Francisco Araújo, mecânico e amigo do fabuloso Joaquim Agostinho
Esteve em 42 Voltas a Portugal e ainda hoje, com 72 anos, acompanha a competição. Retrato de um amante das bicicletas que chegou a ser o melhor mecânico do mundo nas duas rodas
Francisco Araújo, que apenas foi corredor amador, não se limita a gostar de ciclismo. Tem uma parte da história em casa. Com o dinheiro que ganhou, especialmente em França, mas também na convivência com grandes craques - "em 1971, fiz de mecânico do Merckx quando ele veio a Portugal e deu-me dois contos e tal, quando eu ganhava 3,5 no Sporting" -, conseguiu construir uma casa em Alverca e logo planeou um sótão para fazer de museu. "Tenho 17 mil recortes de jornais, 163 camisolas e muitos bonés, retratos, fotografias, medalhas, emblemas e bidões de água." Um espólio que leva muita gente do ciclismo a consultar os registos de Francisco Araújo. "O Peixoto Alves [ganhou a Volta em 1965] foi lá no ano passado e foi viver o meu dossier desse ano. Chorou a recordar as coisas antigas." Na sala está ainda uma reprodução em esferovite do Alpe d"Huez, para homenagear a vitória de Agostinho em 1979.
a O pai era barbeiro e bem tentou que o filho lhe seguisse a arte. Só que o pequeno Francisco tinha outra paixão. Um objecto "mágico", com duas rodas. Sempre que podia, fugia para a loja de bicicletas ao lado da barbearia. E assim nasceu uma ligação forte para toda a vida. Francisco Araújo começou aos 13 anos e ainda hoje o seu cartão de visita o apresenta como mecânico internacional de bicicletas. Uma descrição verdadeira, ainda que insuficiente. O Aráujo de Sacavém, como lhe chamam, é mais conhecido como o mecânico de Joaquim Agostinho. Acompanhou durante 16 anos o mais mítico dos ciclistas portugueses em Portugal e no estrangeiro.
Francisco Araújo, de 72 anos, é uma personagem querida do pelotão, onde conhece toda a gente. À sua passagem, todos o cumprimentam. "Olha o Araújo de Sacavém", costumam gritar. Benefícios de quem já percorreu o país em 42 Voltas a Portugal, quase sempre como mecânico de equipas como o Sporting - o clube do coração -, Águias Clock, Coelima, Olhanense Aqualine ou Ruquita Feirense. Antes da reforma, ainda integrou, entre 1991 e 2004, o apoio neutro, o carro da organização da prova que ajuda os ciclistas quando falta a assistência da equipa. E agora, embora siga a Volta apenas como espectador, ainda tem um papel activo. É ele quem trata, em casa (Alverca), o material que a organização usa no carro de apoio. Antes da Volta põe tudo em ordem e no final volta a limpar as bicicletas: "O Joaquim Gomes [director da Volta] pediu-me para o fazer e eu gosto, porque assim continuo actualizado."
Francisco Araújo fez a primeira Volta a Portugal em 1957. Desse ano ainda recorda a história de uma etapa que acabou na Guarda já era noite. Pedro Polainas (Sporting) partiu a bicicleta. O mecânico deu-lhe a suplente, foi a uma oficina de automóveis concertá-la e devolveu-a ainda a tempo de Polainas ganhar a tirada.
A birra da coca-cola
A relação com Joaquim Agostinho começou em 1968 e Araújo seguiu sempre o ciclista de Torres Vedras. É também por isso que esteve em seis edições da Volta a França e em seis da Volta a Espanha. "Em 1980, ganhava 14 contos no Sporting e pedi ao João Rocha [presidente do clube] para me deixar ir com o Agostinho para a França. Fui ganhar 130 contos, mais comida, casa e dez por cento dos prémios." Nada de extraordinário para um mecânico que o jornal L"Equipe considerou o melhor em 82 e 83.
De Agostinho, lembra um ciclista de eleição e um homem "bondoso e teimoso", duas qualidades que resume numa só história. "Uma vez, no Tour de 1975, o Agostinho pediu uma coca-cola ao Raphael Giminiano [director desportivo do Sporting] e este recusou, dizendo que só no fim da etapa. O Agostinho até ameaçou parar, mas eu convenci-o a continuar. Mas não falou mais com o Raphael e fui eu que tive de passar as ordens, como aconteceu no contra-relógio quando o Giminiano queria que o Agostinho passasse o Poulidor. Só que o Agostinho não passou. No fim, disse-me que teve vergonha de passar o Poulidor [o eterno segundo do Tour no tempo de Anquetil e Merckx]. Ele era assim muito bondoso."
A teimosia, diz Araújo, também poderá ter custado a vida a Agostinho, que após a queda na Volta ao Algarve de 1984 não quis ir logo ao hospital. Morreu dias depois. É a recordação mais triste de Francisco Araújo, que ainda assim não se arrepende da vida que escolheu: "Quem me tira o ciclismo, tira-me tudo."