Julieta Gandra
Julieta Gandra viveu 90 anos de ousadia. Desafiou regras, desafiou convenções, desafiou poderes. Foi uma referência para gerações de jovens de esquerda. Viveu a política com alegria e convicção e por uma causa: Angola
a "Olhe! Em vez de estar aí parado ajude-me a carregar os embrulhos!" Sem dar tempo para ao pide, que lhe vigiava a casa, reagir, Julieta Gandra despejou os muitos pacotes com que chegara ao nº 7 da Ilha do Príncipe, em Lisboa, e obrigou assim o agente da polícia política a subir até ao 4º-B, carregando as suas compras em silêncio. Esta história desconcertante é recordada, entre sorrisos, por Diana Andringa, que, na segunda metade dos anos 60, morava no 5º-A e que conviveu com Julieta Gandra, médica, oposicionista, militante feminista e anticolonialista e, sobretudo, transgressora, falecida a 8 de Outubro, em Lisboa, com 90 anos.Nascida a 16 de Setembro de 1917, em Oliveira de Azeméis, Maria Julieta Guimarães Gandra era filha de Aurora e Mário Gandra, solicitador e pequeno comerciante, e tinha três irmãos, Fernanda, mais velha e ainda viva, Ângela, e Hernâni, arquitecto que militou no PCP.
Julieta cursou medicina, em Lisboa, onde conheceu Ernesto Cochat Osório, oposicionista e poeta, natural de Angola. Depois de casados e de ter nascido, em 1944, o seu filho Miguel (que não quis colaborar neste trabalho), rumam de barco a Luanda. Julieta é então especialista em medicina tropical. Irá interessar-se por obstetrícia e ginecologia e será ela a introdutora do parto sem dor em Angola. Médica das jovens brancas da elite de Luanda, dá também consulta a mulheres pobres, brancas e pretas.
Em Luanda, priva com intelectuais não afectos ao regime e frequenta o Cine-Clube e a Sociedade Cultural de Angola. O que fora uma aproximação à oposição na faculdade torna-se ligação ao PCP em Angola. (Pacheco Pereira, Álvaro Cunhal, III vol. pp. 517-526). Em meados dos anos 50, participa na formação do Movimento Popular de Libertação de Angola (MPLA). Vem de então a sua amizade com Agostinho Neto, Lúcio Lara, Paulo Jorge e Arménio Santos.
Durante a década e meia que vive em Angola, viaja. Vem a Lisboa. E, em 1958, depois de visitar, em Bruxelas, a exposição mundial, ruma à União Soviética. De regresso a Luanda, passa por Paris e Lisboa e, a sua sobrinha Ana Rita Gandra Gonçalves, ainda hoje se lembra das descrições de um espectáculo de Ives Montand e os discos de Léo Ferré que distribui pelos mais novos.
Processo dos 50
A 29 de Março de 1959, Julieta Gandra é presa pela PIDE. Em Agosto, realiza-se o primeiro julgamento político de nacionalistas angolanos, "o processo dos 50". No final, os presos brancos serão enviados para a metrópole, enquanto os negros irão reabrir o Campo do Tarrafal.
A sua prisão causa polémica e constrangimento na Luanda branca. Era uma intelectual influente e médica da elite. Chegou a sair da prisão para ir assistir a um parto da filha de um engenheiro belga, responsável de uma petrolífera, que assim o exigiu.
O seu tempo de prisão em Luanda foi de cela aberta. Primeiro na PSP, onde a sua detenção incomodava, pois era médica da instituição. Depois, na ala feminina do hospital psiquiátrico, que funcionou como prisão, pois não havia cadeias para presas políticas. O director acaba por exigir mesmo a retirada do pide que vigia a porta, argumento: perturba as doentes da ala feminina.
Em Lisboa, amigos da família tentam libertar Julieta. Há mesmo quem interpele o ministro Paulo Cunha, ao que este responde: "Não me fale dessa senhora!"
Julieta foi acusada de ter dado 500 escudos ao MPLA, ter convidado para jantar um membro do movimento, ter enviado um sobrescrito contendo papéis do MPLA e ser militante do PCP. As provas nunca apareceram no Tribunal Militar de Luanda e o seu advogado ficou retido em Lisboa.
