Um molho especial chamado western spaghetti
Nos anos 60, os italianos deram um tiro de misericórdia
no western americano e criaram uma coisa nova. Quem lhe pôs o nome quis achincalhar: Western spaghetti. 40 anos depois, chamam-lhe outros nomes: "pop", "moderno".
No Festival de Veneza defendeu-se que se não
fossem esses filmes com pistoleiros brutais,
ecos e assobios da música de Morricone,
o cinema não seria o que é hoje. Não é só
Quentin Tarantino que o diz, portanto
a Além da barba de três dias, que continua um fashion statement actualizado, saiba que a canção Crazy, dos Gnarls Barkley, é um western spaghetti.Fazer disto tese é exagerado. Mas para que não se pensasse que era apenas boutade, os autores da afirmação, os norte-americanos Eli Roth, realizador, e Elvis Mitchell, crítico de cinema, puseram-se a cantar há dias em Veneza. Não é possível explicar aqui o ponto da demonstração de ambos. Diremos que é uma questão de ecos, da forma como o som lateja e como é evocativo e épico em Crazy e nas bandas sonoras que Ennio Morricone compôs para o, também chamado, "western à italiana".
Depois, ambos pararam de cantar e Elvis Mitchell verbalizou: "O western spaghetti foi quando o cinema se tornou pop."
Logo de rajada, Pasquale Squitieri, realizador italiano, disparou o (santo) nome de um ausente, o já desaparecido Sergio Leone. "Leone inventou uma nova linguagem."
Leone foi o homem que abriu caminho a Pasquale e a uma série de artesãos do cinema italiano, nomes de segunda e terceira linha, na altura pouco considerados, hoje a ser salvos do esquecimento pelos furores do culto. Leone foi o homem que em 1963 realizou, no deserto espanhol de Almeria, Por um Punhado de Dólares, para o qual mandou vir dos EUA um actor que estava sem saída no limbo da televisão.
Foi esse actor - sobre o qual um agente vaticinara que "não vai nunca ser estrela porque é feio" - que no deserto deixou crescer a barba, a tal de três dias, e vestiu as roupas que ele próprio comprara em Manhattan para fazer de pistoleiro... Chamava-se Clint Eastwood, e começou aí, há 40 anos, esta história. (O agente é que não teve carreira.)
O Festival de Veneza, que nas últimas edições está a contar a "história secreta do cinema italiano", vasculhando no baú dos filmes, géneros ou cineastas populares mas que não chegaram ao Olimpo da consideração crítica porque não eram tidos como sérios, contou nesta edição a história do western spaghetti. Com conferências e uma retrospectiva de filmes, programada por Marco Giusti e Manlio Gomarasca.
Cineastas, críticos e actores passaram aí um atestado de "modernidade" ao género, oficializando uma recuperação que nas novas gerações (de cineastas, críticos e público) está a ser já prática corrente. Hoje a influência é reconhecida sem embaraços, de forma orgulhosa. (Quentin Tarantino que o diga.)
"Leone descobriu que o western americano era basicamente uma pistola, ou uma espingarda, e um duelo no final", continuou Sequitieri, que integrou um dos painéis. "E o que é que ele fez? Multiplicou os duelos nos seus filmes. E assim passámos todos a fazer filmes com duelos de 10 em 10 minutos. Era um cinema popular. O cinema europeu, pelo menos o cinema italiano, estava cheio de diálogos, não era cinema, era teatro. Nós queríamos violência, queríamos acção."
É uma das formas possíveis de definir o género com que a Europa, entre 1963 e até meio dos anos 1970, deu o tiro de misericórdia no western clássico americano e no mesmo gesto criou uma coisa nova com o morto. Desprestigiada pelos críticos (chamavam-lhe western spaghetti, dirty western ou western macarrone e eram termos achincalhantes), alimentou a Europa naqueles anos em que Hollywood, para concorrer com a televisão, se esgotava em ruinosas grandes produções e ficava sem capacidade para abastecer as salas europeias com produtos médios.
