“Dor é sempre que o doente diz que dói"

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A maioria dos doentes são mulheres com lombalgia Paulo Pimenta/PÚBLICO (Arquivo)

Consulta telefónica, consulta externa, consulta multidisciplinar, Hospital de Dia e internamento. Estes são os acompanhamentos possíveis para aqueles doentes cujos tratamentos nas outras áreas não resultaram e têm dor, ou dores, no plural, pelo que necessitam de um acompanhamento mais personalizado e de reavaliar as aplicações das terapias existentes.

A coordenadora da Unidade da Dor, Beatriz Craveiro Lopes, explica que, de acordo com a Associação Internacional para o Estudo da Dor, esta é “uma experiência multidimensional desagradável que envolve tanto a parte física como a emocional”. No entanto, enquanto a dor aguda pode ser benéfica e ajudar a diagnosticar certas doenças, acrescenta que “a dor crónica não tem qualquer vantagem para o doente". "O seu sofrimento pode causar danos físicos e psicológicos”.

Os internamentos

Luísa Marques, 71 anos, diagnóstico de cancro da mama há seis. Neste momento, Luísa é um dos 19 doentes da Unidade da Dor que ocupam as camas do Garcia de Orta. Apesar do serviço não ter camas próprias, como explica a sua coordenadora, “os doentes são internados nos serviços onde houver espaço, de preferência nos relacionados com o caso. Isto é um hospital do século XXI, onde não há números fixos mas sim adaptação”.


Duas cirurgias e vários tratamentos foram o suficiente para que Luísa se habituasse à “sopa de lombardo” e ao “bife seco e duro”. Cinco anos depois de retirar a mama seguiram-se os ovários e o útero. E, como o azar bateu à sua porta mais do que uma vez, agora tem metástases no pulmão esquerdo. Os tratamentos de radioterapia debilitaram-na e provocam-lhe muitas dores o que, associado ao líquido no pulmão, lhe dá direito a longos dias de internamento na Unidade da Dor. Apesar de tudo, ainda mantém a vontade de ler. Na mesa-de-cabeceira está um livro católico intitulado “Grão de Trigo”.

Contudo, os casos de oncologia não são maioritários. Cerca de 57 por cento dos casos atendidos são lombalgias crónicas, contra os 38 por cento de oncológicos. Do total, 63 por cento são mulheres. Este é, aliás, o motivo pelo qual a Semana Europeia Contra a Dor, que termina amanhã, é dedicada à mulher, tema que será trabalhado durante o próximo ano. No ano passado, a mesma iniciativa foi dedicada às crianças. Este ano, os especialistas estiveram mais atentos à dor nos idosos. Chegou a vez das mulheres: “as mais queixosas” segundo a médica coordenadora do serviço, mas com “explicações genéticas e culturais para o fazerem”.

“Dor é sempre que o doente diz que dói. Só os podemos tratar se acreditarmos neles, mesmo que não se encontre a causa para as suas queixas”, garante Beatriz Craveiro Lopes. Por isso, na Unidade da Dor todos os doentes e familiares importam e são tratados pelo nome, já que a parte psicológica é muito importante para se tentar ultrapassar os problemas. “A principal dor é a solidão e o ser mal amado. O tecido urbano é a maior fonte de desumanização e aqui lutamos contra isso”, sublinha a coordenadora.

Consultas por telefone

Para este objectivo, a consulta via telefone foi fundamental. Por mês atendem cerca de 500 chamadas, tanto de doentes como dos seus familiares, que desta forma podem esclarecer as dúvidas ao longo dos tratamentos. “Aqui, em Almada, temos uma grande bolsa de pobreza e, especialmente, de população idosa. Com mais esta possibilidade facilitamos o contacto com todos”, explica a médica.


Poucos recursos e comparticipação insuficiente

No entanto, por mais que tentem organizar o serviço, os recursos humanos e materiais não chegam, acusa a coordenadora. Apenas cinco médicos, quatro enfermeiras, um psicólogo clínico, um técnico de serviço social, uma dietista e uma auxiliar de acção médica, muitos deles parcialmente. “Apesar de poucos, quando há falhas noutros serviços ainda nos destacam”, desabafa.


Para além disso, ao nível académico a dor ainda é pouco abordada. Nas licenciaturas poucas páginas lhe são dedicadas e as pós-graduações e mestrados são muito recentes. “Estamos perante um problema estrutural”, diz a médica. Faltam também mais estudos científicos.

Estima-se que 10 por cento da população portuguesa tem ou teve dor crónica, ou seja, 1,6 milhões de pessoas, dos quais 13 por cento teve uma depressão diagnosticada, segundo um estudo da Universidade do Porto. Quanto aos custos nada se sabe. Os doentes que precisam de analgésicos não esteróides têm apenas 37 por cento do custo dos medicamentos comparticipado. “Isto leva a que as pessoas tomem anti-inflamatórios sem necessidade, apenas por terem uma comparticipação maior, de 69 por cento”, informa a médica. Mais tarde, os problemas originados por este comportamento, como as insuficiências renais, ou mesmo os que advêm de quem não toma os medicamentos por falta de dinheiro, repercutem-se noutros gastos para a Saúde, nomeadamente em internamentos.

Para Beatriz Craveiro Lopes, Portugal em termos de legislação na matéria é dos melhores países. O problema, diz “é passar à prática”. Para isso, é necessário que a questão da dor se torne uma prioridade nas instituições, “quando até já foi elevada a quinto sinal vital pela Direcção Geral de Saúde”.

“A dor crónica é um problema de saúde pública”, alerta. Por isso, insistem que a comparticipação dos analgésicos passe para o máximo permitido, 95 por cento, e que se introduzam novos tratamentos mais eficientes – que já existem, mas são mais caros. “É preciso fazer com que a dor não seja um serviço à parte, mas sim integrado”, conclui a especialista.

Até lá, a Unidade da Dor vai continuar a dar sem custos para o doente alguns medicamentos, apesar das críticas. Luísa Marques, que espera sair em breve, pede: “Não nos matem aos poucos. Estarmos doentes não significa que não possamos ter alguma qualidade de vida”.

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