Por detrás da machrabiyya
Entre os Dois Palácios é o primeiro livro da trilogia do Cairo do egípcio Naguib Mahfouz. O Nobel da Literatura foi traduzido do árabe por Badr Hassanein, uma edição da Civilização Editora nas livrarias a 17 de Outubro
a No primeiro ano do seu casamento, ousara levantar, de modo cortês, leves objecções aos seus contínuos serões. Então, aquele agarrara-a pelas orelhas e dissera-lhe com a sua voz estrondosa e num tom que não admitia réplicas: "Sou homem, o único que aqui dá ordens. Não admito qualquer observação acerca do meu comportamento. Limita-te a obedecer. E, cuidado, não queiras que te eduque à força!" Com esta lição e com as demais que se lhe seguiriam, aprendera que tudo podia suportar. O convívio com os demónios tornara-se-lhe de longe preferível ao olhar rubro de cólera do seu esposo. Devia-lhe uma submissão incondicional, pelo que sempre obedecera e se empenhara com tamanha docilidade que chegara ao extremo de execrar qualquer alusão aos seus serões e isso tão-pouco na intimidade da sua alma. Convencera-se de que a virilidade autêntica, a opressão e os serões até depois da meia-noite eram atributos indissociáveis de uma essência única. Depois, com o volver dos dias, enchera-se de orgulho em relação ao que ele fazia, quer isto lhe agradasse quer lhe causasse tristeza. Continuara a ser a esposa amável, obediente e dócil. E jamais, em dia algum, lamentara a escolha que para si fizera de uma existência calma e passiva. Sempre que reavivava recordações da sua vida, estas irrompiam sob o signo do bem e da felicidade; os receios, as mágoas eram fantasmas vazios, tão-só merecedores de um sorriso de compaixão. Acaso não vivera com este homem e os seus defeitos, um quarto de século, tendo colhido, como fruto deste convívio, os seus filhos, que eram a sua consolação e a sua alegria, uma casa abençoada e uma vida fecunda e feliz? Sim. Quanto à presença dos demónios, esta perpetuara-se, noite após noite, pacífica e nunca a mão de nenhum se abatera malévola sobre ela ou os seus filhos, limitando-se a simples brincadeiras e travessuras. Não tinha portanto motivos de queixa. Devia a Allah toda a sua gratidão: Ele aplacara o seu coração com as Suas palavras e com a Sua clemência dera um rumo à sua vida.[...]Certa vez, tinham-lhe dito que a vida de um homem como o sayyed (1) Ahmad Abdel Gawwad, com a sua riqueza, a sua força e a sua beleza, não podia estar isenta de mulheres, tendo em conta os seus contínuos serões. Naquele momento, os ciúmes tinham-na envenenado e um profundo acabrunhamento esmagara-a. Como lhe houvesse faltado coragem para se lhe dirigir directamente, contara a sua mágoa à sua mãe. Esta começara por tranquilizá-la com as mais doces palavras e a seguir dissera- lhe: "Foi contigo que ele casou após se ter divorciado da sua primeira esposa, poderia tê-la reavido, se assim o pretendesse, ou desposar uma segunda, uma terceira ou uma quarta esposa - o pai dele casou repetidas vezes -, agradece portanto a Deus que ele te tenha conservado como a sua única esposa." Ainda que as palavras da mãe não tivessem surtido efeito sobre a sua tristeza quando esta mais intensamente se fazia sentir, com o passar dos dias reconhecera tudo o que continham de justeza e sensatez. Mesmo que fosse verdade o que lhe havia sido contado, talvez fosse outro dos atributos da virilidade, como os serões e a tirania. De qualquer modo, mais valia um mal isolado do que uma multiplicidade deles. Por isso dificilmente permitia que algum escrúpulo perturbasse a sua vida agradável, alegre e próspera. E talvez, no fundo, tudo não passasse de pura ilusão ou mentira. Percebera que a sua posição em relação aos ciúmes, tal como em todas as dificuldades que haviam obstruído o percurso da sua vida, apenas admitia a anuência face a uma justiça inquestionável, perante a qual nada podia fazer. Para se defender, não achara outro recurso senão fazer apelo à sua paciência e à sua resistência pessoal, único meio para superar o que abominava. E, destarte, o ciúme e as suas causas, bem como os restantes traços característicos do seu esposo e a intimidade com os demónios, tornaram-se-lhe toleráveis.
Principiara a observar o caminho, atenta às conversas da noite, quando lhe chegou distante o som dos cascos de um cavalo. Virou a cabeça para a Rua de en-Nahhasin e viu um coche aproximando-se vagaroso e cujos candeeiros rasgavam a escuridão. Suspirou de alívio, murmurando: "Finalmente... Eis o coche de algum amigo que, depois do serão, o acompanha até à porta da casa grande, levando, depois, como é usual, o grupo dos restantes amigos para o bairro de el-Khoronfish onde residem." O coche deteve-se diante da casa e a voz do seu esposo alteou-se, com um tom jocoso:
- Ide, e que Deus vos acompanhe...
Escutava, com deleite e surpresa, a voz do esposo que se despedia dos amigos. Se, todas as noites, à mesma hora, não tivesse ouvido aquela mesma voz, jamais a teria identificado. Porquanto, os seus filhos e ela apenas lhe conheciam o rigor, a autoridade e o despotismo. Onde teria adquirido uma voz tão alegre, tão encantadora que derramava jovialidade e afabilidade?!
O dono do coche, entretanto, querendo chasquear, exclamou:
- Acaso ouviste o que o cavalo resmoneava por entre dentes quando te apeaste do coche? Disse: quão lamentável é ter de levar a casa, noite após noite, um homem que, na melhor das hipóteses, merecia montar um burro!
No coche, rebentaram as gargalhadas. O nosso homem esperou que o silêncio voltasse e então retrucou-lhe:
- E tu não ouviste o que a consciência do cavalo lhe retorquiu? Disse: contudo, se não fores tu a levá-lo, será o teu dono que ele montará!
Novas risadas sacudiram os homens. O dono do coche volveu então:
- Adiemos o resto da conversa para o serão de amanhã.
A viatura abalou em direcção à Rua Bain el-Qasrain e o sayyed dirigiu-se para a porta. A mulher, nesse interim, havia abandonado a machrabiyya (2) e voltara ao quarto, onde pegando no candeeiro se encaminhara para a sala e de lá para o corredor exterior, onde estacou no cimo das escadas. Ouviu a porta da rua que batia, o ferrolho que deslizava e imaginou-o a percorrer o pátio, com a sua alta estatura, recuperando o seu ar sério e respeitável, e pondo de parte a jovialidade inconcebível não fora a sua escuta clandestina. Em seguida, ouviu a extremidade da bengala bater nos degraus das escadas. Estendeu então a mão que segurava o candeeiro por cima do corrimão para alumiar os seus passos.
(1) Sayyed significa "senhor, patrão", título que, em geral, antecede o nome próprio.(2) Varanda cercada por um gradeamento fechado de madeira que permite ver sem ser visto
do exterior.
Entre os Dois Palácios
Autor: Naguib Mahfouz
Tradução: Badr Hassanein
Editora: Civilização
508 págs., 18.90 euros