O exército pacífico dos monges budistas pode ser a maior ameaça ao regime da junta militar
A influência do budismo na Birmânia é histórica. Esta não é a primeira vez que os monges se unem contra o poder. Já houve várias vitórias na sua luta política
a Não podem mexer em dinheiro. Vivem das oferendas dos crentes. O período de orações começa às quatro da manhã. Mas há uma vida mundana para além da meditação. Os monges budistas, uma espécie de reserva moral da nação, têm vindo a ter um papel político importante ao longo da história da Birmânia. E são hoje considerados uma das maiores ameaças à sobrevivência do regime militar.Não é só para transmitir aos filhos os ensinamentos espirituais que muitos birmaneses colocam crianças de cinco anos nos templos. É também para garantir que recebem educação - apesar de ser gratuita no país, há sempre despesas adicionais, como as fardas e a alimentação - e alojamento. Poucos serão aqueles que, entre uma população 85 por cento budista, nunca foram monges durante um período da sua vida. "Os templos nunca recusam uma criança, não cobram nada e oferecem uma educação melhor que as escolas oficiais", lê-se num artigo recente do jornal britânico The Times.
Não admira por isso que, depois dos militares, mas com um igual número de membros (quase meio milhão), os monges budistas formem a maior instituição da Birmânia. E tenham uma influência poderosa que destoa das suas vestes simples e do seu estilo de vida frugal.
Não foram os monges a desencadear as manifestações. Começaram a 19 de Agosto depois de uma subida de 500 por cento nos preços dos combustíveis, lideradas por activistas e antigos presos políticos. Mas a 5 de Setembro soldados carregaram sobre um grupo de budistas em Pakokku (no Norte). Foi exigido um pedido de desculpas que nunca chegou. No dia 18 foi declarado um boicote às oferendas dos militares. Nos protestos, os monges viraram as suas tigelas para baixo num sinal de que as suas relações com os generais estão cortadas e de que não receberão mais esmolas suas (ver caixa).
As manifestações - que deixaram de ser por um pedido de desculpas para exigir democracia no país - têm sido pacíficas, até porque o budismo advoga a não-violência. É uma religião introspectiva e meditativa, destinada a descobrir a verdadeira natureza da vida, sem ser centrada num deus. O sofrimento e a abnegação são o caminho para a liberdade - quem quiser tornar-se monge tem de aceitar viver com 220 restrições.
A vida do templo "deixa-lhes mais do que tempo para ouvir o serviço birmanês da BBC e discutir os muitos problemas do país", continua o Times.O envolvimento dos monges nas questões políticas começou ainda antes da administração britânica. No século XIX eram eles os intermediários entre os reis e a população, recorda à BBC o historiador birmanês Aung Kin. Faziam pressão junto do monarca sobre medidas impopulares, como o aumento dos impostos, adianta.
História de intervenção
Muitas das revoltas contra o colonizador britânico foram desencadeadas pelos religiosos - às vezes como forma de protesto por os estrangeiros não tirarem os sapatos quando entravam num pagode, continua Aung Kin.
O Asia Times on-line dava recentemente o exemplo de U Ottama, dirigente do Conselho-Geral das Associações Budistas, que em 1921 se tornou no primeiro cidadão birmanês a ser detido por um discurso político. U Ottama organizava através do Conselho acções anticoloniais. A revolta de Saya San, em 1930-31, tornou-se na maior rebelião armada contra a coroa e tinha também uma forte componente budista: eram os monges, continua o Asia Times, que organizavam os rebeldes para uma insurreição esmagada por mais de dez mil soldados britânicos e que resultou num igual número de mortos, incluindo o líder, Saya San.
O mesmo aconteceu em 1988 durante os protestos pró-democracia organizados sobretudo por estudantes. "Os monges foram cruciais para manter a disciplina e dar ao movimento um importante sentido de legitimidade moral." E como os outros, também morreram durante a contestação ao regime militar que governa a Birmânia desde 1962, que fez três mil vítimas. Estima-se que entre os 1200 presos políticos que a Human Rights Watch diz haver nas cadeias birmanesas, quase uma centena sejam monges budistas.
Segundo o historiador Brian Joseph, do National Endowment for Democracy, os monges que têm liderado estas manifestações fazem parte da Aliança de Monges de Toda a Birmânia, uma organização clandestina composta por jovens. "Embora pouco se saiba desta aliança, tem claramente uma liderança e uma rede de comunicações" (ver PÚBLICO de ontem). Aung Kin refere no entanto que apenas cerca de dez por cento dos monges do país serão politizados e que é possível que os restantes não estejam cientes da agitação que está a percorrer as ruas da Birmânia. Se todos fossem mobilizados, poderiam arrastar ainda mais birmaneses para os protestos para exigir que o futuro do país deixe de estar nas mãos dos militares.