O que diz a lei

É uma situação que parece ter escapado aos legisladores e que já colocou dúvidas aos médicos em dois episódios em Lisboa e no Porto

Segundo o artigo 142º do Código Penal (interrupção da gravidez não punível):

"Nº 5: No caso de a mulher grávida ser menor de 16 anos ou psiquicamente incapaz [...] o consentimento é prestado pelo representante legal, por ascendente ou descendente ou, na sua falta, por quaisquer parentes na linha colateral."

"Nº 6: Se não for possível obter o consentimento nos termos dos números anteriores e a efectivação da interrupção de gravidez se revestir de urgência, o médico decide em consciência face à situação, socorrendo-se, sempre que possível, do parecer de outro ou outros médicos." a Imagine que uma rapariga menor de 16 anos engravida mas não quer abortar, apesar de os pais insistirem que interrompa a gravidez, ao abrigo da nova legislação. "O que é que fazemos nesta situação?", pergunta o director do serviço de Ginecologia e Obstetrícia do Hospital de Santa Maria, Luís Graça, que já se viu confrontado com um caso destes e ficou sem saber como agir. "Na altura, pedimos opinião ao Ministério Público, que remeteu a decisão para os médicos", conta.
Aconteceu com uma rapariga de 15 anos que, na primeira consulta, se recusou a interromper a gravidez, contra a vontade dos pais. "Felizmente, na segunda consulta ela já tinha mudado de opinião" e o processo foi concluído sem problemas, conta o especialista, para quem a "a situação deve ser esclarecida por juristas".
O caso não é único. No Hospital de S. João, no Porto, os médicos foram confrontados com uma situação semelhante, protagonizado também por uma menor de 15 anos. Mas aqui o desfecho foi diferente: como o limite de dez semanas de gestação já estava ultrapassado, não era possível fazer um aborto e a gravidez prosseguiu, apesar da insistência da mãe da menor.
O Código Penal refere-se apenas ao consentimento dos pais ou de um representante legal para a prática da interrupção voluntária da gravidez. "O problema foi posto só ao contrário. [Se a menor não quiser e os pais quiserem], se houver um conflito de interesses, temos de pedir aos tribunais para decidir por nós?", questiona Marina Moucho, do Hospital de S. João.
O responsável do Programa Nacional de Saúde Reprodutiva, Jorge Branco, está convicto de que este não passa de um falso problema: "A lei é bem explícita: diz que a interrupção de gravidez é feita por vontade da mulher. Quem decide é a mulher. Os pais não podem obrigar uma filha a interromper a gravidez."
Porém, para vários juristas especializados em direito de menores e da família contactados pelo PÚBLICO, a questão não é tão linear. "O que o Código Penal diz é que quem pode consentir na interrupção de gravidez é a grávida maior de 16 anos. Quando tem 15 anos é considerada incapaz e são chamados os pais ou familiares a dar consentimento", comenta Guilherme Oliveira, do Centro de Direito da Família da Universidade de Coimbra. "Se fossemos aplicar a lei de caras, ela teria de abortar. Mas acho isso insustentável."
Guilherme Oliveira lembra ainda que a última tendência - a de dar relevância à opinião dos menores - já está prevista na lei portuguesa: a Convenção sobre Direitos Humanos e Biomedicina de 1997, tornada lei em Portugal em 2001, refere que, nos tratamentos de saúde, a opinião do menor é tomada em consideração e é um factor cada vez mais determinante em função da sua idade e grau de maturidade. Se estivesse no lugar dos médicos, aconselha, "deixava a gravidez prosseguir". "Diria aos pais: vou lesar o vosso direito porque vou proteger um direito maior [o da integridade da menor]."
"Numa primeira aproximação a uma questão jurídica que me parece complexa, diria que, quando estão em causa direitos fundamentais, como o direito à privacidade e integridade física, a vontade da menor tem de ser tida em atenção e tem de ter relevância jurídica. O exercício do poder paternal não se sobrepõe", corrobora a procuradora Joana Marques Vidal.

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