Ozono O acordo ambiental que salvou o mundo
O Protocolo de Montreal para a protecção da camada
de ozono faz hoje vinte anos e é apontado como exemplo de sucesso. Por quê não se consegue
o mesmo para as alterações climáticas?
a Eram 24 países à volta da mesa e sobre ela um problema com o qual ninguém jamais sonhara ser possível. Não só pela sua natureza insólita - um buraco na atmosfera, que deixava a Terra exposta aos mais nefastos raios solares - como pela dimensão planetária das suas causas e, possivelmente, consequências.Mas daquele encontro saiu uma resposta. Mais do que isso, a solução foi sendo aperfeiçoada ao longo dos anos, de tal forma que o Protocolo de Montreal sobre as Substâncias que Destroem a Camada de Ozono, que hoje completa vinte anos, é considerado um dos maiores sucessos da diplomacia ambiental internacional.
Até agora, 191 países já ratificaram esse tratado da ONU. O seu principal objectivo foi alcançado: limitar ao mínimo a produção e o uso de gases como os CFC e os halons, que antes estavam nos aerossóis, frigoríficos e extintores de incêndio. E o buraco na camada de ozono só não fechou ainda porque o remédio leva algum tempo - algumas décadas - até fazer efeito.
Nas celebrações dos vinte anos do Protocolo de Montreal, há uma pergunta inevitável que paira no ar: por quê o mundo acertou na receita para emendar o buraco na camada de ozono, mas não consegue o mesmo para o problema das alterações climáticas?
Foi mais ou menos na mesma altura, nos anos 1980, que ambos emergiram como ameaças globais perante a opinião pública, despertando o mundo para as mazelas ambientais planetárias. A questão da camada de ozono começara a ganhar fôlego antes. Em 1973, detectou-se a presença de CFC (clorofluorcarbonetos) - um composto inventado pela indústria química - na atmosfera.
No ano seguinte, os cientistas Sherwood Rowland e Mario Molina, da Universidade da Califórnia em Irvine, publicaram um artigo na revista Nature demonstrando que os mesmos CFC tinham o poder de destruir o ozono na estratosfera, entre 10 a 50 quilómetros de altitude. E lá no alto, o ozono é vital, porque forma um escudo protector da Terra contra os raios ultra-violeta.
O alarme foi dado logo aí. Mas o temor assumiu novas proporções quando investigadores britânicos publicaram pela primeira vez, em 1985, evidências de que já havia um buraco na camada de ozono sobre a Antárctida.
Na verdade, não se trata de um buraco. O que ocorre é uma redução na concentração do ozono, provocada pela sua reacção com o cloro e o bromo, que estão presentes nos CFC, nos halons e em outros químicos comerciais. O fenómeno ocorre sobretudo nos pólos.
Com menos ozono na estratosfera, mais raios ultra-violetas chegam à superfície da Terra, provocando mais cancros, mais problemas de pele e mais doenças nos olhos.
Diante desta ameaça, a acção foi imediata. Em 1978 - ainda antes da primeira observação empírica do buraco - os Estados Unidos baniram quase totalmente a utilização dos CFC nos aerossóis. Outros países, como o Canadá, Noruega e Suécia fizeram o mesmo. E em 1981, a Programa de Ambiente das Nações Unidas (UNEP, na sigla em inglês) começou a trabalhar num acordo internacional para abordar o problema.
Quando se comprovou a existência do buraco sobre a Antárctida, em 1985, a comunidade internacional já estava a assinar um tratado, a Convenção de Viena para a Protecção da Camada de Ozono. Daí até ao Protocolo de Montreal, dois anos depois, foi um salto.
Contrariamente à convenção, que era mais genérica, o protocolo fixou um calendário concreto para limitar a produção e consumo de oito gases destruidores do ozono. Depois de sucessivas emendas, hoje são cerca de uma centena os compostos sob controlo do tratado de Montreal. Até 1996, a esmagadoria maioria já tinha sido banida dos países desenvolvidos. As nações em desenvolvimento também os estão a eliminar, mas com um prazo mais alargado, até 2010 para os principais gases.
Problemas diferentes
Do ponto de vista cronológico, a reacção perante o problema das alterações climáticas seguiu passos parecidos, embora mais retardados. A suspeita de que a temperatura da Terra poderia aquecer rapidamente, por influência de determinados gases expelidos pelas chaminés das indústrias, escapes dos automóveis e campos agrícolas, circulava no meio académico também desde a década de 1970. Mas no calendário da opinião pública e política, a grande reacção ocorreu no final da década de 1980.
O maior empurrão veio dos Estados Unidos. Em 1988, o país atravessava um Verão de seca e ondas de calor, quando o cientista da NASA James Hansen afirmou, numa audiência no Senado norte-americano, estar 99 por cento seguro de que o mundo enfrentava uma tendência de aquecimento a longo prazo. O depoimento semeou uma torrente de notícias na comunicação social, que durou meses.
No mesmo ano, a ONU e a Organização Meteorológica Mundial criaram o Painel Intergovernamental para as Alterações Climáticas, para deslindar o que a ciência sabia sobre o aquecimento global. Nas negociações internacionais, o assunto também ganhou balanço. Em 1992, foi aprovada a Convenção Quadro das Nações Unidas para as Alterações Climáticas, e em 1997, o Protocolo de Quioto.
