Bernd Becher (1931-2007)
Morreu uma parte da dupla que quis dar aura aos monos da Revolução Industrial
Em fotografia, quando se fala do apelido alemão Becher nunca se fala só de um nome, fala-se de dois: Bernd e Hilla, marido e mulher. Mesmo quando o assunto é a morte de um deles (há pouco mais de um mês, Bernd, aos 75 anos, não resistiu a uma operação ao coração), torna-se difícil isolar acontecimentos, passagens da vida, opiniões, pormenores, que digam respeito a apenas metade desta dupla de artistas que andou a maior parte da vida nos locais mais inóspitos de grandes cidades e zonas industriais. Objectivo único: fotografar depósitos de água, tanques de gás, passadeiras de areia, altos-fornos, moinhos, armazéns, elevadores e torres de carvão, silos, casas de trabalho, refeitórios, fornos de cal e fábricas de cascalho.Bernd e Hilla Becher formaram uma parceria rara na arte, que durou quase 50 anos. Durante este período, foram-lhes colando vários rótulos essencialmente relacionados com o labor de "obsessão apaixonada" com que encararam aquilo que se tornou o projecto de uma vida. Os resultados dessa empresa, de importância e repercussão mundiais, sobrepõem-se quase sempre às perguntas mais terra a terra ligadas às razões pelas quais um casal, logo depois de se ter juntado, no fim dos anos 50, decidiu optar por uma vida seminómada à procura de formas, materiais e construções condenados à extinção, primeiro na Alemanha e em vários países da Europa Central, e depois nos Estados Unidos.
Porquê? Por que é que alguém decide dedicar a maior parte da sua existência a um projecto que, à primeira vista, não leva a lado nenhum, tirando a acumulação de mais uma torre, mais um silo, um tanque, um depósito?... O professor de arte Blake Stimson, que estudou os movimentos fotográficos dos anos 50, arrisca a resposta em três palavras: "compromisso" para com um ponto de vista, um programa estético; "prazer" em captar o mundo; "explicação" de uma realidade até aqui esquecida ou incompreendida.
Em 2005, durante uma conversa a três com Cornelius Tittel, editor de Cultura do jornal alemão Die Welt, a propósito de uma grande exposição retrospectiva no Hamburger Bahnof de Berlim, Hilla dá mais uma achega: "É claro que também era uma aventura". Tittel, no mesmo artigo que escreveu para o Welt, antes da abertura da exposição, enfatiza este aspecto menos académico e mais humano do projecto do casal Becher, lamentando os lugares-comuns que se foram construindo à sua volta. "Ninguém falará das esperas intermináveis [pela luz ideal], das fugas por um triz ou da loucura da sua arte", lamentou.
Esta longa viagem pelas entranhas da indústria pesada foi "uma aventura", como Hilla reconheceu, mas tornou-se também, a determinado ponto, uma "ideologia artística". Bernd concorda com esta visão, ainda que ressalte o carácter não intencional dessa realidade. "É verdade. À medida que o tempo passava, desenvolvemos uma espécie de ideologia sem nunca a formularmos como tal. O que fizemos foi documentar as construções sagradas do calvinismo. O calvinismo rejeita todas as formas de arte e, por isso, nunca desenvolveu a sua própria arquitectura. Os edifícios que fotografamos estão directamente ligados a este pensamento puramente económico."
Bernd e Hilla Becher anularam entre si a noção de autoria. Não interessava quem disparava, porque cada um já sabia o que tinha sido previamente estudado. A assinatura individual é suprimida a favor da concretização de um meticuloso programa de documentação fotográfica, minimalista e conceptual, inspirado nos trabalhos de aproximação sistemática e pseudocientífica dos anos 20 e 30 de Karl Blossfeldt, Albert Renger-Patzsch e, particularmente, Angust Sander, um movimento que ficou conhecido como Novo Objectivismo, onde se enquadra a obra de Bernd e Hilla. "As imagens dos Becher, no fundo uma forma sistemática e tipológica de fazer arqueologia industrial, surgem como metáforas, símbolos: uma imagem é uma imagem, o que vale é a percepção, desvincula-se do contexto e do próprio objecto", explica Maria do Carmo Serén, historiadora e colaboradora do Centro Português de Fotografia.
De combi pela Europa
Quando Bernd Becher se apercebeu que as instalações industriais de Siegen - uma cidade industrial da Vestefália, onde nasceu, em 1931 - estavam a desaparecer, começou a desenhá-las, como estudante de Pintura. A fotografia de uma siderurgia reproduzida num jornal da região fascinou-o de tal maneira que resolveu ir ao próprio local desenhá-la. O problema é que as demolições eram mais rápidas do que a precisão que pretendia no seu traço e, por isso, decidiu usar a fotografia com a simples intenção de registo. Descobriu então que estas imagens, ainda captadas com uma câmara de pequeno formato, de 35 mm, lhe revelavam o detalhe e a forma que queria encontrar para os seus desenhos. A mudança de suporte foi imediata. Bernd conheceu Hilla em 1957, numa agência de publicidade em Dusseldorf. Trabalhavam para sustentar os seus cursos na Staatliche Kunstakademie. Assim que perceberam o seu interesse comum pela imagem fotográfica, decidiram partir em busca de terrenos industriais nos vales do Ruhr. Numa carrinha Volkswagen transformada em casa, estúdio e parque infantil - o filho Max nasceu em 1964 -, calcorrearam a região industrial mais antiga da Alemanha. Passaram a fronteira para a Bélgica, a Holanda, Luxemburgo e França. Mais tarde, chegaram à Inglaterra e ao País de Gales e depois viajaram para os EUA. Por causa da paranóia anti-alemã no pós-guerra, em muitas ocasiões o casal foi suspeito de espionagem e de estar a investigar alvos para ataques militares.
