Torne-se perito

Na vila dos McCann quase ninguém quer falar dos McCann

Ministério Público tem dez dias para marcar novas buscas ou inquirições. Pais da criança suspeitos de homicídio negligente e ocultação de cadáver

a Dezenas de tripés jazem sem câmaras à espera da hora dos directos. Os holofotes e o material de som seguem-lhes o caminho. Todos esperam pelos seus cinco minutos de fama. Ou, por outras palavras, de satélite. Ouve-se italiano, francês, alemão e, claro, inglês. A pequena praça de Cross Green, o epicentro da vila inglesa de Rothley, onde vive o casal McCann, foi invadida por jornalistas, que declararam independência sobre o território. E até o monumento construído no centro em memória dos mortos da primeira e da segunda Guerra Mundial se sentiu intimidado. Resultado? Os invadidos não gostaram e revoltaram-se contra os invasores. Uma inglesa que passava de carro pela praça faz questão de demonstrar isso mesmo. "Vão embora", grita pela janela. A frase é repetida várias vezes na ronda que fazemos pelas duas dezenas de lojas que compõem o centro da vila, onde vivem pouco mais de três mil pessoas. A maioria diz apenas que não quer falar. Mas há quem chegue à ameaça. Um homem de meia-idade, que está num restaurante, faz-nos um gesto brusco e enxota-nos: "Vão! Vão!"
Nimesh Valand, 26 anos, vê a azáfama da janela, mesmo em frente à praça principal. Mas não vê muito. Cabelos e mais cabelos atrapalham-lhe o tempo. Para o barbeiro indiano a enchente nem é muito má. Já cortou o cabelo a vários jornalistas. E assim lá vai entrando mais algum. Compreende, contudo, o comportamento dos locais. "Está toda a gente chateada, porque os pais são suspeitos", justifica. E não há lugar de estacionamento para quem quer ir às compras.
"A TV está por todo o lado. A vila não está habituada a tanta atenção", lança o rapaz inglês sentado na cadeira de Nimesh. Não quer dizer o nome. O indiano também está relutante em falar sobre os McCann. Alguma insistência e lá explica que o pai de Maddie vai lá de vez em quando cortar o cabelo. "É uma boa pessoa", garante. Conhecem-se da conversa de barbeiro. Ou seja, emprego, família, futebol, râguebi, meteorologia... Mas é suficiente para Nimesh não acreditar que os McCann tenham tido alguma coisa a ver com o desaparecimento da filha.
Denise Parker é de uma aldeia vizinha e não dá palpites. Não estranha a atitude das pessoas de Rothley. "É uma vila, é normal que as pessoas sejam protectoras", defende. Contamos-lhe as peripécias e até as ameaças. Sorri. Diz-se contente. "Se os vizinhos não nos protegem, então quem nos protege?", justifica.
Num pub perto do centro, Michael Lloyd, residente em Rothley há 20 anos, bebe uma Adnams, uma cerveja local. "Somos uma vila calma e isto já lá vai há quatro meses", justifica. Quanto aos McCann, é menos seguro. "É suspeito", admite. "Até prova em contrário, os McCann só foram culpados de deixarem os filhos sozinhos, o que em Inglaterra não é uma boa coisa." Apesar da reacção da vila aos jornalistas, Lloyd garante que muitos criticam o comportamento do casal. "Acho muito difícil de acreditar que pessoas que ganham tão bem não possam pagar a uma baby sitter para ficar com os filhos."
Na vila, como em muitas no Reino Unido, as casas são de tijolo e as janelas brancas. O verde está sempre por perto e os prédios estão proibidos. Há espaço e respira-se ar puro. Além disso, Rothley resume-se a uma praça central e a uma dúzia de ruas.
Na casa do casal, no limite da vila, o aparato desceu de tom. A polícia decidiu impedir a presença da comunicação social na rua que dá acesso à moradia dos McCann. "Queremos que seja respeitada a privacidade dos residentes e da família", explica um agente. Mas as câmaras, ainda que mais longe, não desarmaram. Ao fim da tarde, contudo, já só se contavam três.
a A Justiça, em Portugal, é "lenta" e "incapaz de produzir provas", afirmou ontem Carlos Pinto de Abreu, o advogado contratado pelo casal McCann para os defender. Na sessão pública em que apresentou a sua candidatura à presidência do Conselho Distrital de Lisboa da Ordem dos Advogados (OA), Pinto de Abreu, presidente da Comissão dos Direitos Humanos da OA, disse que, em Portugal, a justiça, "infelizmente, não é igual para todos, é uma máquina anquilosada, lenta e inconclusiva incapaz de produzir provas e julgar em tempo útil, mais apropriada para triturar a paciência de um credor e a reputação de um inocente do que para fazer cumprir as obrigações e identificar responsáveis".
Pinto de Abreu, que se recusou a falar do "caso Maddie", adiantou que "os direitos humanos e a justiça estão no fim da escala de prioridades do Estado e dos governantes", notando que "nunca colocaram a justiça e o cidadão comum no topo das prioridades; e, por isso, a justiça é o que se vê". Considerou ainda ser "indecente o rigor e a exigência que se pede aos advogados, quando nem o Estado, nem os juízes, nem os magistrados, nem sequer os funcionários cumprem, ao contrário de nós, os seus prazos".
Ontem, Gerry McCann voltou a escrever no blogue que criou após o desaparecimento da filha para dizer que contratou juristas em Inglaterra com o objectivo de aconselhar a família e apoiar o advogado português na preparação da defesa contra eventuais acusações. Adianta que tanto ele como a sua mulher estão "100 por cento confiantes na inocência um do outro" e afirma que a procura de Madeleine "tem de continuar a ser a prioridade da investigação". Gerry esclarece, no mesmo site, não terem sido apontadas pelas autoridades portuguesas acusações concretas ao casal, não lhes tendo igualmente sido impostas quaisquer restrições de movimentos.
"No sábado perguntámos à polícia portuguesa se tinha alguma objecção ao nosso regresso ao Reino Unido. Assegurámos que continuaremos a cooperar totalmente com a investigação e, obviamente, regressaremos [a Portugal] se isso for solicitado", garante. No seu blogue, Gerry acrescenta que para ele e sua mulher os acontecimentos da última semana são um "pesadelo interminável", acrescentando que ambos tinham toda a confiança que, quando os factos lhes fossem apresentados em interrogatório, seriam capazes de mostrar que não tiveram nada a ver com o rapto de Madeleine.
Paula Torres de Carvalho, Idálio Revez e António Arnaldo Mesquita