Brincar aos cowboys
Do lado de cá do Atlântico arregaçaram-se as mangas: pegar no género americano por excelência e fazer de outra maneira (e barato), lançando produto para o povo. Era um gesto de homenagem com contornos "freudianos", já que se matava o pai: o pequeno David europeu enfrentava o gigante Golias americano.
Apareceram heróis vingadores chamados Trinitá, Django, Shaghai Joe, Ringo, Navajo Joe ou o Homem sem Nome, justiceiros espectrais rodeados de caixões. Eram homens de poucas falas porque tinham um poder de síntese assassino. Materializavam-se no horizonte de uma cidade corrupta - na maior das vezes um cenário pedido emprestado a outro filme que era reciclado - e desapareciam no fim, deixando-a mais limpa e com mais cadáveres.
As narrativas eram minimais, mas nelas cabiam os arquétipos da aventura humana tal como Shakespeare ou Homero as tinham fixado. Mas sem pingo de pretensão literária: puxava-se pelo instinto de diversão das massas.
Eram filmes de coreografias extremas, entre a paralisia e a convulsão de violência. Aproximavam-se dos olhos das personagens até mais não para mostrarem os sentimentos mais baixos que havia ali dentro. Logo de seguida a câmara era capaz de empurrar a figura inteira para ser apenas um risco ao longe no horizonte.
Mas apesar da brutalidade, estavam próximos da memória infância: era como voltar a brincar aos cowboys.
Realizaram esses filmes gente como Tinto Brass, Mario Bava, Sergio Corbucci, Sergio Sollima, Sergio Leone (o maior deles todos), Pasquale Squitieri, Ricardo Freda, Lucio Fulcci. Com actores como Franco Nero, Giuliano Gemma, Fabio Testi (europeus) ou americanos como Henry Fonda, Eli Wallach, Lee Van Cleef ou Burt Reynolds - se estavam aqui, no western spaghetti, é porque naquela altura das suas carreiras na América não tinham onde cair mortos.
"Estes tipos tinham muito pouco dinheiro e tiveram que inventar tudo", sentenciou Alex Cox, realizador. "Hoje, os novos cineastas estão cheios de dinheiro, podem utilizar um pedaço de uma música, um excerto de outro filme, podem pagar esses direitos. Aqueles não. Tiveram que ser originais, e foi essa a força do "western à italiana"."
E foi tanta, que não só se tornou tremendamente popular nas salas europeias (houve western spaghetti em Espanha, houve western spaghetti na Alemanha), como chegou à América. E aí os painéis de comunicações em Veneza foram atrevidos: se não tivesse havido western spaghetti, defenderam, o cinema contemporâneo não seria o que é hoje. Porque o cinema americano não seria o que é hoje.
A descoberta da América
Richard Corliss, crítico da revista Time; Jim Hoberman, há duas décadas crítico no Village Voice; Peter Cowie, britânico, historiador, autor de monografias sobre Francis Coppola, Orson Welles ou Ingmar Bergman. Todos na casa dos 50 anos, eram adolescentes quando o western spaghetti chegou à América.
Hoberman lembrou: eram programados em sessões duplas nas salas "chunga" da Rua 42 em Nova Iorque, quando a Rua 42 era mais perigosa do que o Oeste americano.
Peter Cowie notou o "desdém" - "os filmes eram tomados como pastiche" - mas também o "afecto" que iam juntos nas palavras western spaghetti há 40 anos.
Richard Corliss evocou os sábados de manhã na TV americana, com "pacotes" de "westerns à italiana" (e filmes de Hong Kong).
Era a descoberta, mas ainda era guilty pleasure.
Hoje, que todos pertencem ao star system da crítica mundial, colocam-se, numa "guerra" que tem sido travada nos últimos 40 anos, do lado dos que consideram que se pode prestar vassalagem a John Ford, Howard Hawks ou Raoul Walsh, ou seja, ao western americano clássico, e ao mesmo tempo admitir que a versão europeia não é coisa menor. É uma mudança de paradigma, reconhecem.