Mas enquanto no caso do ozono o Protocolo de Montreal funcionou, nas alterações climáticas o problema está longe de ser resolvido. Ainda se discute uma alternativa ao tratado de Quioto, que preconiza uma redução muito tímida das emissões de gases com efeito de estufa, que aquecem o planeta.
Montreal vem sendo apresentado com um exemplo de cooperação internacional, que deveria ser seguido nas negociações sobre o clima. "É um caso de sucesso a todos os níveis", avalia Nuno Lacasta, coordenador intenacional do Ministério do Ambiente, do Ordenamento do Território e do Desenvolvimento Regional.
Mas os contextos dos dois problemas são muito diferentes. O buraco da camada de ozono tem origem em 1928, quando cientistas criaram o CFC. O seu uso espalhou-se, mas ainda assim estava restrito a um conjunto específico de aplicações.
O aquecimento global, por sua vez, tem raízes bem mais fundas e antigas, na Revolução Industrial, há mais de dois séculos. Desde então, usou-se e abusou-se do carvão, do petróleo e do gás natural como fonte de energia, numa espécie de "elixir mágico" da civilização moderna, nas palavras de Viriato Soromenho Marques, catedrático de Filosofia na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. "No caso das alterações climáticas, o que está em causa é toda uma sociedade baseada nos combustíveis fósseis", diz Soromenho Marques.
Além disso, resolver o problema da camada de ozono não mexia com tantos interesses. "O número de actores era menor. Era um mão cheia de companhias que produziam aquelas substâncias, em poucos países", afirma Nuno Lacasta.
A própria indústria química tinha alternativas tecnológicas para substituir os CFC. Reduzir as emissões de gases com efeito de estufa, ao contrário, interfere nos negócios multi-bilionários da indústria petrolífera.
Muitos ressaltam, ainda, o papel de liderança que os Estados Unidos tiveram na negociação do Protocolo de Montreal. Em contraste, os EUA simplesmente abandonaram o Protocolo de Quioto, em 2001, sobretudo por razões económicas internas.
Ainda assim, no princípio houve reacções contrárias ao fim dos CFC. Carlos Pimenta, ex-secretário de Estado do Ambiente, recorda um episódio elucidativo. No Conselho Europeu que discutia se a então CEE apoiaria a ideia do Protocolo de Montreal, Carlos Pimenta recebeu um recado de um embaixador português que estava ao seu lado. A posição nacional deveria ser contra, segundo indicações do Ministério da Indústria.
"Quando chegou a minha vez de falar, fiz uma defesa entusiástica do Protocolo de Montreal", lembra Carlos Pimenta. "O embaixador ficou branco e dava-me cotoveladas".
Macário Correia, que sucedeu a Pimenta na pasta do Ambiente, diz que não foi fácil chegar a um acordo. Mas ainda assim, dentro da CEE havia menos pedras no caminho. "Era mais fácil concertar posições a 12 [Estados-membros] do que a 27", diz.
O sucesso do Protocolo de Montreal mede-se em primeiro lugar pela eliminação dos gases que destóem o ozono. A produção destes gases chegava a 1,8 milhões de toneladas em 1987. Em 2005, tinha caído para apenas 83 mil toneladas, segundo dados da UNEP.
Mas alguns gases- os HCFC, que substituíram os CFC - ainda são largamente utilizados. O seu consumo está mesmo a crescer nos países em desenvolvimento.
Esses gases também têm o poder, embora muito menor, de destruir o ozono. A sua eliminação completa só está prevista em 2040. Reduzir este prazo é um dos pontos da agenda da 19ª conferência dos países signatários do Protocolo de Montreal, que começa amanhã, no Canadá.
Os gases nocivos à camada de ozono também contribuem para o efeito de estufa, aumentando a temperatura global. Por isso, reduzi-los acaba por ter um efeito benéfico paralelo nas alterações climáticas.
Quanto ao buraco do ozono, ele ainda continua enorme sobre o extremo sul do planeta - cerca de 28 milhões de quilómetros quadrados no ano passado. Em termos de ozono destruído durante a Primavera polar, quando se forma o buraco, o ano passado assinalou um recorde, 40 milhões de toneladas, segundo dados da Agência Espacial Europeia.
O buraco está a atravessar o seu pico, mas em alguns anos deverá entrar numa tendência de regressão. A sua recuperação completa depende do cumprimento do Protocolo de Montreal, mas também de outros factores. As alterações climáticas podem acelerar ou retardar o processo. "E erupções vulcânicas nas próximas décadas podem reduzir temporariamente a quantidade de ozono por vários anos", explica uma nota informativa da UNEP.
Entre 2050 e 2075 a concentração de ozono na atmosfera terá recuperado aos níveis de 1980, segundo a UNEP, e o Protocolo de Montreal dará por cabalmente cumprida a sua missão.
Nessa altura, já se saberá se os cenários catastróficos que hoje se fazem sobre a outra ameaça global, as alterações climáticas, eram verdadeiros ou se o mundo foi capaz de fazer algo a respeito.