Os que falam archi estão só no cimo de uma montanha do Daguistão

Há línguas que estão a morrer. Convém aconchegá-las, tratá-las com carinho e colocá-las num local seguro - como as páginas de um dicionário. Há só 1000 pessoas que hoje falam archi

a Há umas semanas atrás, dois linguistas fizeram uma longa viagem: subiram ao topo de uma montanha do Daguistão, no Cáucaso, até uma aldeia chamada Archi, situada a 2000 metros acima do nível do mar. Marina Chumakina e Greville Corbett, da Universidade de Surrey, no Reino Unido, tinham uma singela missão: entregar aos habitantes daquela aldeia do "país das montanhas" (é isso que a palavra Daguistão significa) o primeiro dicionário completo da sua cultura e da sua língua, também chamada archi. A escalada dessa montanha longínqua "foi a culminação de um trabalho de três anos financiado pelo Projecto das Línguas Ameaçadas Hans Rausing (HRELP)", explica um comunicado da Universidade de Surrey.O HRELP "apoia trabalhos de investigação, de formação e documentais em prol das línguas ameaçadas do mundo inteiro", lê-se em http://www.hrelp.org/. Diga-se de passagem que Hans Rausing, homem de negócios hoje com 76 anos, nascido na Suécia e radicado no Reino Unido, foi um dos herdeiros do negócio multimilionário da Tetra Pak, sendo hoje considerado como uma das maiores fortunas do mundo.
"Actualmente, existem cerca de 6500 línguas, metade das quais em perigo de extinção daqui a 50 a 100 anos", lê-se ainda no site do HRELP, que depende da Escola de Estudos Orientais e Africanos da Universidade de Londres. "Isto constitui uma catástrofe cultural e científica porque as línguas exprimem os conhecimentos, a história e a visão do mundo únicos das comunidades que as falam, e cada língua é uma variante evolutiva específica da capacidade humana de comunicar."
Mais de 80 projectos estão neste momento a ser promovidos pelo HRELP. Percorre-se a lista e fica-se abismado pela diversidade de línguas, muitas delas quase desconhecidas para a maioria das pessoas, bem como pelo tamanho das comunidades que as perpetuam, que por vezes não ultrapassam a centena de elementos.
Quanto ao archi, é uma língua oral que merece claramente ser considerada como altamente ameaçada de extinção. Apenas cerca de 1000 pessoas falam hoje archi no mundo e, para quase praticamente todas elas, trata-se da sua língua materna (os casamentos fora da comunidade são raros). Essas pessoas vivem na remota aldeia de Archi e nos seus arredores (formados por mais seis povoações muito próximas) e muitas delas já são idosas, pois os mais novos abandonaram há tempos a aldeia dos seus antepassados. Mas a cultura archi é uma das mais bem preservadas do Daguistão.
Marina Chumakina, numa conferência na Universidade de Londres no ano passado, explicava que o archi pertence ao grupo das línguas do norte do Cáucaso, mas que não apresenta contactos imediatos com outras línguas desse grupo, do qual se terá provavelmente separado há cerca de 1500 anos.
Língua notável
O archi já tinha sido estudado nos anos 70 por outros investigadores russos, tendo dado origem a uma descrição gramatical bastante aprofundada, mas até aqui pouca coisa existia em termos lexicais. Agora, com a ajuda de colegas de Surrey e de cientistas das universidades estaduais de Moscovo e do Daguistão - e com a "participação entusiasta" dos próprios habitantes da aldeia, "muito orgulhosos da sua língua" -, Chumakina e Corbett desenvolveram um dicionário multimédia (que inclui imagens e clips de áudio).
A missão poderá à partida parecer quase impossível, porque, do ponto de vista linguístico, o archi é absolutamente notável: "O seu sistema morfológico desafia o entendimento pelo tamanho dos seus paradigmas", explicava Marina Chumakina, em 2005, perante o Congresso Internacional sobre Língua, História e Identidades Culturais no Cáucaso, que decorreu na Universidade de Malmö, na Suécia. O que, transposto da linguagem árida dos linguistas para uma linguagem mais simples, significa, por exemplo (garante a cientista) que um mesmo verbo pode ter mais de um milhão e meio de formas, ainda por cima nem sempre regulares! E que os substantivos podem apresentar dezenas de formas diferentes e irregulares conforme, nomeadamente, a sua função gramatical nas frases.
Como salienta ainda Marina Chumakina, "cada uma das características morfológicas do archi, considerada separadamente, existe noutras línguas do Daguistão. Mas o que torna o archi excepcional é que ele as reúne todas". Haverá alguém, podemos aliás perguntar-nos nesta altura, capaz de aprender esta língua a não ser desde o berço?
Também do ponto de vista fonético o archi não se fica atrás, com 70 consoantes, algumas delas bastante raras, e 11 vogais - donde o interesse acrescido de dispor de ficheiros de sons, tanto para os linguistas como para os descendentes dos habitantes da aldeia. E como se não bastasse, "existem muitas noções impossíveis de traduzir, em particular no que se refere à pastorícia, às roupas tradicionais e aos pratos tradicionais", explica Chumakina.
O dicionário, acrescentava a cientista naquela altura, é um dicionário digital archi-inglês-russo que permite diversas modalidades de pesquisa. "As entradas do dicionário incluem as informações sintácticas e morfológicas essenciais, suficientes para obter qualquer forma de uma dada palavra. Criámos uma base de dados que nos permite produzir o dicionário em vários formatos (um para as pessoas que falam a língua, outro para os linguistas) ao mesmo tempo". Um exemplar da versão em papel encontra-se desde há poucos dias nas mãos dos habitantes de Archi. Entretanto, os investigadores já anunciaram que deverá ser possível em breve consultar a versão electrónica do dicionário.

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