Como se torna famoso um artigo de física feito em Portugal

O que faz um trabalho científico impenetrável ficar célebre? Pistas a partir de um caso português que diz que a energia escura e a matéria escura são a mesma coisa

a Um artigo de física de cinco páginas, escrito por completo em Portugal, cheio de fórmulas matemáticas, gráficos, que fala de matéria escura, energia escura, energia do vácuo, quintessência, expansão acelerada do universo, gás de Chaplygin e que avança uma explicação para dois dos grandes desafios cosmológicos actuais, tornou-se mundialmente famoso. Leu bem, fa-mo-so. Mas, calma, não é a fama de um artigo como aquele em que Einstein escreveu a fórmula E=mc2. O físico dos cabelos desgrenhados entrou noutro campeonato, quando unificou a energia e a matéria - duas faces da mesma moeda que, até 1905, eram encaradas como entidades distintas -, revolucionando assim a maneira de compreendermos o universo, o espaço, o tempo. Muito antes de atingir essa fama estrastosférica, um artigo pode receber o reconhecimento da comunidade científica.
Contar as vezes que é citado noutros artigos científicos é uma maneira de sabê-lo. Quer dizer que o artigo acrescentou alguma coisa ao edifício da ciência, e que é utilizado por outros para fazer ciência.
Há bases de dados que coligem esse tipo de informação, como a Spires, da Universidade de Stanford, nos Estados Unidos, na área da física de altas energias e física de partículas, astrofísica, cosmologia ou teoria quântica. A partir das citações, fazem-se rankings dos artigos: de desconhecidos (zero citações) a muito bem conhecidos (100 a 249), famosos (250 a 499) e de renome (mais de 500).
É nesta base, muito utilizada pelos próprios cientistas, que há um artigo de física famoso completamente made in Portugal. Ultrapassou a barra das 250 citações em Março e agora já vai em cerca de 300.
Os autores: Maria da Conceição Bento, portuguesa, Orfeu Bertolami, brasileiro, e Anjan Sen, indiano. Quando o escreveram, trabalhavam no Instituto Superior Técnico (IST), em Lisboa. O indiano, estudante de pós-graduação, já se foi embora, enquanto Bertolami e Conceição Bento, casados, ele com 48 anos, ela com 49, continuam lá.
Divulgaram-no em Fevereiro de 2002, nos Archives do Laboratório Nacional de Los Alamos, nos EUA, um repositório on-line de artigos de física de acesso livre. Seis meses depois saía em papel, na revista Physical Review D.
Iniciava-se a escalada da fama. Na edição de 2006 do top dos 50 artigos mais citados de sempre, segundo a Spires, já ficava em 24º lugar.
"É uma grande sorte, tendo em conta que o artigo é 100 por cento da terra. Penso que é inédito em Portugal, pelo menos na física", diz Bertolami. "Não encontramos nenhum artigo de física escrito [só] em Portugal na categoria dos famosos."
Nem o português João Magueijo, do Imperial College, em Londres, tem lá um artigo "famoso", diz Bertolami. "Ele é famoso e não tem artigos com mais de 250 citações."
Moda, polémica, desafio
Como é que um físico ou um artigo chegam aí? No caso de Magueijo, talvez por ter contestado um dos cientistas mais conhecidos de sempre, sinónimo do génio humano. Independentemente de quem vier a ter razão, ao afirmar que Einstein se enganou quando disse que a velocidade da luz é constante, Magueijo foi notícia mundial. "A fama dele construiu-se sobre a fama de Einstein. Ao querer abalar a fama de Einstein, ficou famoso", comenta o físico Carlos Fiolhais, da Universidade de Coimbra.
Bertolami deixou Einstein e outros monstros da física em paz. Então, como se explica...? Talvez porque procura resolver dois grandes desafios da cosmologia actual: o mistério da energia escura e da matéria escura. Pode soar a Guerra das Estrelas, mas nem o lado negro da força, nem Darth Vader são para aqui chamados.
A energia escura é uma força repulsiva, misteriosa, que contraria a gravidade. Por causa dela, há nove anos fez-se uma descoberta desconcertante sobre o destino do universo (uma das duas equipas internacionais responsáveis por essa descoberta, cujo artigo é altamente citado, também inclui portugueses): está a expandir-se cada vez mais depressa, tudo está a afastar-se e parece que será assim para sempre. Energia do vácuo e quintessência são outras designações dessa força. Quanto à matéria escura, não a vemos. Mas damos por ela pelos efeitos gravíticos que provoca na matéria que vemos, nas galáxias.
Modelo de unificação
"Antes, pensava-se que eram duas entidades distintas, que não tinham nada a ver uma com a outra. O artigo trata de um modelo de unificação da energia escura com a matéria escura, numa só equação. São uma mesma entidade que se manifesta de forma distinta a escalas distintas", explica Bertolami. À escala das galáxias manifesta-se como matéria escura, a uma escala mais vasta, a cosmológica, surge como energia escura.
Chamaram-lhe modelo de gás de Chaplygin. Porque partiram de uma equação inventada pelo físico russo Serguei Chaplygin (1869-1942) para o estudo de um problema específico, o fluxo de ar nas asas dos aviões, e aplicaram-na a um problema do tamanho do universo. Foram dos primeiros a desbravar esse caminho, na tentativa de explicar a intrigante energia escura e a elusiva matéria escura.
"Mas não é uma revolução da física, é uma vírgula no avançar do conhecimento." Uma vírgula no entanto reconhecida: "Quando vou aos Estados Unidos, dizem-me: "Ah!, aquele artigo..." No meio científico, é famoso."
Existe ainda o factor moda, adianta Fiolhais. "Há assuntos que estão na moda e que, depois, deixam de se debater. Há esse perigo."
Um assunto controverso e bastante debatido em artigos científicos electrónicos (o que o torna citável) ajuda à ascensão no ranking da Spires, considera Fiolhais. Nestas bases electrónicas, não há um crivo prévio da qualidade dos artigos, pelo que qualquer cientista pode ver um trabalho publicado. Pode até publicar um trabalho pejado de disparates, só para ser falado. "Pode até ser muito citado, mas as críticas são todas negativas."
Para tirar as dúvidas, há as bases de dados tradicionais. Nelas, contabilizam-se as citações em revistas de papel cujos artigos foram avaliados por cientistas antes da publicação, um escrutínio por que passou o artigo da equipa de Bertolami. Uma dessas bases é a conceituada Web of Knowledge, do Instituto para a Informação Científica (ISI) dos Estados Unidos, onde o artigo de Bertolami também conta com bastantes citações (mais de 200). Tudo isto apesar do "imobilismo do sistema universitário" português, lamenta Bertolami, que está em Portugal desde 1989. Essas contrariedades, porém, não travaram um dos seus artigos de subir ao estrelato.
Nem só de equações, gráficos e conceitos científicos herméticos se ocupa Bertolami. Dedica-se a outras formas de escrita, como a poesia. Instituto de Felicidade Teórica (Alma Azul) ou Amor.com (Indícios d"Ouro) são alguns dos livros que publicou, como Orfeu B. A sua busca científica de um Modelo Cósmico Padrão não deixa de estar presente na poesia, ou não fosse esse o nome de um dos seus poemas.

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