Da mentira como virtude política
A democracia vive hoje da mentira. Sob todas as suas formas: ocultação, contradição, correcção, circunstância superveniente ou melhor ponderação
Há os que sabem tudo e hoje dirão: "Os políticos sempre mentiram." Pode por isso parecer ingénuo ficar surpreendido com o modo como a mentira se instalou na vida política. Mas a verdade é que o hábito vem ganhando contornos inéditos. Quase todos a usam. Quase todos a perdoam. A mentira é corrente. Ganhou novas feições. É por vezes obrigatória. Recomendável, de qualquer maneira. Até sinal de esperteza. Nas relações humanas e familiares, a mentira é castigada. Nos empregos, condenada. Na justiça, apesar de o perjúrio ser olhado com complacência, é mal vista. Mas na política... Na política... É apreciada. Se um político mente para dar emprego aos seguidores, derrotar os adversários ou enganar parceiros, o seu gesto tem todas as probabilidades de ser festejado.
A mentira, a fria mentira transformou-se em instrumento de governo. Há muito que os políticos mentem, aqui e ali. Mas sempre com alguma má consciência. Ou desculpa. Ou sentimento de culpa. Agora as coisas mudaram: mentir é possível, simples e necessário. Sem remorsos nem correcção. Se a intenção é boa, qualquer meio serve e a mentira é necessária. Com a guerra do Iraque, ficou consagrado o direito dos governantes à mentira.
Há quem pense que a mentira é reservada às ditaduras. Sem imprensa livre, escrutínio parlamentar ou oposição legal, qualquer ditador mente quanto e quando lhe apetece. Isso é verdade. Com a democracia, tudo seria diferente. A liberdade de expressão e a imprensa seriam suficientes para conter a mentira. O Parlamento, os partidos e as associações de interesses obrigariam os governos a dizer a verdade. As eleições seriam um correctivo para os políticos mentirosos: exigentes, os eleitores castigá-los-iam. Infelizmente, nada disto é verdade. A democracia vive hoje da mentira. Sob todas as suas formas: ocultação, contradição, correcção, circunstância superveniente ou melhor ponderação. A política tem regras parecidas com as que vigoram no futebol, nalguns negócios e na guerra: o único critério importante é ganhar. Só são condenados os que mentem e perdem. Os que mentem e ganham são respeitados.
Não aumentar os impostos é uma mentira clássica. Criar emprego é outra. Tal como aumentar as pensões e os abonos de família. Durão Barroso e José Sócrates, por exemplo, oferecem-nos ilustrações inesquecíveis deste género de mentiras. Apesar de totalmente irresponsáveis, as promessas de criação de empregos teriam uma desculpa: as dificuldades económicas tê-los-ão impedido de concretizar tão gloriosas promessas. É demagogia, mas chama-se-lhe mentira piedosa. Com os impostos, a experiência é mais radical. Os candidatos a primeiro-ministro garantiram, um que baixava os impostos, outro que os não aumentava. Ambos decretaram sólidos aumentos dias ou semanas depois de tomarem posse. As desculpas não se fizeram esperar: não sabiam que a situação financeira do país era tão grave quanto a encontraram! É extraordinário como, para desculpar uma mentira, os primeiros-ministros não se importaram de se confessar ignorantes, incompetentes e irresponsáveis!
Durão Barroso prometeu, antes das eleições, "um choque fiscal" e garantiu que diminuiria os impostos, sobretudo os que incidem sobre as empresas. Não fez nada disso, antes pelo contrário. Mentiu. Mas as suas mentiras passam por ser outra coisa - correcções motivadas pelo conhecimento dos números e dos factos. José Sócrates garantiu, antes das eleições, que diminuiria o número de funcionários públicos em dezenas de milhares, que criaria 150.000 empregos e que não aumentaria os impostos. Não fez nada disso, antes pelo contrário. Mentiu. Mas as suas mentiras passaram por inocentes necessidades.
O PSD e o PS têm, a propósito dos referendos em geral e do referendo europeu em particular, uma longa folha de serviço de mentiras e negações. Já foram a favor e contra várias vezes. O critério é o das conveniências, não o do programa ou da convicção. Se o referendo incomoda o adversário, são a favor. Se correm riscos, são contra. Se a matéria causa mal-estar dentro do partido, são a favor. Se têm de submeter os seus projectos à vontade popular, são contra. Actualmente, está nos programas do PS e do PSD, consta das promessas eleitorais de um e de outro, faz parte do programa do Governo de José Sócrates. Nada disso tem qualquer importância. O PSD é agora contra. E os dirigentes do PS, incluindo alguns ministros, já são contra. Quanto ao primeiro-ministro, só se pode pronunciar em Janeiro, o que é uma desculpa infantil. A verdade é que esta é a mais frequente das variedades da mentira, mas que parece também ter o perdão da opinião pública e a desatenção da imprensa. Não fazer o prometido, deixar de o fazer ou fazer outra coisa é uma forma de sublinhar a mentira original. Mas também passa, na política, por benigno constrangimento.
Será esta mais uma triste sina portuguesa? Nem sequer. A mentira tem-se transformado, nestas décadas, na moeda comum das democracias ocidentais. A guerra do Iraque é, a este propósito, um caso para estudo. As mentiras de George Bush e Tony Blair, dos seus governos e serviços de informação, ultrapassaram tudo o que se conhecia. Sobretudo pelas consequências mortais para tanta gente. Ao lado, as mentiras de George Bush pai, sobre os impostos, de Nixon, sobre tudo, ou de Clinton, sobre o sexo, foram quase inocentes.
Quanto à União Europeia, nem precisa de mentir: os seus ministros usam e abusam do novo hábito. O ministro Manuel Pinho confirmou que a mentira tem vigorado com rigor na União Europeia. Diz ele, em artigo do Diário de Notícias (de que é co-signatário com dois comissários da UE): "A partir de agora, o que a Europa faz e o que a Europa diz são uma e a mesma coisa"! Ficámos a saber, por vozes autorizadas, que a União mentia. Só não sabemos é se esta declaração não passa de mais uma mentira.
Será possível contrariar esta nefasta tendên-cia para a mentira? É difícil. Não há esperança nos deputados. Como estes se tratam sempre, uns aos outros, de mentirosos, já ninguém acredita. Se os nossos media escritos, falados ou televisivos, estivessem à altura, talvez a sucessão de mentiras não fosse tão rica. Mas também parece que, com frequência crescente, gostam do novo hábito. Que usam com volúpia. Ou perdoam com malícia.