Os dias gloriosos do Cine Escouralense
Nos anos 50, Santiago do Escoural tinha quase 6 mil habitantes.
Hoje, tem 1700. A história de um cinema que era sempre casa cheia
e hoje está em ruínas, a lembrar
que, nesta terra, o tempo das luzes da ribalta acabou. E a história
do seu projeccionista, um homem de negócios muito organizado chamado Saragoça...
Da serra do Monfurado, pela Nacional 2, depois de Montemor-o-Novo, vê-se o mar. "Olhe ali, em frente. É aqui que começa o Baixo Alentejo", diz José Barros. "Parece o mar". De facto, a paisagem é plana e azulada, imensa, como o mar. Acabam as montanhas, até à Serra do Caldeirão, nos limiares do Algarve.José Barros, advogado, transmontano a viver há muitos anos no Alentejo, pode considerar-se um homem da Nacional 2. Conhece-a bem, mesmo quando ela perde o nome, para assumir os das ruas de Montemor.
Sabe que a Avenida 5 de Outubro, perto do restaurante Monte Alentejano, de que é proprietário, não é mais do que a EN2 com roupagens urbanas. Antes, chamou-se Rua Nova, depois de ser a "Estrada Nacional". E segue para Sul, por Reguengo, Santiago do Escoural, em direcção a Ferreira do Alentejo.
José Barros vive na Nacional 2, numa quinta em Santiago do Escoural, que já foi uma vila importante. Em 1950, tinha 5700 habitantes. Hoje, tem 1700.
Casa Branca, dois quilómetros para Sul, na EN2, era a encruzilhada das principais vias férreas da região. Aqui se encontravam os comboios que iam para Lisboa, Évora e Beja. Ainda hoje isso acontece, mas o Intercidades vai directo de Lisboa a Évora ou Beja, sem mudança em Casa Branca. Escoural perdeu a importância que tinha por ser a vila próxima de Casa Branca, e também pelas fábricas que chegou a haver aqui, como a de laranjadas, os famosos "pirolitos".
Hoje, a sua principal atracção turística é um conjunto de grutas com pinturas pré-históricas e um Centro Interpretativo, para que os visitantes compreendam o significado das obras de arte rupestre e da necrópole neolítica. Na estrada, uma placa indica o caminho para o local. E lá está o portão que dá acesso às grutas... fechado. Há anos que o Instituto Português do Património Arquitectónico encerrou a estância, alegando falta de dinheiro e pessoal.
No Escoural, a estrada atravessa a vila, sob o nome de Rua Magalhães Lima. É lá que António Joaquim Saragoça, 83 anos, tem a sua loja. Vende material eléctrico, ferramentas, botijas de gás. Mas já vendeu bicicletas, motorizadas, motores de rega e motosserras. "Para todo o Alentejo", diz ele. "Fui eu que pus os trabalhadores alentejanos a andar de motorizada. Muitos não me podiam pagar, mas eu criei um sistema de crédito. Pagavam mais tarde. Ou não pagavam nunca. O importante era ajudá-los a irem para o emprego."
Começavam a trabalhar na terra uma hora antes do nascer do sol, até à noite, recorda Saragoça. Os patrões assim os obrigavam. "Nem tinham tempo de ir dormir a casa. Nem de despir a roupa e os sapatos. Dormiam umas horas, para logo recomeçar o trabalho".
Por isso foi tão violenta a reacção contra os latifundiários, depois do 25 de Abril, explica Saragoça. José Barros não concorda inteiramente. "Houve gente de fora que os incentivou, os militares... Pelo menos numa segunda fase. Ao princípio, sim, a reacção foi legítima".
António Saragoça é um homem organizado. "Geralmente, tomo as minhas decisões e depois cumpro-as", diz ele. Aos 65 anos, vendeu a maior parte dos seus negócios, para preparar a reforma. Agora quer também passar a loja, mas receia os efeitos da inactividade na sua saúde. Trabalha desde muito jovem. Antes de se dedicar ao comércio, fez um curso de electricista por correspondência, e tornou-se projeccionista do cinema local, o Cine Escouralense.
O cinema em ruínas
O cinema fica na rua Vasco da Gama, que faz esquina com a EN2. É um edifício grande e branco, com um portão e uma pequena abertura na parede, que era a bilheteira. Vê-se que está fechado há décadas. A proprietária, Jesuína Capoulas Gonçalves, 60 anos, vem abrir a porta. O seu avô, Manuel Joaquim Gonçalves, comprou, por volta de 1950, o Cine Escoural, que existia, pelo menos, desde os anos 30. Era, na época, um excelente negócio. Manuel Gonçalves era proprietário de terras, mas gostava de cinema. Por isso, além de dar trabalho a muita gente, proporcionava-lhes também o entretenimento.
