Sexo e Arte Há três mil anos havia menos tabus?
Uma exposição em Londres e um debate em Lisboa servem de pretexto para discutir a sexualidade na Antiguidade e tentar perceber o que aconteceu entre os frescos de Pompeia e os quadros de Jeff Koons com Cicciolina
a Estava-se no final do século XVIII e o Museu Nacional Arqueológico de Nápoles não sabia o que fazer aos objectos com imagens sexualmente explícitas - e eram muitos - que os arqueólogos iam encontrando nas escavações da cidade romana de Pompeia, destruída pela erupção do Vesúvio em 79. Decidiu, por fim, colocá-los num "Gabinetto Segreto", só acessível a "pessoas de idade madura e moral respeitável". Se excluirmos uma breve abertura no final dos anos 60, este gabinete secreto (uma espécie de peep-show, há quem diga hoje) só foi aberto ao público no ano 2000 - e mesmo actualmente é preciso comprar um bilhete extra para entrar.
Será que a arte erótica de Pompeia ainda nos choca? Era o mundo antigo mais liberal no que diz respeito à sexualidade? Ainda não sabemos dizer exactamente o que é arte e o que é pornografia? Há hoje mais tabus? Ou já não há tabus? O debate regressou por causa da exposição Seduced: Art and Sex from Antiquity to Now, que inaugurou este mês no Barbican, em Londres (onde fica até 27 de Janeiro).
São 250 obras de arte (uma de um português, Julião Sarmento) que percorrem um período de 2000 anos, dos vasos gregos onde se vêem homens e mulheres (ou homens e homens) a ter relações sexuais, a Blowjob, filme feito em 1963 por Andy Warhol, passando por um pequeno quadro de Picasso emprestado pelo Metropolitan Museam of Art de Nova Iorque, sobre o mesmo tema do filme de Warhol e sintomaticamente chamado La Douleur (1903), ou pelos quadros de Jeff Koons com a sua ex-mulher, a antiga actriz de filmes porno Cicciolina. "Queremos que Londres não pense em mais nada senão em sexo durante três meses", disse ao Guardian Marina Wallace, uma das comissárias da exposição.
A prostituição em Roma
Em Portugal, vários professores universitários juntaram-se também para, durante um período mais modesto, de apenas três dias, não falarem de mais nada se não de sexo. Num colóquio que termina hoje na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, especialistas de várias áreas da História discutiram A Sexualidade no Mundo Antigo, num debate do qual podem sair respostas a algumas das questões levantadas pela exposição de Londres.
A vida sexual na Roma antiga, por exemplo, tinha tão poucos tabus como parece nas séries de televisão? "A prostituição não era propriamente elogiada, aliás quem a exercia estava na base da pirâmide social, mas era vista como totalmente necessária", explica Nuno Simões Rodrigues, da Universidade de Lisboa, que, no colóquio, falou precisamente sobre Os submundos da sexualidade em Roma. "As matronas, senhoras da aristocracia, muitas vezes mantinham as escravas como prostitutas, ganhando dinheiro para elas próprias, e tendo os maridos, os filhos ou os pais como clientes."
A distinção entre as senhoras respeitáveis e as que não o eram baseava-se num tabu mais de natureza social do que sexual. "Tinha que haver as mulheres sobre as quais não existia suspeita em relação à paternidade dos filhos, as que dão aos homens os filhos legítimos", diz Simões Rodrigues. Essa é a razão por que o adultério era tabu - "não tanto por causa do sexo, mas pelas consequências que o acto tinha para a comunidade". Por isso, conta, houve mesmo matronas que, acusadas de adultério, pediram para ser inscritas junto do edil como prostitutas. "Apesar de ser uma queda de estatuto social, isto mostra que o estigma não era assim tão grande."
Um dos grandes tabus da actualidade - a pedofilia - não fazia, aparentemente, parte das preocupações dos romanos antigos. Simões Rodrigues recorda que, no Satyricon, Petrónio relata uma festa em casa de uma matrona que, para divertir os convidados, organiza como espectáculo a iniciação sexual de uma menina de sete anos.
Homossexualidade tabu
Havia, contudo, outros tabus. Se o sexo com prostitutas ou prostitutos não era mal visto - os escravos eram apenas objectos sexuais - já a homossexualidade entre dois "homens livres" era duramente condenada, porque implicava "usar como elemento passivo um homem de nascimento livre", levantando também aqui uma questão mais de natureza social do que sexual.
A ideia, por outro lado, de que a homossexualidade masculina era perfeitamente aceite pelos gregos antigos - e lá estariam os vasos para o provar - pode ser um mito que fomos construindo, como muitos outros relativos à sexualidade dos antigos, afirma Frederico Lourenço. Foi isso, aliás, que explicou na sua intervenção sobre Homossexualidade masculina e cultura grega. "A intolerância existia na Grécia antiga como existe hoje. E tinha muito a ver com a ideia de que o homem que se demite do seu papel de homem não merece respeito, o que também está ligado à visão negativa em relação às mulheres." Tal como em Roma, também na Grécia existia legislação condenando os homens livres que "desempenhassem um papel passivo" na relação sexual.
O amor, sobre o qual Platão escreve, entre um homem mais velho e um rapaz mais novo, era rodeado de grande pudor. "Mesmo nas representações na cerâmica, as posições sexuais tinham que ser não penetrativas, de respeito pela integridade física", e a expectativa era de que esses jovens viessem a casar e a ter uma família. Os gregos antigos, defende Frederico Lourenço, "não compreenderiam aquilo a que chamamos hoje homossexualidade".