Foi condenada a 12 meses de prisão. Pena que foi agravada para dois anos de prisão maior e medidas de segurança de seis meses a três anos, após recurso do Ministério Público. Julieta recorre também e realiza-se novo julgamento, já em Lisboa, mas a pena aumenta: quatro anos de prisão maior e medidas de segurança de seis meses a três anos.
Depois do processo, o filho vem viver com a tia Fernanda e estudar no Colégio Moderno, da família Soares, de que era amiga, já que o pai de Julieta e João Soares foram correlegionários na I República. Mário Soares será o advogado já no período final da cadeia e conduzirá a libertação, após uma campanha internacional conduzida pela Amnistia, a partir de Londres.
Presa do ano
Em 1964, Julieta Gandra é escolhida como "presa consciência do ano", depois de já ter sido o centro de uma campanha do grupo de defesa dos direitos humanos West Bristol, em 1962. Foi a primeira vez que um preso português é escolhido, o que voltará a acontecer com Mário Soares, em 1973, explica ao P2 Vítor Nogueira, da Amnistia Internacional, que privou também com Julieta Gandra.
No início de Julho de 1965, Julieta Gandra abandona finalmente a prisão de Caxias, onde chegara a 8 de Novembro de 1960. E onde partilhou cela com figuras como Maria Eugénia Varela Gomes, presa no Golpe de Beja, que sobre ela contou: ""Era muitíssimo inteligente, cultíssima, uma grande dama, corajosa politicamente, uma mulher frontal, impecável perante a PIDE, uma boa médica, uma mulher muito interessante."
Também a militante comunista Ivone Dias Lourenço partilhou cela com Julieta: "Era extremamente solidária, nunca fez vida à parte, nunca fez luta à parte. Ela foi sempre de uma extrema ajuda, culta, enciclopédica, interessava-se por tudo, viva, uma grande contadora de histórias, muito viajada, era o centro das nossas conversas, alimentava a curiosidade, tinha uma visão contemporânea do mundo. Eu própria considero que lhe devo o abrir dos olhos para o mundo."
Transgressão máxima
É também na cela, em Caxias, que conhece Fernanda da Paiva Tomás, nascida a 8 de Novembro de 1928, com quem manterá desde então uma relação afectiva, até à morte de Fernanda, com um tumor cerebral, em 15 de Setembro de 1984.
Fernanda da Paiva Tomás era uma alta dirigente do PCP, que entrara já em ruptura com o partido - "queriam que ela deixasse a clandestinidade para visitar Joaquim Carreira, o pai do filho, que fora preso, e ela achava que era militante comunista e não companheira", conta Diana Andringa, que esteve na mesma cela de Fernanda, no final dos anos 60. Presa em 6 de Fevereiro de 1961, Fernanda só será libertada em 19 de Novembro de 1970, sendo a mulher que mais tempo sucessivo esteve presa pela PIDE, um total de nove anos e nove meses, que se somam a onze anos de clandestinidade anterior.
"Com a saída de Fernanda Tomás da cadeia foi uma lufada de ar fresco na vida da Julieta e naquela casa. Foi um período muito porreiro. Mas nunca abordei a relação, para mim eram apenas duas pessoas que viviam na mesma casa", diz Amílcar Sequeira, amigo de Julieta que até à sua morte continuou a visitá-la no lar, onde vivia desde 2001.
O início da relação entre ambas, em Caxias, é referido por Maria Eugénia Varela Gomes em Contra Ventos e Marés (pp. 229/230). Ao P2 apenas diz: "Era visível dentro da cela a relação das duas, escrevi porque é a verdade histórica." Já Ivone Dias Lourenço sublinha: "Era muito miúda, não tinha experiência de vida, não me apercebi de nada, só soube depois da Fernanda morrer."
Apesar de o assunto ser omitido ainda hoje por muitos que privaram com as duas, Ana Rita Gândara Gonçalves, sobrinha de Julieta, assume: "Eu gostava muito da Fernanda, era uma pessoa muito especial. Elas tinham uma atitude muito natural em relação à situação. Não houve propriamente festa de casamento, mas naquelas idades não se faz isso."
