A literatura erótica deu lugar a uma literatura voyeurista?
"Venha descobrir a figura pública nacional que se esconde por trás de Vera Galpe", foi o grande chamariz para o livro Vírgula, Caralho, lançado anteontem. Ninguém descobriu nada
a Primeiro vieram os polícias, depois os populares, depois os jornalistas. Setembro de 2004. Viseu virou primeira página. Não, não foi um assalto, nem um rapto, nem um homicídio. Foi, nada mais, nada menos, do que um livro, mas mereceu escaparates de crime. As Mulheres não Gostam de Foder, ensaio sexual de banda-desenhada do espanhol Alvarez Rabo (Edições Polvo) tinha um título demasiado pecaminoso para figurar na montra de uma livraria de uma cidade puritana. A PSP quis apreender a BD, alegando queixas de visienses, como se o livro fosse um incitador à prática de orgias em praça pública. E, de repente, estalou a polémica: a liberdade não estava a passar por Viseu. E, de seguida, estalou o fenómeno: a primeira edição esgotou rapidamente. Foi preciso fazer sair uma segunda e uma terceira. O autor foi a Viseu e à Amadora, encapuzado, e todos quiseram vê-lo. Porquê? Porque as pessoas se interessam por livros eróticos? Ou porque ninguém queria passar ao lado do livro que andava nas bocas do país?"Venha descobrir a figura pública nacional que se esconde por trás de Vera Galpe", foi o grande chamariz para o livro Vírgula, Caralho - Histórias de sexo sem tabus, lançado, anteontem, no MusicBox. E, de certa forma, foi uma fraude. Pedro Lima apresentou o livro, Pedro Giestas leu um dos contos, mas ninguém revelou o nome da figura pública que teve a ousadia de escrever um livro sobre sexo, carregado de palavrões. "Não foi uma estratégia de marketing planeada, foi o que me ocorreu na altura, mas que resultou bem, resultou", afirma Alexandre Vasconcelos e Sá, editor da Caderno/Asa. "Depois de enviarmos o comunicado de imprensa choveram telefonemas. A comunicação social, o público, os meus amigos, todos querem saber quem é Vera Galpe."
"O pseudónimo é um golpe", diz Miguel Esteves Cardoso. "Ainda nem olhei para o livro, mas parece-me óbvio que aqui o que vai vender é o marketing. Se dissessem "uma das figuras menos conhecidas do país" ou "histórias escritas por uma romena" ninguém queria saber." O autor de O Amor é Fodido compara a estratégia em torno do recente livro erótico de capa rosa, com bola vermelha no canto direito, com o fenómeno O Meu Pipi: "Suspeitaram que era eu. Cheguei a receber os louros de uma coisa que não fiz mas que era sinceramente bem feita. Neste da Vera Galpe penso que o anonimato serve para levar o leitor a fantasiar com a figura nacional que mais o atrai e assim vender e vender."
A promoção de um livro erótico em torno de uma identidade misteriosa, mas sobejamente conhecida, faz lançar a questão: os livros eróticos só chegam aos tops quando despertam no público uma curiosidade aguçada sobre a vida sexual dos outros? Maria João Costa, editora de não-ficção de actualidade da Dom Quixote (Livros d"Hoje), não tem dúvidas: "Um erotismo com carácter voyeurista está em franco crescimento."
O interesse de uma editora por contos eróticos escritos por uma figura pública não pode ser desligado do êxito da onda Bruna Surfistinha, o exemplo mais célebre dos relatos de experiências sexuais na primeira pessoa que de há uns para cá vendem às catadupas.
A Dom Quixote foi uma das primeiras a inaugurar o fenómeno, com a publicação de Diário de uma Ninfomaníaca, de Valérie Tasso, a história de uma mulher que assumia sem vergonha que ser prostituta lhe dava prazer porque gostava de sexo. A partir daqui, "percebeu-se que havia mercado e insistiu-se nisso", diz Maria João Costa.
Em tempos tivemos Bocage, Nicolau Tolentino, António Botto, Teixeira Gomes, o atrevimento das Três Marias, Mário Cesariny, Luiz Pacheco, David Mourão-Ferreira e o corpo da mulher como "bicho da terra/toda fulgente de pêlos/toda brotada de trevas". Tivemos poesia e prosa com lugar para o sexo, para as fantasias, para os corpos nus, com a beleza ou a rudeza com que se falava do amor, da natureza ou da morte. Mas hoje, se exceptuarmos nomes como o de Maria Teresa Horta ou de Urbano Tavares Rodrigues, quase já não há grandes escritores a querer dar a cara pela literatura erótica, embora povoem muitos romances com cenas de sexo, exaltação do amor físico, do desejo e do prazer sexual.
Poucos portugueses
Não existem números. Desde que a Associação de Editores e Livreiros, em 1999, parou de publicar estudos, deixou de ser possível contabilizar lançamentos com rigor. Carlos Veiga Ferreira, presidente da União dos Editores Portugueses, arrisca um número: "Por ano, talvez sejam publicados cerca de cem livros eróticos no país. Se juntarmos a não-ficção, o número deve ultrapassar os duzentos. Mas se pensarmos em autores portugueses, deve ser um número irrisório."
Postos de lado livros erótico-biográfico-voyeuristas, o erotismo na literatura portuguesa parece estar condenado a edições marginais, ao contrário de França ou Espanha, países com um elevado número de publicações eróticas. "Publicam-se certamente livros pornográficos, só que não é fácil encontrá-los nas grandes livrarias", diz o escritor e crítico Eduardo Pitta. Para Domingos Lobo, que assinou recentemente a organização de uma colectânea de poesia erótica em Portugal no século XVIII, não nos podemos esquecer que a literatura erótica esteve em tempos muito ligada à literatura burlesca e satírica: "Hoje, as pessoas têm liberdade para dizer o que pensam para lá dos livros. O estilo burlesco deixou quase de existir e a linha erótica pura e dura talvez se tenha sumido por arrasto."
Rui Brito, editor da Polvo, desdramatiza: "Há 10 anos não havia quase nada. Hoje há às catadupas. Existem até editoras com chancelas próprias só para publicar literatura erótica. Só que é preciso trabalho de marketing, senão acaba por passar despercebida. E a maioria, ou é já pornografia, ou é de muito má qualidade."
Maria Isabel Moura - nome próprio, não pseudónimo - tem uma obra "entre o erótico e o pornográfico" publicada no Canto Nono, primeira colecção de literatura erótica em Portugal, lançada pela Teorema. É a única autora portuguesa da colecção, numa obra intitulado Todo o Começo É Involuntário. O editor, Carlos Veiga Ferreira, lamenta: "Encontrar bons livros eróticos é a minha tarefa mais árdua. A maior parte dos que encontro são grosseiros, sexo gratuito sem qualquer história."