Jesuína lembra-se das soirées de cinema dos anos 50. "A sala estava sempre cheia. Vinha gente de todo o lado". Não apenas da vila, mas também dos montes das redondezas, que hoje estão abandonados. Vinha gente de todas as idades, ver os filmes do Cantinflas e do Joselito, além dos clássicos portugueses. As pessoas preferiam estes, ou então os musicais, porque não sabiam ler as legendas, recorda Jesuína.
Entrando no velho salão, apesar do tecto caído e dos buracos no soalho, é fácil imaginar as sessões de coboiadas e a empolgada plateia de camponeses. Lá está o ecrã, as cadeiras no "balcão", o bar, ainda com uma garrafa, um fogão de chapa de grelhar e um monte de talheres ferrugentos em cima da copa, as casas de banho, a sala de projecção, a esplanada para as sessões ao ar livre e os bailaricos ao fim-de-semana. A casa de banho das "Senhoras" tem as paredes forradas de ninhos de pardais, mas na sala de projecção parece estar tudo a postos para recomeçar. O projector está montado, bem como a grafonola que reproduzia o som dos filmes e a música dos intervalos, e o monitor sonoro, para o projeccionista. Numa saleta ao lado ficou ainda a máquina de rebobinar, à manivela, e os pequenos candeeiros cercados por uma rede, para que a vela não se apagasse com o vento, quando usados na esplanada.
António Saragoça explica a complicada arte de encaixar o filme na máquina, bem como as técnicas de remendar e colar a fita, quando se partia, a meio da projecção. Em cima de uma mesa, estão ainda as listas dos filmes e as suas datas de projecção.
Está tudo intacto, embora velho, ferrugento e poeirento, no Cine Escouralense. Que aconteceu? Parece que foi abandonado à pressa a meio de uma sessão do Joselito.
A ocupação
Nos anos 60 começou a debandada. Não se aguentava mais. Do Norte do país as pessoas emigraram para França, daqui, foram para o Barreiro e outras zonas da Grande Lisboa. Deixou de haver gente para frequentar o cinema. Aos poucos, foi cessando actividade. Quando ocorreu o 25 de Abril de 1974, o Cine Escouralense já estava encerrado há anos. Mas conheceria então uma segunda vida, ainda que breve e atribulada.
Veio alguém avisá-lo, ao pai de Jesuína, Joaquim Cavas Gonçalves, que herdara o cinema, depois da morte de Manuel Joaquim. Os da cooperativa vinham aí para ocupar o Cine Escoural, com a ajuda dos militares. Era uma hora da madrugada. No silêncio, começaram a ouvir-se os passos da multidão. "Era assustador", lembra-se Jesuína. O pai foi buscar uma espingarda. "Que querem?", perguntou ele, pelo postigo.
"Vamos ocupar isto. Não tenha receio. Abra a porta", respondeu lá de fora um homem armado, que era cabo da Escola Prática de Artilharia de Vendas Novas. Vinham todos armados. Tinham sido distribuídas armas pelo povo. Um grupo correu para as traseiras, para impedir a fuga da família de "patrões latifundiários reaccionários".
Joaquim acabou por ceder. Ocuparam-lhes as herdades e o cinema. Este foi transformado em Centro Cultural, gerido pela cooperativa dos trabalhadores. Esteve aberto até ao início dos anos 80. Voltou a haver cinema, com filmes muito diferentes dos dos velhos tempos. Numa resma de pequenos cartazes que deixaram ao lado do projector, há um de O Caminho do Pecado, outro de Meninas de Bem, ou Decameron Interdito, ou A Lei do Sexo, cuja sinopse promocional diz: "Uma agência especializada em casamentos de ocasião. Quando um viúvo descobriu que a noiva era a própria filha... a agência faliu."
Mas sobram outros vestígios da época do PREC. Na sala do projeccionista, há centenas de garrafas de cerveja vazias. Jesuína conta que, durante as festas na esplanada, os revolucionários se divertiam, como provocação, a atirar garrafas para o quintal dela, que fica ao lado.
Mais tarde, as instalações foram devolvidas aos proprietários. Mas o cinema nunca mais abriu. "Hoje, as pessoas estão reconciliadas", diz António Saragoça. "Houve exageros, mas toda a gente compreendeu que os trabalhadores tinham muito ressentimento acumulado. Até os patrões acabaram por compreender isso. Hoje, está tudo bem".
As lojas de Saragoça nunca foram ocupadas. Apesar de ele ser um homem relativamente rico e de ter sido regedor da Junta de Freguesia, nunca foi visto como um "patrão". No entanto, foi ele próprio que propôs à cooperativa entregar-lhe a loja, ficando a trabalhar como funcionário. Chegou a ir a reuniões. Conheciam a sua fama de homem organizado, e queriam que ele se ocupasse da contabilidade da cooperativa. Mas quando ele tentou organizar as contas dos produtores libertados, acusaram-no de usar os métodos do "tempo dos doutores". E dispensaram-no.