O triunfo de Richard Serra, por John Updike
Richard Serra, um dos maiores escultores contemporâneos, tem uma retrospectiva no MoMA. São 40 anos de trabalho que desafiam o visitante
e levaram o museu a testar os seus limites. Por John Updike
Não há dúvida de que o espectáculo é um triunfo. O maior evento artístico interactivo que tem lugar em Manhattan desde que as bandeiras açafrão de Christo ondularam ao vento invernal do Central Park, há mais de dois anos.
No dia em que visitei a exposição A Escultura de Richard Serra: 40 Anos, havia sol e as duas grandes esculturas do Jardim das Esculturas do MoMA estavam cheias de famílias jovens, crianças e casais esperançosos que deambulavam de mão dada ao longo das passagens estreitas da Intersection II (1992-1993) ou se agrupavam alegremente no crescente de sombra do espaço interior da Torqued Ellipse IV (1998), exposta à torreira do sol.
Fiquei surpreendido com a atmosfera de festa, de parque de diversões, armado com o meu bloco de notas e couraçado como estava, por assim dizer, com a resolução de enfrentar corajosamente estas imensas massas de metal e o grande peso da importância artística e histórica que outros críticos mais capazes já tinham atribuído ao escultor e às obras expostas ("Não só o nosso maior escultor, mas um artista cujo tema é uma grandeza que condiz com o nosso tempo", escreveu Peter Schjeldahl. "Um marco, por um titã da escultura, um dos últimos grandes modernistas numa era de talentos menores, dinheiro louco e arte sem sentido", Michael Kimmelman).
De facto, eu estava tão empenhado em absorver devidamente estas maravilhas que tropecei numa criança e quase a atirei para o tanque rectangular (felizmente pouco profundo) na margem do qual o MoMA colocou a estátua nua prateada de Aristide Maillol, o Rio.
Esta apreciada figura alegórica, a propósito, é a única residente habitual do Jardim das Esculturas que não foi expulsa do seu lugar pela invasão das grandes peças de aço de Serra. As próprias árvores pareciam intimidadas pelas esculturas. Especialmente uma acácia emplumada, com os seus ramos a centímetros de um ângulo proeminente da Torqued Ellipse IV.
Outra coisa surpreendente foi a quantidade de incidentes texturais com que as paredes de três metros e meio de altura de aço oxidado estão espectacularmente marcadas ou feridas.
Nas duas peças que estão ao ar livre no Jardim das Esculturas, o tratamento anticorrosão, um filme azulado friável, está mais gasto que cuidado. Há florescências alaranjadas de ferrugem e líquenes que proliferaram um pouco por todo o lado e longos rios microscópicos de humidade que deixaram ondulações vermelhas como sulcos de lágrimas pelas encostas abaixo destas superfícies de aço de seis centímetros de espessura.
O seu manto básico de ferrugem é um aveludado castanho-avermelhado que parece enevoado e estranhamente leve comparado com, por exemplo, as construções implacavelmente soldadas de David Smith - aquelas lajes quadradas de metal nu com as marcas circulares do polimento - ou os fragmentos industriais e as vigas rebitadas e por vezes extravagantemente pintadas de Anthony Caro.
Primeiro a pintura
A formação artística de base de Serra, na Universidade da Califórnia em Santa Bárbara e depois em Yale, foi em pintura. O monumental catálogo Richard Serra Sculpture: Forty Years (que acompanha a exposição, mas contém fotografias de muitas mais obras do que as que estão em exibição) inclui uma conversa com o conservador do MoMA, Kynaston McShine, na qual o escultor recorda: "Acabei por pintar, no meu último ano, coisas que pareciam cópias de Expressionismo Abstracto, algures entre Pollock e de Kooning." A outro entrevistador, Serra confidenciou que "não era mau como pintor" e fez notar que tinha "ganho aos seus colegas de classe Chuck Close e Brice Marden quando concorreram a uma bolsa de viagem de Yale". Serra também não é mau a teorizar. Ele próprio diz que "pertence a uma geração de artistas que escrevem": "Tínhamos necessidade de escrever a propósito das coisas que tinham a ver com o nosso trabalho e queríamos encorajar o diálogo crítico. A minha geração lidou mais com a linguagem analítica do que as gerações que vieram antes e do que as que vieram depois."
