Capelinhos
A novidade no Vulcão dos Capelinhos está toda debaixo da terra e o P2 visitou-a. Há exactamente 50 anos, várias bocas abriraram-se no mar e começaram a jorrar cinzas e vapor. A erupção durou 13 meses e as comemorações vão prolongar-se até 2008. Em Maio será inagurado
o Centro Interpretativo pensado para não ser visto à superfície.
Alexandra Lucas Coelho (texto), Carlos Lopes (fotos)
a Lusa não sabe bem o que vai nascer por baixo do vulcão. Há exactamente 50 anos acordou aqui, na ponta dos Capelinhos, Ilha do Faial, Açores, porque o farol era a sua casa. "O vulcão rebentou às sete da manhã. Abriu-se uma boca no mar e o faroleiro de serviço julgou que era uma baleia a respirar. Mas apareceu outra e outra, quatro bocas. Esse faroleiro foi chamar os outros e toda a gente começou a movimentar-se. A minha primeira memória é o meu pai a dizer que tínhamos que sair dali, fazer as malas de vez, levar tudo o que pudéssemos de casa."
O pai de Lusa era Tomás Pacheco da Rosa, um dos sete faroleiros dos Capelinhos. Mal viu a família a salvo, voltou. E a partir desse dia, ao longo de 13 meses, até Outubro de 1958, observou, mediu e fotografou o vulcão que nascia diante dos homens como as terras hão-de ter nascido há milhões de anos, com bombas de lava, pedras e cinzas - estas cinzas agora meio cobertas com pó de cimento, contentores, vigas, cabos, e todo o estendal de uma obra daquelas onde se entra de capacete.
Como qualquer recém-chegado que venha da Horta a serpentear até à ponta mais ocidental da ilha, é isto que Lusa avista: não a obra, mas o seu estendal, em volta do farol dos Capelinhos.
No site www.vulcaodoscapelinhos.org, dedicado ao cinquentenário que a partir de hoje se comemora, a filha do faroleiro encontrou a planta da obra que está a ser construída desde Agosto de 2006 - divisões circulares, corredores, rampas, várias salas, incluindo o antigo rés-do-chão do farol -, e estacou numa dúvida essencial: "Isto é à superfície?"
Só ao ouvir as explicações dadas ao P2 pelo Governo Regional, segundo as quais toda a obra ficará debaixo de terra ou coberta por cinzas, Lusa dirá: "Sendo assim tudo tapadinho, do mal o menos."
Opinião mais que partilhada por José Henrique Azevedo, que nem precisa de explicações. "Em relação aos Capelinhos, não temo." Vale a pena perguntar-lhe porque o seu café é a sala-de-estar do Faial, o Peter"s Café Sport. O pai, já desaparecido, a quem chamavam Peter, foi guia de muitos estrangeiros que a partir de 27 de Setembro de 1957 quiseram ver o vulcão.
As mesas sempre concorridas do Peter"s aparecem na National Geographic de Junho de 1958, que dedica 21 páginas à reportagem A New Volcano Bursts from the Atlantic.
Mas o protagonista do texto é, sem dúvida, o faroleiro Tomás Pacheco da Rosa, pai de Lusa, que aparece de boina a medir o vulcão, e ao longo do texto vai sendo citado como um anfitrião: "Sabíamos que alguma coisa ia acontecer por causa dos tremores de terra [que há dias se sentiam]. Depois, na manhã de 27 de Setembro, cedo, vi três jactos de vapor e cinzas a jorrarem do mar." E um pouco adiante: "No primeiro dia, as pessoas do Capelo fizeram uma grande peregrinação ao vulcão. As mulheres mais velhas choravam com medo que o Faial explodisse. Os homens estavam calados mas também tinham medo. Pediam todos a Deus que parasse o vulcão. Trouxeram o Espírito Santo - uma coroa de prata com uma pomba - da igreja, e marcharam até ao farol."
Não custa a compreender que as autoridades tenham nomeado Tomás Pacheco da Rosa observador oficial do fenómeno. Bombas vulcânicas a aterrar do céu e ele, muito prático, para o repórter da revista: "Basalto."