a O procurador do círculo de Portimão requereu ontem ao juiz de instrução que ordenasse a apreensão de um diário no âmbito do processo de investigação do desaparecimento de Madeleine McCann. Esta é a primeira diligência a realizar após a entrega, pela Polícia Judiciária (PJ), do relatório intercalar sobre o chamado "caso Maddie" ao Ministério Público (MP). Os elementos existentes no relatório não parecem constituir indícios suficientemente fortes que justifiquem o agravamento da medida de coacção aplicada a Gerry e Kate McCann, suspeitos de ocultação de cadáver. A tese sustentada pela PJ aponta para a morte acidental da criança na sala do apartamento na Praia da Luz onde os McCann estavam hospedados. Em circunstâncias que se tenta apurar, o corpo desapareceu. É na tentativa para o encontrar que se concentra, agora, todo o trabalho da polícia.
Ontem, numa nota divulgada ao final da tarde, o procurador-geral da República, Pinto Monteiro, esclareceu que a investigação sobre o desaparecimento da menina inglesa não está concluída, "justificando-se novas diligências, realizadas as quais se reapreciarão as possíveis medidas de coacção". Pretende-se ainda recorrer a "mecanismos de cooperação internacional adequados", bem como a outras medidas, "designadamente no que respeita à situação de arguidos", refere a nota da procuradoria. O MP tem agora dez dias para se pronunciar sobre as diligências que entende ter de realizar e que podem passar, por exemplo, por novas buscas e interrogatórios.
Mais de mil páginas
Constituído por dez volumes com mais de mil páginas, o relatório inclui o registo de todas as diligências promovidas pela PJ com vista à descoberta do que aconteceu a Madeleine desde que desapareceu, a 3 de Maio. Entre estes dados incluem-se os resultados obtidos pelas análises realizadas aos vestígios recolhidos.
Os documentos entregues a José Magalhães e Menezes, representante do Ministério Público no Tribunal de Portimão, encontram-se sob rigorosas medidas de segurança. A partir de agora, a investigação deste processo "passará a ter o acompanhamento directo" do procurador-geral distrital de Évora, Luís Bilro Verão, que nomeará um procurador-geral adjunto para o coadjuvar, como determina Pinto Monteiro.
O juiz de instrução de Portimão vai ainda pronunciar-se sobre a compatibilidade de Kate e Gerry McCann serem, ao mesmo tempo, arguidos e assistentes no inquérito relacionado com o desaparecimento da filha. Os pais de Maddie preenchiam os requisitos para assumir o estatuto de assistentes até ao último interrogatório a que foram sujeitos, no final da semana passada, nas instalações da PJ em Portimão. Mas, a partir do momento em que foram colocados sob suspeita, devem deixar de gozar essa prerrogativa. É que o Código do Processo Penal (CPP) prevê que o estatuto de assistente não possa ser outorgado a familiar da vítima de um crime relativamente à qual existem suspeitas de envolvimento, como é o caso.
O estatuto de assistente é outorgado pelo juiz e, caso fosse reconhecido aos McCann, dar-lhes-ia a possibilidade de "intervir no inquérito e na instrução, oferecendo provas e requerendo diligências que se lhes afigurassem necessárias". Podiam ainda "deduzir acusação independente da do Ministério Público [...] e interpor recurso das decisões que os afectem, mesmo que o MP o não tenha feito", estabelece o CPP.
A partir do próximo sábado, data em que entra em vigor o novo CPP - que exige a existência de "fundadas suspeitas" para a constituição de arguido e a validação desta situação por um magistrado -, a situação dos pais de Madeleine terá de ser apreciada pelo procurador Magalhães e Menezes.
O procurador--geral da República ordenou "novas diligências", até porque a investigação não está concluída
O termo de identidade e residência (TIR), que obriga todos os arguidos a estarem contactáveis para efeitos de notificação, foi "a única medida de coacção possível" de aplicar a Gerry e Kate McCann "face aos elementos probatórios até então recolhidos", esclarece a nota divulgada ontem pela Procuradoria-Geral da República. Por outras palavras, no momento em que os pais de Madeleine foram constituídos arguidos, não existiam indícios suficientemente fortes da prática de um crime grave que justificassem a aplicação de uma medida de coacção mais forte, como a prisão domiciliária ou a prisão preventiva. A mesma nota assinada por Pinto Monteiro adianta que foi por iniciativa da Polícia Judiciária (PJ), e não a pedido de Kate e Gerry McCann, que estes foram constituídos arguidos no âmbito do processo do desaparecimento da filha. Todas as diligências foram realizadas pela PJ "de harmonia com a autonomia técnica e táctica" que a lei lhe confere, adianta a referida nota.

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