Se observarmos os muitos metros quadrados de aço curvo, encontramos passagens onde o revestimento impermeável se solta em flocos que lembram os farrapos das telas verticais de Clyfford Still e outras secções tão cheias de pingos e manchas como os óleos de Sam Francis. As manchas estriadas de Morris Louis também vêm à ideia. Seria interessante saber quantos destes efeitos pitorescos são o trabalho cego do tempo e dos acidentes (há pegadas de ténis cheios de pó deixadas na parte inferior de Torqued Ellipse IV por jovens descuidados e o guindaste gigante que levantou a peça por cima do muro do jardim na Rua 54 deixou marcas do seu grampo na parte superior) e quantas, se é que alguma, foram feitas pelo escultor.
Serra não se inibia de deixar números feitos a giz, estilo Pop, em algumas das suas placas de aço - veja-se a assemblage Five Plates, Two Poles (1971), exibida em lugar de honra na ala oriental da National Gallery of Art de Washington - e há umas sombras paralelas nas peças maiores do MoMA que parecem mais que acidentais.
Seja como for, em que é que os estímulos visuais provocados por estas duas peças ao ar livre diferem daqueles que receberíamos se passeássemos por um estaleiro naval onde uns velhos cargueiros tivessem encontrado descanso?
Uma arte determinadamente industrial como a de Serra arrisca-se a confusões com os próprios produtos industriais. Que impressões é que as suas obras oferecem que um observador sensível não possa obter num estaleiro de caminho-de-ferro, por baixo de um viaduto de auto-estrada, na entrada de um túnel? Aí a escala é maior do que a que pode ser produzida por um artífice isolado e as sensações ainda mais estonteantes - se o que se pretende é estontear.
Passando pela porção da exposição de Serra que se encontra no sexto piso, podemos olhar para baixo pelo átrio do museu, até ao segundo piso salpicado de pessoas e ao topo de Broken Obelisk (1963-1969), a escultura de aço enferrujado de Barnett Newman, condensada pela perspectiva. Uma sensação verdadeiramente visceral de profundidade e volume.
A arte nunca poderá exceder as dimensões da realidade. É verdade que um cargueiro enferrujado pode ser visto como um objecto estético, especialmente se o observador for um escritor como Joseph Conrad ou Álvaro Mutis, cuja experiência pessoal de navegação carrega os odores das distâncias e dos acidentes do mar e da galanteria brumosa dos marinheiros.
As fatias de grandeza enferrujada de Serra, porém, acordaram em mim preocupações mais comezinhas, sobre a forma como os operários siderúrgicos alemães teriam curvado estas enormes placas, quanto é que o processo custou, quem o pagou, como é que estes elementos monstruosos foram embalados e transportados. Mistérios, como se vê, mas talvez mistérios infrutíferos. O gigantesco livro da exposição ignora-os. Além da fluida e encantadora entrevista com Serra, o livro contém ponderosos ensaios filosóficos/topológicos/ontológicos sobre o trabalho anterior de Serra, o seu "pensamento abstracto" e a relação das suas esculturas com a paisagem por Benjamin H.D. Buchloh, John Rajchman, e o co-editor Lynne Cooke, respectivamente, mas quase nenhuma informação concreta sobre a maneira como as obras foram feitas. Parece que Serra envia modelos de cartão para uma fundição alemã e saem de lá as peças de dez, vinte ou cem toneladas de aço dobrado.
Serra disse a Charlie Rose numa entrevista na televisão que já não há nenhuma siderurgia nos Estados Unidos que possa executar este trabalho. Tudo (menos as palavras produzidas acerca das esculturas) é fabricado fora dos EUA.
Aço e borracha
O sexto andar mostra as obras do fim dos anos 60 até meados dos anos 90, quando a sua actividade se centrou no aço torcido (uma possibilidade aberta pela tecnologia do computador, que permitiu ir além do aço dobrado). Serra começou por se inspirar em Pollock, atirando chumbo derretido de um cadinho contra a base de uma parede e pendurando na parede emaranhados de tapetes rolantes de borracha. Numa Nova Iorque que já não existe de rendas baixas e achados acidentais, um "armazém de borracha ia ficar vazio em West Broadway", conta Serra. "Telefonei ao gerente e perguntei se podia ir lá carregar borracha. Para alguém com a elasticidade teórica de Serra, a borracha era um maná. "Tem uma flexibilidade", explica "que nos permite abordar a linha, o plano, o volume e a gravidade. Tem um potencial enorme". Fez uma escultura magistral com borracha: To Lift (1967).