Ao longo dos meses, este faroleiro invulgar - que se tornou fotógrafo-geólogo-vulcanólogo amador por causa dos Capelinhos - reuniu "a mais representativa colecção de pedras da erupção". As palavras são da secretária regional do Ambiente, Ana Paula Marques, que, aproveitando ser domingo, dia de folga dos operários, vai descer com o P2 à obra por baixo do vulcão.
Uma das exposições que a governante espera ter lá dentro é a das pedras colhidas pelo faroleiro. Há anos que Lusa deseja expô-las. Havendo acordo entre as partes, essas pedras serão uma das razões para descer ao Centro Interpretativo do Vulcão dos Capelinhos, quando for inaugurado, em Maio de 2008.
Simulação subterrânea
Dez da manhã à entrada do estaleiro. A escura paisagem criada pelo vulcão está deserta.
Quando a erupção parou, em Outubro de 1958, o Faial ganhara 2,4 quilómetros de terra. Meio século depois, devido à erosão, resta pouco mais de um quinto, segundo Victor Hugo Forjaz. Este veterano da vulcanologia considera possível que o vulcão volte a ser uma ilha, como nos primeiros tempos da erupção.
Antes deste estaleiro ser montado, o que se via era a torre e o primeiro andar do farol. O rés-do-chão estava soterrado. Agora está descoberto. As cinzas foram desviadas para um monte aqui ao lado e o edifício foi reforçado com betão. Quando a obra acabar, garantem Ana Paula Marques, e o director-regional do Ambiente, Frederico Cardigos, as cinzas voltarão a ser repostas.
"Isto vai voltar a ficar como era há 50 anos", afirma a governante, abarcando o estaleiro com o braço. "Queremos recriar um tempo." A única diferença à superfície será um parque de estacionamento entre a estrada e o farol. "Vai ficar ali em baixo, numa cota inferior", aponta. "Mas não poderá ser para muita gente porque dentro do centro os lugares sentados são 50."
Este centro, que integra uma rede de centros interpretativos em criação nos Açores, tem um custo previsto de seis milhões de euros, "metade em materiais, metade em novas tecnologias, e é a primeira vez nos Açores que essa percentagem é idêntica", sublinha Ana Paula Marques.
Descendo pelo estaleiro, chega-se a uma espécie de grande tampa redonda de betão. É o tecto do centro. "Serão 3000 metros quadrados de betão enterrado e aqui em cima só se vão ver cinzas." Quando a obra acabar, este tecto ficará coberto, a um nível um pouco acima do chão. Só se deverá ver uma fresta de vidro a toda a volta.
Umas escadas improvisadas para as obras levam ao grande foyer interior, subterrâneo, em forma de cogumelo. A tampa é como a cabeça do cogumelo, e as pessoas circulam em volta do pé-pilar, ao centro. O acesso às várias salas e áreas faz-se para a esquerda, na direcção do farol e do mar. A este foyer, com a ilha do Faial desenhada no chão, vai ser dado o nome de Frederico Machado, o vulcanólogo que era director de obras públicas no Faial em 1957 e foi decisivo na investigação do vulcão. "Até aqui, as pessoas entram sem pagar e têm acesso a um bar, a uma loja, a um filme com o processo de construção do edifício", indica a secretária.
Vulcão com telefone
Uma das saídas do foyer faz-se através do que eram as casas dos faroleiros. Seguindo por um corredor comprido, que deverá funcionar como espaço de exposições, chega-se ao ar livre, aos pés do farol.
"Isto era um vulcão com telefone!", lembra Frederico Cardigos. Um rudimentar telefone com que Tomás Pacheco da Rosa ia comunicando regularmente o estado do vulcão para a Horta.
O muro que circundava o farol ainda cá está, entre traves, tábuas, arames. Vê-se muito bem até onde chegavam as cinzas temporariamente retiradas: do primeiro andar para baixo, as paredes do farol são amarelo-areia, clarinhas de terem estado protegidas, soterradas meio-século. "Quando retirámos as cinzas e o farol ficou à vista houve uma romaria de faialenses aqui", conta Ana Paula Marques. "As gerações abaixo dos 60 anos não se lembram disto descoberto."
