Depois da guerra no Iraque, o sistema de saúde é a segunda coisa sobre a qual os americanos mais querem ouvir falar os candidatos às eleições presidenciais de 2008. "Sicko" surgiu no momento certo. O problema é que os cidadãos e as empresas pagam cada vez mais pelos seguros de saúde em que se baseia o sistema americano. Isto provoca uma enorme desigualdade no acesso aos cuidados de saúde: 47 milhões de americanos não têm seguro, e por isso não têm acesso a cuidados de saúde. Se tiverem algum problema que implique tratamento prolongado ou internamento, arriscam-se a ficar com uma dívida para toda a vida.
Nenhum americano está satisfeito com o seu sistema de saúde - por isso "Sicko" pode ser o menos polémico filme de Moore, pois fala de um problema cuja existência é consensual para os 300 milhões de habitantes dos EUA. A forma de resolver esses problemas é que varia, com base numa fractura ideológica: os republicanos querem encontrar formas de facilitar o funcionamento das forças de mercado, sem quererem ouvir falar na criação de um sistema público, que é aquilo que acontece em Portugal e em muitos países europeus - a solução defendida por Moore e, cada vez mais, pelo eleitorado mais à esquerda. Os principais candidatos democratas às eleições presidenciais de 2008, como Hillary Clinton, apontam nesse sentido: não acabar com os seguros, mas complementá-los com um sistema público, e até subsidiar a compra de seguros pelos americanos mais pobres.
Para que o sistema actual funcione, espera-se que as empresas comprem seguros de saúde para os seus funcionários. Mas a crise chegou a um ponto em que gigantes como o grupo General Motors estão a fazer mudanças radicais. Em Outubro, chegou a acordo com o sindicato dos trabalhadores da indústria automóvel para transferir para um fundo gerido pelo sindicato a responsabilidade pelos cuidados de saúde prestados a 340 mil ex-trabalhadores da empresa, já reformados. Hoje, a General Motors, um dos maiores empregadores nos EUA, gasta mais em seguros de saúde do que em aço, disse o candidato republicano à Presidência John McCain.
Por estes motivos, há cada vez menos empresas a oferecer esse benefício - 69 por cento faziam-no em 2000, mas agora apenas 60 por cento o oferecem, diz a revista "The Economist". E esses seguros pagam cada vez menos coisas. Assim, mesmo que um americano tenha seguro de saúde, é sempre possível ter de decretar falência por causa de dívidas contraídas para se tratar. Não é, pois, de admirar que dois terços dos americanos digam que é preciso criar um sistema mais justo.
Nas malhas do sistema
Exemplo de como as coisas não funcionam é a história de Donna Smith, contada por Moore. Apesar de sempre ter tido seguro de saúde, teve de ir viver para um quarto de uma das filhas porque ficou sem dinheiro, depois do marido ter tido vários ataques de coração e a ela lhe ter sido diagnosticado cancro. Os prémios do seguro sobem, as companhias de seguros abandonam os clientes que começam a ser vistos como "gastadores" e podem ficar sem possibilidade de comprar novo seguro. Se não forem suficientemente pobres para beneficiar do Medicaid, o programa federal para os cuidados de saúde dos mais destituídos, nem tiverem mais de 65 anos, para serem abrangidos pelo Medicare, caem pelas malhas do sistema, ficam num limbo de onde é difícil sair. É um dos rostos que Moore dá às histórias de horror vividas por americanos que, embora tenham seguro, se vêem envolvidos num labirinto com as seguradoras que pode conduzir à morte de um doente. E, segundo a CNN, Moore conta as coisas "com um número surpreendentemente reduzido de erros factuais."
Não é que os EUA sejam forretas. Pelo contrário: gastam cerca de 6000 dólares por ano, por pessoa, com cuidados de saúde, segundo dados da Organização para a Cooperação Económica e o Desenvolvimento (OCDE). Os custos de saúde representam 16,5 por cento do Produto Interno Bruto dos EUA, uma proporção muito mais elevada do que noutros países ocidentais, diz a "The Economist". A França - o país com o melhor sistema de saúde, de acordo com uma lista ordenada produzida pela Organização Mundial de Saúde (OMS) - gasta metade desse valor, dizem os números da OCDE, relativos a 2003. Na lista da OMS, feita em 2000, os EUA ficam em 37.º lugar. Cuba, a ditadura comunista tropical que é o ódio de estimação dos conservadores norte-americanos, e aonde Michael Moore levou trabalhadores de emergência do 11 de Setembro que não estavam a ter cuidados adequados, fica em 39.º lugar nessa classificação. Mas gasta apenas 230 dólares por pessoa anualmente em despesas de saúde, dizia o "The New York Times". Enquanto isso, o seguro de saúde para uma família de quatro pessoas nos EUA custa, em média, 12.000 dólares anuais.
Como é que dois países com gastos de saúde tão diferentes conseguem ficar tão perto nessa escala da OMS? Cuba é um país empobrecido, mas onde foi implantado um sistema de de cobertura universal, para todos os cidadãos. Os Estados Unidos apostaram num sistema privatizado, em que os cidadãos não têm de pagar impostos para sustentar um sistema de saúde público, e as seguradoras têm liberdade para impor os seus preços e condições.
