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"O verdadeiro artista ajuda o mundo ao revelar verdades místicas." A frase, inscrita num néon criado por Bruce Nauman em finais dos anos 60, pode ser verídica ou não. Em Turim, no Castello di Rivoli, propõe-se uma retrospectiva seminal dedicada aos trabalhos criados pelo artista nessa década
a Turim, dizem, é um dos vértices de dois triângulos ligados à magia: a branca (com Lyon e Praga) e a negra (com Londres e São Francisco). Na catedral encontra-se o Santo Sudário e, segundo a lenda, o Santo Graal foi enterrado debaixo da igreja da Grande Mãe de Deus, junto ao rio Pó. Há quem também afirme que as portas do inferno se situam na Piazza Statuto.
Cheia de arcadas, barroca, aristocrática, mística, a cidade é um dos centros da arte contemporânea - e do design - na Europa. Ali se encontra a Fundação Mario Merz - um dos nomes centrais da arte povera - e a Fondazione Sandretto Re Rebaudengo, que é dirigida por Francesco Bonami, um dos mais prestigiados comissários italianos (foi responsável pela Bienal de Veneza, em 2003).
Nas imediações de Turim situa-se o Castello di Rivoli, hoje um museu de arte contemporânea, que propõe, até 9 de Setembro, uma das mais relevantes exposições deste Verão, A Rose Has no Teeth: Bruce Nauman in the 1960s.
Sabendo-se da história secreta de Turim, talvez seja exercício estimulante pensar que uma das obras marcantes do artista desse período é um néon em espiral no qual se pode ler The true artist helps the world by revealing mystic truths (1967) ("O verdadeiro artista ajuda o mundo ao revelar verdades místicas"), uma frase sobre a qual o artista se mantém ambíguo: "É verdade e mentira simultaneamente. Depende da forma como a interpretas e quão seriamente te levas. Para mim é um pensamento muito forte." (in Brenda Richardson, Bruce Nauman: Neons, Baltimore Museum of Art, 1982).
Este trabalho, uma fonte de luz vermelha (a espiral) e azul (a frase), uma frágil e elegante fonte de luz e de saber, descreve um movimento infinito na direcção de um centro inalcançável, porque deixado em aberto. Ali ecoam outras peças de Nauman, como The true artist is an amazing luminous fountain (1966-68) e Self-portrait as a fountain (1966-67), eles próprios inspirados pela duchampiana Fountain, esse ready-made, um urinol, considerado a obra de arte mais influente do século XX, com assinatura do pseudónimo R. Mutt e eternizado pela fotografia de Alfred Stieglitz. Em 2005, na Donald Young Gallery, em Chicago, o artista norte-americano revelou outra das variações do tema da "fonte": a instalação One hundred fish fountain.
Marcel Duchamp é, aliás, uma das referências centrais da obra de Nauman, nomeadamente nas questões relacionadas com a linguagem (como os jogos de palavras, das quais se destaca o uso, no caso do francês, da contrepèterie, a troca de letras ou sílabas que produz palavras burlescas ou sem sentido).
A Rose Has no Teeth (1966) é não só o nome da mostra, mas também o título de uma pequena placa em chumbo que Nauman fez para o tronco de uma árvore. Com o tempo, este objecto devia desaparecer, tapado pela casca. Trata-se também da primeira peça de texto do artista - a frase é de Ludwig Wittgenstein e consiste no culminar de uma série de operações da lógica que levam ao absurdo: "Uma rosa não tem dentes." Problemas relativos à relação entre o objecto artístico e a natureza - a arte, nomeadamente a pública, não pode competir com esta - ou próximos da filosofia analítica constituem mesmo núcleos fundamentais das investigações desenvolvidas pelo artista.
Beckett omnipresente
No Castello di Rivoli, o percurso expositivo desenvolve-se em extensão, ou seja, ao longo de um piso, no qual se vão sucedendo trabalhos que revelam, a cada instante, as suas verdades de um modo rude, áspero, por vezes violento. Esse conteúdo de verdade centra-se sobretudo no corpo de Nauman, usado como modelo, instrumento de medição e meio de comunicar lugares e experiências transitórios. O habitar do atelier, território de performances e de exercícios que colocam problemas relacionados com o equilíbrio - neste particular, as propostas coreográficas de Ann Halprin são fundamentais para o artista - e outras actividades físicas, por vezes repetitivas, ali desenvolvidas - marcadas pela música minimal de La Monte Young e de Steve Reich - foram registados em filme e em vídeo, constituindo hoje poderosos documentos de uma época onde se sente ainda a omnipresença de Samuel Beckett - o famoso Beckett Walk (1968) A exposição inclui esculturas, desenhos, filmes, peças de som, néons - como o primeiro realizado por Nauman, intitulado Neon templates of the left half of my body taken at tem-inch intervals - e o Performance Corridor (1969), espaço que, ao ser percorrido, não só nos separa do mundo, mas também obriga, devido à sua estreiteza, a um pequeno deslocamento do corpo. É como se essa viagem entre duas paredes de um cenário consistisse numa experiência da clausura, uma situação próxima das realizadas em laboratórios onde se testa o comportamento animal.
A Califórnia
Na célebre instalação Get out of my mind, get out of this room, o espectador é confrontado, numa pequena divisão situada no percurso expositivo, com uma voz que repete até à exaustão esta frase ambígua, que também dá título à peça. Aquele que repete o texto, Nauman, fá-lo para si ou, pelo contrário, dirige-se a quem invade o espaço? Espécie de mantra, esta obra continua a ecoar na cabeça de quem com ela se confronta durante longo tempo. É como se cada um passasse a ocupar o lugar de um outro e consigo transportasse o desejo de se ver livre de um fantasma - quando a sala está vazia, com quem comunica a voz, ela própria imaterial, fantasmática?
Proveniente da Universidade da Califórnia, Berkeley Art Museum and Pacific Film Archive, comissariada por Constance M. Lewallen, esta exposição seminal tem também como objectivo sublinhar a importância de um lugar, o Norte da Califórnia, onde Nauman formou e sedimentou o seu vocabulário estético, entre 1964 e 1969.
A curadora nota que, quando o artista chegou àquele estado da costa oeste americana, já possuía muitos dos ingredientes que alimentaram a sua prática. Nauman frequentou e aproveitou com particular intensidade a diversidade de cenas artísticas californianas, das artes visuais à dança, passando pela música: "A literatura (Samuel Beckett, Vladimir Nabokov, Malcolm Lowry, e Alain Robbe-Grillet, em particular) e a psicologia da Gestalt também contribuíram para o seu fazer artístico."
A Rose Has no Teeth: Bruce Nauman in the 1960s ITÁLIA Turim. Castello di Rivoli. Tel.: 00390119565280. De 3ª a 5ª, das 10h às 17h; de 6ª a dom., das 10h às 21h. Até 9 de Setembro.