Morreu o Senhor dos Palcos

Paulo Autran sorria perante a chegada da morte, esse momento "que dá sentido à vida".
Viveu 90 peças, dez filmes e muitos cigarros

a Há poucos dias pediu à mulher para avisar que iria morrer "por causa do cigarro". Há dois anos, reconheceu que fumava por "burrice". Manteve o vício até ao fim. E citava amiúde Fernando Pessoa: "continuarei fumando até que o destino mo conceda". Encarava a morte como umas das grandes prendas da vida. Como a pérola que lhe imprime sentido. Como um regresso ao útero. "Você já viu a desgraça que seria viver consciente de que nunca morreria?".Paulo Autran identificava com clareza o dia mais certo da vida que terminou esta sexta-feira. O dia em que sublimou a encruzilhada das vocações amanheceu quando tinha 27 anos. A amiga Tônia Carrero insistiu em chamá-lo para o teatro. Primeiro, o jovem advogado recusou. Depois lá cedeu às reiteradas investidas da actriz. Tirou o anel de Direito do dedo, deu-o a uma prima. E pisou um palco. "Foi o dia em que encontrei o sentido, o mapa, o êxtase", reconheceu numa entrevista feita em Março.
A peça de estreia, Deus dormiu lá em casa, vale-lhe, logo em 1949, um prémio de interpretação. "Era muito jovem, fiquei meio idiotizado".
Na frieza de um ensaio de obituário, pode escrever-se que o actor brasileiro Paulo Paquet Autran nasceu a 7 de Setembro (dia da Independência do Brasil) de 1922, no Rio de Janeiro. E que morreu aos 85 anos a 12 de Outubro de 2007, em São Paulo, vítima de um enfisema pulmonar provocado por um cancro no pulmão. Nos poros da cronologia, encaixa-se o talento. O génio e o epíteto de "Senhor dos Palcos". As manifestações do homem que fez "rir, chorar e reflectir". O trajecto do "Melhor actor do Brasil" ou a vida do "Deus do Teatro", como estampam ontem as manchetes dos principais jornais brasileiros.
Viveu num imenso rodopio: quase 60 anos de carreira e 90 peças de teatro, 10 filmes e meia dúzia de inesquecíveis incursões televisivas. Em Maio, Autran encenou e vestiu a pele d"O Avarento, de Moliére. Continuou a fumar quatro maços de cigarro por dia. Foi a última peça.
"Cuspi com gosto"
Há uma dúzia de anos, Paulo Autran não gostou dos termos com que o crítico Paulo Francis descreveu a amiga Tônia Carrero. Esperou-o no salão de um teatro. Vingou-se. "Juntei bastante cuspo e cuspi com prazer". Anos antes, tentou dar um murro a outro. Não suportava ataques de cariz pessoal. "Nunca havia dado um soco em ninguém. É difícil, sabe? O corpo se contrai, o braço fica sem força".
O homem que gostava de "pequenos detalhes" e adorava "cigarros bons" estudou Direito em São Paulo. O pai era delegado de polícia, Autran ponderou ser diplomata. Gostava de rir. E de ler poesia. Declamava Drummond de Andrade, recitava João Cabral de Melo Neto, Fernando Pessoa. Gostava de rádio, correu o Brasil de lés a lés. Sabia que a "vida é instável". Ria também à custa disso. Gargalhou quando largou o conforto da advocacia. "Qual é a profissão estável? Qual a situação estável? Se você não enfrenta a sua vocação de verdade... É claro que nossa profissão é instável sim. Mas é uma paixão a mais. Sei que vou entrar para uma profissão que não tenho a menor garantia. Mas é o que quero, o que gosto e o que vou fazer." A decisão estava tomada, não perdeu tempo a olhar para trás.
Em 1956, fundou uma companhia com Tônia Carrero, a amiga, a cúmplice, a "irmã siamesa". Estreou-se no papel de Otelo. Deu corpo a Shakespeare vezes sem fim. E a Beckett. E a Moliére, Pirandello, Artur Miller. Sófocles e Sartre.
Recusava critérios pré-fabricados. Deixou-se ir... "Nunca pensei "estou fazendo uma carreira". Fui sempre escolhendo pelo o que eu lia, gostava, o que achava necessário ser falado naquele momento. Cada momento é um critério diferente".
"A televisão enjoa".
Os portugueses conhecem-no sobretudo das telenovelas. Aparício, de Sassaricando ou Octávio da Guerrra dos sexos eram personagens que se sentavam no sofá lá de casa. No ecrã, passeou-se também pelo enredo de Pai Herói (1979) e Brasileiras e Brasileiros (1990). O último trabalho televisivo foi na mini-série Hilda Furacão (1998), da Globo. Anos antes tinha decidido que os planos em relação à televisão eram de "não fazer". "Vejo uma mediocridade de televisão o tempo todo, enjoei.".
Gostava mais de cinema. O último filme em que participou, O ano em que os meus pais saíram de casa, 2006, é um sério candidato ao Óscar de Melhor filme estrangeiro. Desde 1953, participou em dez filmes.
Ao longo da imensa carreira teve dúvidas uma única vez, na década de 70. Afastou-se do palco durante seis meses. "Precisava pensar o que estava acontecendo na minha carreira". Reflectiu e seguiu. Retomou o casamento com o teatro. Refrescou o matrimónio com a actriz Karin Rodrigues. E seguiu, imparável, até sexta-feira. A descoberta foi simples. "Sou apenas um homem de teatro. Sempre fui e sempre serei um homem de teatro. Quem é capaz de dedicar toda a sua vida à humanidade e à paixão existentes nestes metros de tablado [palco], esse é um homem de teatro".

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