Por sua vez, Maria Teresa Horta é peremptória em afirmar que, com o passar dos anos sobre a morte de Fernanda Tomás, "a relação foi silenciada, mas as pessoas sabem, até porque criou celeuma na própria cela". E prossegue: "Tinham uma afectividade imensa e uma solidariedade imensa entre as duas. Para fazer aquilo que elas fizeram, era preciso que houvesse uma grande coragem e um grande amor. Mesmo depois do 25 de Abril havia silêncio à volta do assunto. Não por elas, que não escondiam. Mas em relação à mulher é mais difícil falar-se, não há homossexualidade feminina porque não há sexualidade feminina."
E frisa: "Imagine-se o que é duas mulheres assumirem uma relação dentro de uma cela de uma cadeia da PIDE cheia de presas do PCP. É um acto de transgressão máxima, para mais porque são presas políticas do fascismo. Além da transgressão que as leva ali, há esta."
Uso da pílula em Portugal
É também no período de Caxias que Julieta Gandra se afasta do PCP, embora sobre isso Ivone Dias Lourenço apenas diga: "Não sei quem se afastou de quem." Já Teresa Horta, que foi também militante do PCP, acrescenta: "Tentei falar sobre o assunto com Alda Nogueira [esteve presa na mesma cela] e com Georgete Ferreira, ambas não quiseram falar." O afastamento consuma-se já fora da prisão e dá-se a aproximação à extrema-esquerda, se bem que o centro da luta de Julieta fosse a questão colonial.
Junta-se então ao filho em casa da irmã Fernanda e pouco depois começa a dar consultas em Sintra e monta consultório na Rua Manuel da Maia, em Lisboa, onde dará emprego a Aida Paula, com quem esteve presa em Caxias. Volta a exercer clínica, tornando-se uma das ginecologistas percursoras do uso da pílula em Portugal.
"Ela ia muito à frente, falava com grande liberdade do prazer sexual a que a mulher tinha direito sem ser penalizada com a gravidez. E pesava sobre ela o peso da suspeição do regime. Era uma mulher muito corajosa", afirma Teresa Horta acrescentando: "Fazia muita medicina gratuita, o que lhe interessava era aquilo que hoje se chama serviço público."
Santuário angolano
Após alguns meses a dormir no consultório, aluga a casa da Rua Ilha do Príncipe. Será este o lugar mítico para gerações de militantes de esquerda não alinhados com o PCP e, acima de tudo, o santuário do independentismo angolano.
"Ela era uma referência. A casa da Julieta era importante. Para mim foi um livro aberto", diz Amílcar Sequeira. É lá que as novas gerações convivem com figuras do independentismo. "Permitiu-nos ouvir históricos como o Ilídio Machado e Arménio Santos", salienta Diana Andringa que assume a dívida: "Se me perguntarem qual a minha pátria, digo Angola. De alguma forma, Julieta ajudou-me a isso. Fez-me não ter vergonha de ser branca e privilegiada."
É lá que se realiza, após o 25 de Abril, a primeira reunião para organizar a primeira manifestação anticolonial, onde estiveram Carlos Antunes e Cabral Fernandes, entre outros. E Julieta integra uma delegação da Casa de Angola que vai ao Alvor, durante a assinatura do acordo das independências, reunir-se com Agostinho Neto.
Em 1975, regressa a Luanda, para ai montar o serviço de saúde e despacha directamente com Neto. Fernanda Tomás vai consigo e trabalha no Ministério da Educação. Julieta Gandra instala o serviço de vacinação e a rede de enfermeiros e faz o levantamento para determinação de epidemias. Regressa a Lisboa profundamente doente, de urgência, em 1977, e ruma a Londres onde lhe é diagnosticado um edema pulmonar.
A dívida de Angola para com Julieta Gandra é expressa numa subvenção que recebia irregularmente do Governo angolano e que completava a subvenção atribuída no Governo de António Guterres, em reconhecimento da sua luta como antifascista. Mas recusou-se a receber a Ordem da Liberdade, já no segundo mandato de Jorge Sampaio.
"Era pessoa forte, opinativa", lembra Ana Rita Gandra Gonçalves. "Obrigava-nos a pensar. Tinha pouca paciência para chavões. Na altura da guerra do Biafra, dizia que não era adoptando uma criança que se resolvia o problema. Tinha muita paciência para nós, os mais novos, mas não tinha paciência para pieguices e disparates", lembra Diana Andringa e acrescenta: "Era uma militante feminista e anticolonial. Em tudo o que dizia e fazia estava presente que as mulheres são iguais aos homens, têm os mesmos direitos e os mesmo deveres, até o dever de pensar."