; no mundo serão cerca de dois milhões, a maioria crianças.
Por aqui se vê que a expressão "ir à casa de banho", como sinónimo de alívio das necessidades fisiológicas, não tem propriamente aplicação universal. Se se disser que na Terra existem 6000 milhões de pessoas, então a dimensão de todos aqueles números e os problemas de saúde pública que acarreta é clara. O quadro ainda assume outros contornos cinzentos.
Entre todos os habitantes da Terra, mais de 1000 milhões até são servidos por um sistema de saneamento básico, só que em muitos casos os seus dejectos vão para os rios, os lagos e o mar, com pouco ou nenhum tratamento. Na realidade, só cerca de 30 por cento desses 1000 milhões de humanos têm os dejectos tratados de forma aceitável para o ambiente, o que significa que os de todos os outros vão parar directamente ao ambiente, sublinha a Organização Mundial de Casas de Banho, na sua página na Internet (http://www.worldtoilet.org/).
Sim, existe uma organização chamada assim e é ela que está por detrás desta cimeira mundial, que vai aliás na sétima edição. Trata-se de uma organização não governamental criada em 2001, que chama a atenção para os problemas de saneamento e de higiene e a sua relação com a saúde humana, o ambiente e a educação. Foi fundada pelo singaporense Jack Sim, de 50 anos (em 1998, considerando que havia muito para fazer nesta matéria, já tinha criado a Associação de Casas de Banho de Singapura, um país onde a limpeza importa). Agora, a Organização Mundial da Casa de Banho congrega associações e grupos de mais de 40 países, com a missão de promover, no terreno, a limpeza dos WC nas cidades, ajudar os habitantes das zonas rurais dos países em desenvolvimento a construir as suas casas de banho ou organizar debates.
Invulgar cartão de visita
Mas Jack Sim costuma provocar sorrisos quando apresenta a sua organização ou entrega um cartão de visita, no qual aparece o tampo de uma sanita, conta o jornal Taipei Times. Aproveita, no entanto, esse efeito que sabe causar a seu favor: "Depois de se rirem, lembram-se de nós. É impossível esquecerem-nos depois de ouvirem falar da Organização Mundial de Casas de Banho", diz Jack Sim àquele jornal.
"Antes de nós, não existia uma voz global [para o saneamento]. As pessoas não falavam de casas de banho, eram demasiado tímidas. Toda a gente pensa que é embaraçoso, por isso vivemos num estado de negação de que temos alguma coisa a ver com casas de banho, o que obviamente não é verdade", acrescenta. "O saneamento está ligado à pobreza, à educação. Nenhuma estrela de cinema morreu de diarreia. Nenhum político morreu de pobreza."
Portanto, é sobre tudo isto que se está a trocar ideias em Nova Deli, desde quarta-feira. Na abertura, o ministro para o Desenvolvimento Rural da Índia, Raghuvansh Prasad Singh, disse esperar que no seu país, em 2012, já ninguém defeque ao ar livre.
A meta das Nações Unidas é que em 2025 toda a gente na Terra tenha casa de banho, sistema de esgotos e água potável, e chamará a atenção para o problema em 2008, declarado pela assembleia-geral das Nações Unidas como o Ano Internacional do Saneamento.
Um dos assuntos em discussão na cimeira é o das tecnologias novas, baratas e amigas do ambiente, por isso existe, por exemplo, uma sessão só dedicada à introdução de casas de banho eficientes nos comboios e caminhos-de-ferro indianos. Mas até as metas do Governo indiano e da ONU serem atingidas, milhares de indianos, "intocáveis", continuam a limpar latrinas e casas de banho sem esgotos, apesar de essa prática já ter sido proibida: em cestos à cabeça, são eles quem transporta as fezes humanas para lixeiras, a troco de umas quantas rupias.
Um tratado de coprologia
Entre as causas para a falta de saneamento básico está o facto de os sistemas sanitários ocidentais, as vulgares sanitas com autoclismo e ligação a uma rede de esgotos, serem muito caros para os países em desenvolvimento. "É principalmente na Ásia, África e América Latina que falta saneamento básico. É isso que discutiremos nesta cimeira", sublinha, à BBC online, o médico Bindeshwar Pathak, fundador da Sulabh Internacional, uma organização não governamental de Nova Deli.
Bindeshwar Pathak inventou um sistema de retrete não só acessível a quem tenha recursos parcos (custa cerca de sete euros), como ainda gasta pouca água (cerca de dois litros) e pode produzir biogás e fertilizantes. Composto por uma latrina construída com tijolos, com um buraco no chão e sítio para pôr os pés, está ligada a duas fossas, onde os dejectos se transformarão em fertilizantes e o gás, como o metano, pode ser aproveitado.
Tal sistema já está instalado em mais de um milhão de casas indianas e em 5500 casas de banho comunitárias, e com parte do dinheiro obtido a ser dado aos intocáveis que antes se dedicavam a limpar os excrementos humanos, diz-se na página da ONU, num artigo sobre a invenção de Bindeshwar Pathak. Em hospitais, escolas e hotéis da Índia, este sistema é popular. "A proliferação destas instalações já trouxe modificações assinaláveis nas áreas urbanas, onde a incidência da defecação ao ar livre diminuiu bastante", lê-se.
Já que falamos de ir à casa de banho, que dejectos expele um humano ao longo da vida? No livro Merde - Excursions into Scientific, Cultural and Socio-Historical Coprology (editado pela Aurum Press em 1999), que é um verdadeiro tratado de coprologia, do humano ao elefante, passando pelos peixes ou insectos, e as quantidades, cores, formas, cheiros e gases dos variados excrementos, Ralph A. Lewin, professor de biologia marinha, elucida-nos. "Os humanos expelem entre 20 a 1500 gramas de fezes por dia (os valores para os europeus variam entre os 100 e os 200 gramas), dependendo, é claro, da dieta. As fezes humanas saudáveis têm normalmente 80 por cento de água; os valores registados variam entre menos de 50 por cento (extrema obstipação) e mais de 90 por cento (diarreia)." Portanto, um europeu de 70 anos já expeliu, pelo menos, duas toneladas e meia de fezes.
E na Antárctida?
Quanto a gases, as nossas tripas têm uma mistura de metano e hidrogénio, que depende do que se come (já se sabe o que fazem os feijões). "Normalmente, contêm cerca de 100 mililitros desta mistura e a nossa taxa diária de expulsão pode atingir dois a três litros", diz o cientista.
Se pensa que este é um daqueles assuntos..., Ralph Lewin também esclarece por que não é: as cidades têm de lidar com a gestão de toneladas de fezes por dia, os fabricantes de autoclismos domésticos têm de saber como é que as fezes se comportam para que o sistema seja eficiente, tal como os fabricantes de fraldas. E há sítios onde é importante não deixar entrar de todo porcaria dos humanos. "Nalgumas estações de investigação na Antárctida, esses desperdícios são rotineiramente enviados por navio para a África do Sul, para deposição."

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