Baptizada a partir de uma longa lista de verbos de acção (enrolar, torcer, içar, etc.) que concebeu para dar um empurrão à sua carreira, é uma portentosa escultura em forma de tenda que é criada simplesmente levantando e mantendo erguido o centro de uma pesada membrana de borracha vulcanizada.
A proeza foi seguida por várias obras feitas de folhas e tubos de chumbo que desafiavam a gravidade, inclinadas de forma a suportar o peso umas das outras (Floor Pole Prop, 1969; Shovel Plate Prop, 1969).
Os arranjos foram-se tornando mais elaborados e mais livres, ilusões de óptica com uma piscadela de olho à Op-Art, maciços mas com ar precário. Quatro destes estão no sexto andar do MoMA, atrás de uma parede de plexiglas, possivelmente para os proteger de algum empurrão por parte dos mesmos vândalos que deixaram as marcas dos sapatos na Torqued Ellipse IV. As peças desafiam tanto a gravidade quanto os seus títulos desafiam a nossa interpretação: 5:30; 1-1-1-1, One Ton Prop (House of Cards); V+5: To Michael Heizer, todos de 1969. O chumbo tem a virtude de ser quase tão fácil de trabalhar como o tecido (Folded, Unfolded, 1969), mas os projectos de esculturas de exterior levaram Serra a escolher um material mais resistente, como o aço.
Em 1970, o ano em que trabalhou com o seu amigo Robert Smithson, Serra ganhou um subsídio para um trabalho no Bronx: "Encontrei uma rua sem saída no cruzamento da Rua 183 com a Webster Avenue e construí um círculo de aço coberto pelo asfalto." Numa fotografia do pouco recomendável local, entre o pavimento esburacado, carros estacionados e montes de lixo, o anel de quase oito metros de diâmetro que vai de esquina a esquina tem uma certa beleza do outro mundo, como uma auréola deixada cair por um anjo gigantesco de visita.
O volume que acompanha a exposição inclui fotografias de muitas outras instalações, algumas delas quase engolidas pela terra a cujos contornos elas dão ênfase, outras, como o fatídico Tilted Arc (1981) na Federal Plaza de Manhattan, dominando completamente o ambiente à sua volta.
Destruído pelo Governo
O Tilted Arc foi notícia quando os empregados dos escritórios em volta se queixaram de que o seu espaço para almoçar e para passear tinha sido brutalmente cortado ao meio pela grande parede escura de aço à prova de intempéries e foi finalmente removido ou, como a lista do catálogo diz, "destruído pelo Governo dos Estados Unidos, 1989."
Ainda que esta escala agressiva leve as capacidades de um museu até aos seus limites, o brutalismo de Serra está suficientemente bem representado no sexto andar pelas duas placas gigantes do Delineator (1974-1975), uma no chão e a outra, fazendo um ângulo recto, presa ao tecto, e pelas quatro robustas placas do Circuit II (1971-1984), enchendo a totalidade (do centro aos cantos) da enorme sala onde se encontram. Como o folheto do MoMA afirma, o Circuit II "cria um novo ambiente para o observador, que é forçado a mover-se através dos espaços criados pela obra".
Esta ideia curiosa, de obrigar o observador a andar de uma certa forma e conseguir, desta maneira, efectuar uma mudança ou uma exaltação da sua vida interior, nasce da antipatia que Serra sempre teve pela ideia de que a escultura é a criação de objectos visuais.
Duchamp, ao apresentar um urinol ou um suporte de garrafas como uma obra de arte, tornou-os "um fetiche para exibição". O que é pior e "mais perturbador" para Serra é que essa exibição "mantém a hierarquia do objecto e, como consequência, os objectos de arte tornam-se acessórios do estilo de vida".
O processo de observação é considerado como central - tal como os processos de içar, enrolar, dobrar e salpicar eram centrais nas primeiras incursões de Serra na arte. Como ele admite, de forma desarmante e epigramática, a respeito desta nossa era, "nem sempre os resíduos das actividades se qualificaram como arte".
Mas os gigantescos resíduos da sua actividade (e da dos operários alemães) no novo século, na sua sexta década de vida, qualificam-se certamente.