O mito da Mesopotâmia
Apesar de as imagens de Pompeia terem ido parar a um gabinete secreto - ou talvez por causa disso -, o mundo ocidental alimentou sempre uma série de mitos, mais ou menos exóticos, em relação à sexualidade no mundo antigo. Um exemplo é a célebre "prostituição sagrada" na Mesopotâmia, entre o terceiro e o primeiro milénio antes de Cristo. Afinal, explica Maria de Lurdes Palma, da Universidade de Lisboa, há muito mais dúvidas do que certezas. Sabe-se que havia um ritual de casamento entre dois deuses ou entre um deus e uma mulher, mas essa tradição acabou por se misturar com o relato do grego Heródoto, segundo o qual todas as mulheres tinham que, uma vez na vida, ir para o Templo e ter relações sexuais com o primeiro estranho que passasse. "É daí, dessas duas ou três linhas escritas por Heródoto, que surgem todas as teorias sobre a prostituição sagrada, mas trata-se de conjecturas", diz Maria de Lurdes Palma.
Também aí, na sociedade suméria, os interditos são sobretudo de natureza social. "Se a mulher comete adultério, sofre sanções porque saiu da esfera do controlo do marido. É mais isso que está em causa do que um julgamento moral. O poder patriarcal não pode ser posto em causa." Tal como na Grécia, as mulheres têm um estatuto claramente inferior. Maria de Fátima Silva, da Universidade de Coimbra, reconhece que, em termos legais, era assim na sociedade grega, mas lembra a Lisístrata, comédia de Aristófanes, recentemente recuperada a propósito da guerra do Iraque. Aí, as mulheres "conduzem uma espécie de revolução feminina em que, pela greve ao sexo, obrigam os maridos a fazerem a paz". Foi nessa Grécia patriarcal que surgiu uma ideia como esta, sublinha Maria de Fátima Silva: as mulheres possuem uma arma que é o sexo e com ela podem dominar a agressividade masculina.
E, no entanto, contrapõe Luís Manuel de Araújo, egiptólogo da Universidade de Lisboa, foram os gregos que vieram introduzir "uma certa boçalidade" nas imagens de "erotismo recatado, inteligente", que era o dos egípcios antigos. O sexo estava também muito presente no Egipto Antigo, pelo menos é o que nos dizem as imagens gravadas em templos e túmulos, as representações de deuses com grande potência sexual "que dialogam com faraós e reis numa familiaridade despida de preconceitos".
"O erotismo egípcio", explica, "não privilegia muito a imagem da mulher nua, prefere cobri-la com linho transparante, ou tecido molhado colado ao corpo". Quando a influência grega começa a fazer-se sentir, no século VII a.C., "acaba-se o refinamento e os egípcios começam a despir as suas deusas", e as cenas de erotismo passam "a jogar mais com o irónico do que com o erótico".
Antes e depois de Cristo
No Antigo Egipto, o sexo não podia ter uma carga negativa, porque "os exemplos vinham de cima, dos deuses". É, aliás, um deus criador, Atum, que forma a Terra a partir da masturbação, diz Luís Manuel de Araújo.
Esta ideia de divindades com vida sexual (e bastante activa) desaparece com o monoteísmo. E "a noção do pecado surge [na Mesopotâmia] com os semitas, 1700 ou 1800 anos antes de Cristo", afirma Maria de Lurdes Palma. Houve realmente, como diz o historiador de arte John R. Clarke, citado pelo Telegraph a propósito da exposição de Londres, "um mundo antes do cristianismo, antes da ética puritana, antes da associação da vergonha e da culpa com o acto sexual"?
"A experiência cristã corresponde, de facto, a um corte", admite o teólogo José Tolentino Mendonça, da Universidade Católica, a quem coube no colóquio da Faculdade de Letras falar sobre A Sexualidade no Novo Testamento. Mas, acrescenta, não no sentido que estaríamos à espera. "A mensagem cristã, na sua origem, não legisla directamente sobre os dois grandes interditos", os alimentares e os sexuais. Não há, no Novo Testamento, "um interesse em legislar sobre a sexualidade".
Com o cristianismo, defende Tolentino Mendonça, a própria noção de corpo é reinventada e "trabalha-se a ideia de que existe um corpo individual". Se compararmos "o catálogo dos vícios que aparece em São Paulo com os que existiam em escolas como a dos estóicos ou dos cínicos, percebemos que São Paulo não é o "castrador de serviço", mas que, no contexto do mundo antigo, é capaz de olhar para a corporalidade de uma forma que integra a sexualidade no projecto humano".
Quanto à vergonha e à culpa, são conceitos que vêm do Antigo Testamento (Adão e Eva expulsos do Paraíso e subitamente envergonhados por estarem nus), "não são invenções cristãs". "Claro que há leituras legalistas e moralistas, que se tornam sufocantes", admite, mas na narração bíblica "as palavras procuram guardar uma enorme abertura". "A sexualidade é a expressão do segredo mais radical, a sua linguagem mais funda, mais íntima", pelo que "recusar esse pudor é diminuir a expressão poética do próprio amor".
Talvez seja este o ponto certo para regressar à exposição de Londres. Kate Bush, responsável pelas galerias de arte do Barbican, citada pelo Times, afirma que a exposição tem uma "definição muito ampla" do que é a experiência sexual: "Auto-erotismo e fetichismo estão incluídos. Pedofilia e imagens violentas estão definitivamente excluídas. O sexo não é só entre duas pessoas; pode ser com objectos ou ideias". O que choca ou não choca é discutível, claro. "As fronteiras de cada um são individuais."
Não há gabinetes secretos - mas a exposição é só para maiores de 18 anos.