As seguradoras americanas vendem seguros de saúde que são verdadeiros Mercedes, dizia, num artigo de opinião no "New York Times", Thomas Fisher, médico de Chicago. Mas assim tornam-se inacessíveis a uma grande camada da população. E dos 47 milhões de americanos sem seguro, muitos são jovens: um estudo da organização Commonwealth Fund revela que há 13,3 milhões de pessoas, entre os 19 e os 29 anos, sem seguro de saúde. São os "Jovens Invencíveis", como a indústria seguradora se lhes refere. Mas, se algo lhes acontece, podem ficar com a vida arruinada. "Precisávamos de opções de meio-termo, que garantissem a todos os americanos o equivalente a um Toyota Prius - um carro que o leva aonde quiser ir, e tem um preço acessível", continua Fisher, na sua metáfora automobilística.
Na verdade, as seguradoras americanas esforçam-se por afastar os clientes que possam dar prejuízo. Moore mostra-o através dos depoimentos de ex-funcionários de seguradoras que tinham por função arranjar formas de negar a compra de apólices a pessoas que tivessem alguns problemas de saúde, ou descobrir eventuais faltas à verdade sobre o seu estado de saúde. Como a rapariga de 22 anos a quem foi recusado pagamento do tratamento de cancro, porque era demasiado jovem para ter uma doença daquelas. "Muitos países têm seguros, mas conseguem garantir a cobertura universal, a preços mais baixos do que os EUA e com um grau mais elevado de satisfação. Israel, Holanda e Suíça garantem cobertura a todos os cidadãos e gastam entre metade e três quartos do que nós gastamos", escreveu na revista "New Yorker" Atul Gawande, médico e escritor ("Complicações", o seu primeiro livro, foi este ano editado em Portugal)
Então o que está errado nos EUA? "Quando se fala em soluções, começamos a fraquejar. O principal motivo são os custos", disse Gawande. "Qualquer abordagem plausível implica uma transferência substancial de custos do sector privado para os contribuintes. São pelo menos 100 mil milhões de dólares por ano em fundos públicos - mais ou menos 1000 dólares por cada lar americano", escreveu. A necessidade de aumentar os impostos para custear as despesas de saúde é uma ideia a que os conservadores norte-americanos são alérgicos. Rudy Giuliani, o principal candidato democrata às eleições presidenciais de 2008, costuma dizer, tal como o Presidente George W. Bush, que "a América tem o melhor sistema de saúde do mundo." E as soluções que propõe passam por oferecer maiores deduções fiscais aos cidadãos, para que estes comprem seguros.
A esperança em Hillary
A filosofia de responsabilizar os cidadãos pelos seus próprios gastos, e de não envolver o Governo, sempre que possível, é ilustrada pelos trabalhadores do "Ground Zero" que Moore levou a Cuba para serem tratados. Problemas respiratórios e digestivos, associados ao "stress" - como o homem que destruiu os dentes porque os rilhava durante a noite - são cada vez mais frequentes entre os bombeiros e outros que acudiram à destruição causada pelo ataque terrorista ao World Trade Center em 2001.
Muitos dos problemas parecem ter a ver com o facto de não terem usado máscaras protectoras - eram desconfortáveis, e a equipa do então presidente da Câmara de Nova Iorque, Rudolf Giuliani (agora o principal candidato republicano à Presidência), incentivou todos a trabalharem o mais rapidamente possível, dizia o "New York Times" em Maio. O que se passou ao certo nesse período negro da história de Nova Iorque ainda não é claro, mas a Agência de Protecção Ambiental dos EUA declarou que o muito pó que cobriu a cidade após a queda dos edifícios - com amianto, material cancerígeno - não tinha problemas para a saúde. E essa continua a ser a posição oficial, pelo que as pessoas que ali trabalharam têm de enfrentar os seus problemas com os seus próprios seguros de saúde, sejam eles bons ou maus.
Em "Sicko" não se apontam propriamente soluções - mas o caminho indicado é, claramente, o da cobertura universal para todos os cidadãos. Moore mostra os sistemas públicos do Reino Unido, da França e do Canadá, retratando-os como paraísos - que não são, pois as longuíssimas listas de espera, o disparar dos custos e a má qualidade de alguns serviços são comuns nesses países, tal como em Portugal. Mas aceita-se que é uma caricatura que Moore apresenta aos seus compatriotas - o objectivo é mostrar que a "medicina socializada" não é nenhum papão, como dizem os conservadores norte-americanos. É uma ajuda aos candidatos democratas às eleições presidenciais - e em especial a Hillary Clinton, que é em quem a maioria dos eleitores confia para dar a volta ao sistema de saúde. Para pagar esta reforma, pretende reverter os cortes fiscais que o Presidente Bush pôs em prática para as grandes fortunas. O que há que ver é se os americanos estão dispostos a pagar a transformação do sistema de saúde, para o tornar mais justo. "Os americanos desconfiam muito dos Governos. Não é preciso muito para semear dúvidas sobre reformas que aumentem a presença do Governo", sublinhou Atul Gawande.