O segundo andar do novo MoMA, onde foi construída de raiz uma sala com um enorme pé-direito capaz de suportar pesos excepcionais para albergar as maciças construções e instalações da arte contemporânea, acolhe três das mais recentes obras-primas de Serra: Band (2006), uma parede contínua que serpenteia formando quatro espaços quase fechados; Torqued Torus Inversion (2006), duas variações posteriores da elipse torcida que está no jardim de esculturas; e Sequence (2006), dois S entrelaçados que definem um caminho sinuoso entre eles. Sequence completa de forma notável o programa antipictórico de Serra para a escultura. Pode-se passear ao longo dele, mas não se pode ver, enquanto até Band pode ser mapeado mentalmente. Serra explicou ao seu entrevistador Kynaston McShine: "Nos dois extremos temos a possibilidade de entrar por uma de duas aberturas.
Uma vai levar-nos à clausura do espaço interior, o outro conduz-nos ao longo de um caminho aparentemente sem fim entre duas paredes. Não é possível lembrar ou reconstruir uma memória definida do caminho curvilíneo que liga uma espiral à outra, nem do espaço interior das duas espirais. Mesmo depois de ter andado lá dentro, não é possível mapear a peça."
E de facto é assim. Duas deambulações não permitiram que me sentisse mais conhecedor. As paredes inclinam-se para dentro e para fora, por cima e à nossa volta e cruzamo-nos com outros transeuntes divertidos em espaços que se estreitam (produzindo uma leve ansiedade) ou se alargam pacificamente (como pátios interiores) mas nem sequer as vívidas e variáveis extensões de ferrugem, que incluem algumas manchas que fazem lembrar míldio, tornam o passeio uma experiência predominantemente visual. Ao mesmo tempo que fazia um esforço para ver o caminho enquanto avançava, deixei os meus olhos desfocarem a imagem e vi o ângulo de aço dobrado à minha frente mudar de forma num movimento animado em câmara lenta. Como Serra diz, "parece que estamos a ser submetidos a uma atracção gravitacional acelerada". O ensaio de John Rajchman, intitulado Serra's Abstract Thinking explica: "A abstracção de Serra não é uma extracção eidética das formas dos objectos. É experiencial e experimental, uma grande máquina que afecta os nossos corpos e os nossos cérebros directamente, em vez de nos "dirigir" indirectamente através daquilo que representa."
A imagem de máquina é recorrente: "As suas obras tornam-se gigantescos exercícios mentais de aço, grandes máquinas enferrujadas nas quais as coordenadas da percepção natural ou habitual estão baralhadas e desfeitas - mas de tal maneira que nos deixam estranhamente refrescados quando saímos." O processo não podia ser explicado de forma mais clara.
Só depois de sairmos destes espaços engenhosamente desestabilizados é que surge a questão da desproporção. Será preciso recorrer a todo este aço para baralhar as nossas percepções habituais? O túnel fantasma ou a roda gigante da feira não poderiam provocar o mesmo efeito? E o cubismo e o surrealismo não fizeram exactamente isso há um século usando telas bidimensionais?
Será isto o capitalismo?
Estas "grandes máquinas enferrujadas", na majestade do seu peso e extensão, podem comparar-se às grandes estátuas que os homens ergueram a Buda, a faraós e à ideia de liberdade. Na ausência de qualquer conteúdo que conforte o público numa ideologia, o objectivo é - para citar Rajchman de novo - "um novo tipo de inteligência visceral", "um tipo de experiência normalmente fora do nosso alcance". Será isto suficientemente objectivo para uma forma de arte como a escultura em grande escala, que em geral se afasta da pura sensibilidade privada?
Antes de chegar à exposição de Serra, o visitante tem de passar por uma parede alta coberta por graffiti satíricos, da autoria do romeno Dan Perjovschi, dirigidos aos EUA e ao seu frívolo capitalismo. Como perguntava um dos visitantes que me acompanhava através da exposição de Serra, gesticulando ante os engenhosos, triunfais e luxuriantes grandes artefactos à nossa volta, "não será isto o capitalismo?"
Exclusivo PÚBLICO/The New York Review of Books
A escultura de Richard Serra: 40 anos
NOVA IORQUE Museum of Modern Art
Até 10 de Setembro de 2007