As entranhas do farol estão cheias de vigas, andaimes, ferros, até à vertiginosa escada em espiral que leva à lanterna. Como ainda não há corrimão, é preciso seguir encostado à parede, passando, piso a piso, as quatro janelas-vigias de onde se avista o mar e a terra roubada ao mar pelo vulcão.
Chegando ao topo, antes da lanterna, alguém escreveu na parede: "Aqui jaz um farol." Mas trepando ainda por um precário escadote é possível ver como a lanterna, agora nova em folha, desafia o graffito.
Entre 1957 e 1958, em todas as redondezas destas aldeias, do Capelo ao Norte Pequeno, centenas de casas e terrenos ficaram soterrados ou semi-destruídos pelas cinzas e pedras. Vinhas, pastagens, terras de cultivo perdidas para sempre, sustento de gente que vivia da terra. E os que viviam do mar, da caça às baleias que se juntavam a umas 15 milhas daqui num bom ponto de baleação, viram as presas afastarem-se destas águas, borbulhantes de gases e actividade sísmica. O vulcão levou muitos faialenses a emigrar para as Américas.
Deste terraço natural nota-se o trabalho da erosão no vulcão: falhas, vestígios de desmoronamentos recentes. "No futuro, as pessoas não vão poder vir aqui sem guia", diz Ana Paula Marques. "Há riscos de quedas, já veio para aqui gente de mota e isto é zona de nidificação." Cagarros, garajaus, gaivotas.
Voltando ao foyer, uma das atracções será a sala do holograma, "onde as pessoas podem sentir o vulcão desde o mar até ao seu expoente máximo, com muito calor e regos de lavas pelo chão". À luz da lanterna do vigilante da obra, mostram-nos os regos que serpenteiam pelo chão, onde a ilusão da lava vai acontecer.
"Se mantivermos as cinzas, não se perde nada do que era a paisagem e acaba por se ganhar outra dimensão para o vulcão", defende Frederico Cardigos.
Mas não é unânime que este centro teria que ser aqui, ou subterrâneo.
E à superfície?
O vulcanólogo Victor Hugo Forjaz, que estava em São Miguel durante a visita do P2, integrou recentemente o projecto do centro, para pensar o seu "recheio" científico. Que pensa este veterano do que está a nascer por baixo dos Capelinhos? "Primeiro: o centro já devia ter sido feito há 50 anos. Segundo: está fazer-se agora. Terceiro: como arquitectura, não tenho qualquer responsabilidade." E opinião? "Preferia outro tipo de estrutura, não tão próximo do farol e à superfície. Mas já que está feita, que seja bem recheada." A fase actual é de "discutir o recheio, tentando que obedeça ao que já foi feito" em outros centros.
Lusa espera que isto não venha a ser "uma absoluta perda de dinheiros públicos".
Joaquim Azevedo, o filho do Peter, não foi à apresentação do projecto. Ouviu "falar muito bem" a quem foi, e de resto não tem ouvido críticas. Lamenta que "não tenha havido mais discussão", mas crê que a relação individual com os Capelinhos não se vai alterar.
"Quando levo um amigo a ver o vulcão, gosto que caminhe à frente, para que sinta aquilo. Quando se vai ao vulcão somos os únicos, e pode ser muito forte ver aquilo que saiu do mar. Mas essa relação com a paisagem, com a imensidão, começa depois do farol. Acredito que a obra não fará perder isso e vai criar um dinamismo muito forte, com imagens, explicações, pormenores, mostrar como era a freguesia. Somos ilhas pequenas, temos que aproveitar tudo o que temos para desenvolver histórias."
Nem o parque de estacionamento o inquieta: "A minha grande desilusão na ilha foi caminhar na Caldeira e encontrar uma estrada. A estrada para os Capelinhos já existia antes desta obra, e as pessoas já lá deixavam os carros." Não será por aí que virá o turismo de massas - que José Azevedo não quer nem imagina: "Nos Açores deve haver boas estradas para os hospitais e para as escolas e o resto devem ser más estradas."
O P2 viajou a convite da Câmara Municipal da Horta