A carta de Tarantino
Como que a dar-lhes razão, chegou ontem a Veneza uma carta de Quentin Tarantino: não pôde acompanhar a retrospectiva por razões de saúde, deseja a todos que bebam bom vinho e comam do melhor, mas sobretudo espera "que quando este festival acabar, um realizador como Sergio Corbucci [Django, Navajo Joe, Vamos a matar compañeros!] tenha o lugar que merece ao lado de Leone e com John Ford, Howard Hawks e Anthony Mann como um dos maiores realizadores de westerns de sempre".
Continuando a viagem na memória da recepção do western spaghetti na América, Jim Hoberman notou: "Nos anos 60 aconteceram duas coisas muito importantes na América: a chegada da música dos Beatles, a chamada "invasão britânica", e o western spaghetti. Porque foram coisas que, partindo de algo profundamente americano, como o rock e o western, se apresentaram de forma desfamiliarizada aos americanos. E isso foi muito libertador para os cineastas americanos."
Era o tempo da contracultura, e como completaria Alex Cox, "o western spaghetti, com os seus homens à margem da lei, abria a possibilidade de leituras políticas, algo de esquerda".
Hoberman chamou então a atenção para este registo: no Verão de 1967, Verão de vários distúrbios violentos nas ruas das cidades americanas, estrearam-se nos ecrãs Bonnie & Clyde, para muitos o início do cinema moderno made in USA, Os Doze Indomáveis Patifes, e O Bom, o Mau e o Vilão, este o terceiro filme da "trilogia dos dólares" que Sergio Leone iniciara quatro anos antes com Por um Punhado de Dólares. "São filmes sobre a violência. A síntese mais alucinante de todos eles seria feita mais tarde por The Wild Bunch, de Sam Peckinpah, para mim o mais importante filme americano dos anos 60 porque é um filme sobre o Vietname. Ora, a carreira de Peckinpah teve ajuda dos western spaghetti. E Bonnie & Clyde e Os Doze Indomáveis Patifes não teriam sido possíveis sem esses filmes italianos."
Richard Corliss: "O western spaghetti inverteu toda uma simbologia. Nesse filmes não havia sequer restos de sociedade, só restavam outlaws. Aquele que era o melhor, o "herói" num western spaghetti, era aquele que já praticava há um certo tempo: era o killer." Concluiu com deleite: "E o género fez uma coisa que Hollywood não tivera a coragem de fazer no western: fez desaparecer as mulheres."
Eli Roth, o realizador dos filmes de terror da série Hostel que abriu as hostilidades a cantar Crazy, voltou à música: "O western spaghetti na América foi como a chegada dos Beatles, que fizeram a música americana dar um salto dos anos 50 para os anos 70. Sem esse género, não teria havido por exemplo Dirty Harry, de Don Siegel." Nem Kill Bill, de Tarantino. Nem as orelhas cortadas de Cães Danados, copiadas de Django (1965), de Corbucci, super-sucesso na época que fez do actor Franco Nero uma estrela. Nem o Dead Man, de Jim Jarmusch.
"É de tal maneira que quando alguém na América faz um western hoje já não consegue fazê-lo de forma clássica. Faz sempre um spaghetti", foi a opinião de Jim Hoberman.
O assobio de Alessandro
O homem que falava como se disparasse a matar, Pasquale Squieteri, insistiu na música, nas harmónicas, nas guitarras eléctricas, nos ecos com que Ennio Morricone inovou nas bandas sonoras. "Foi isso que pôs a modernidade no western spaghetti." O crítico Elvis Mitchell aplaudiu a intervenção e, nesse momento, receámos que começasse outra vez a cantar Crazy. Mas não.
Foi então que um velhote tímido foi convidado a destacar-se da assistência e a juntar-se aos membros do painel. Apresentou-se: Alessandro Alessandroni.
Disse que não tinha vindo para falar, quanto muito poderia assobiar. Alessandro foi o homem que tinha um assobio que ficava tão bem nas gravações (pode-se assobiar bem e esse assobio não passar o teste de uma gravação) que há 40 anos começou a assobiar para as bandas sonoras dos western spaghetti. Ainda hoje Alessandro vai à América fazer performances com o assobio. O seu orgulho, quase uma razão de vida, é um elogio feito pelo Los Angeles Times: "Disseram que eu era o molho no western spaghetti."