O método formal e técnico de captura das imagens dos Becher, agora com câmaras de grande formato, estava bem definido: fotografar a preto e branco; enquadrar o objecto no centro; esperar por um céu neutro, nublado; evitar grandes contrastes e sombras dramáticas; não fazer retoque; evitar o acidental; optar por uma grande profundidade de campo; encontrar uma posição que garanta o mínimo de distorção; nunca mostrar trabalho ou presença humana; dar a construções semelhantes a mesma proporção na fotografia. A maneira de dar a ver o seu trabalho também: com raras excepções, formar grelhas de 9, 12 ou 15 imagens de formato 40x30 ou 50x60 cada; dividir as imagens por famílias, tendo em conta a função ou material dos edifícios; agrupá-las no mesmo conjunto em molduras iguais.
Esculturas anónimas
No fim dos anos 50, ainda antes de a UNESCO começar a considerar os vestígios da revolução industrial como património da humanidade, a dupla Becher adoptou esta frieza arquivística para registar todo o tipo de construções desta "arquitectura" funcionalista que, pouco a pouco, era reconvertida ou destruída, muito por culpa de um novo paradigma económico que dava os primeiros passos em torno de uma Europa unida - a então CEE. A determinação e o rigor com que enfrentaram a empreitada começaram a dar frutos no início dos anos 70, quando, depois de uma série de exposições em várias galerias europeias, publicam uma obra seminal na história da Fotografia - Anonymous Sculptures: A Typology of Technical Construction (1970). Veio então o reconhecimento internacional com convites para mostrar estas "esculturas anónimas" nos Estados Unidos, Inglaterra e Holanda. "Bernd e Hilla Becher são dois nomes fundamentais do panorama contemporâneo da fotografia", diz Sérgio Mah, comissário do PHoto España. "Em primeiro lugar, pela singularidade de um modus operandi que assentou em rigorosos parâmetros técnicos e formais. Depois porque a sua obra foi determinante para a crescente revalorização das competências artísticas da fotografia documental no contexto das artes plásticas."Em 1990, a Bienal de Veneza reconheceu o seu mérito em tornar "esculturas anónimas" em obras de arte e atribuiu-lhes o Leão de Ouro na categoria de... Escultura. Seguiu-se o Prémio Erasmo, na Holanda, em 2002. A obra dos Becher foi ainda reconhecida, em 2004, com o Prémio Hasselblad, um dos mais importantes prémios de Fotografia do mundo.
Em Portugal, por onde nunca passou uma grande exposição dos Becher, o seu trabalho está representado nas mais importantes colecções privadas de fotografia - Colecção BES, Berardo, Serralves e Ellipse Foundation. Uma presença que, na opinião de David Santos, professor e crítico de arte, é "essencial para entender e enquadrar não só a experiência fotográfica dos anos 70 (...) como ainda a produção que hoje domina o meio artístico internacional".
Os discípulos
A par do seu projecto de criação de uma nova gramática visual para uma interpretação estética dos monos herdeiros da Revolução Industrial, Bernd e Hilla levaram a cabo uma importante actividade como professores. Hilla fundou a primeira cadeira de Fotografia da Sattlichen Kunstakademie, em Dusseldorf, no fim dos anos 50. Bernd só começaria a dar aulas em 1976. O casal só se retirou em 1996, depois de ensinar os maneirismos da fotografia documentarista conceptual a várias gerações de estudantes.Em fotografia, quando se fala de Bernd e Hilla, nunca se fala só de uma dupla de fotógrafos e professores alemães. Fala-se de um grupo de artistas que, através do método showing by doing (mostrar, fazendo) dos Becher, souberam usar a fotografia em prol dos seus projectos, sempre inspirados no rigor conceptual dos seus mestres. Hoje, estes nomes estão entre a fina flor da arte contemporânea: Candida Höfer, Andreas Gursky, Thomas Struth, Thomas Ruff, Axel Hütte e Simone Nieweg. "Bernd Becher e a sua mulher, Hilla, foram professores sem serem professores. Com eles não se tratava só de fotografia, mas sim do tempo e do contexto em que vivemos. Bernd e Hilla fizeram com que encontrasse o meu caminho", disse ao P2 Candida Höfer.
Quando Cornelius Tittel pediu a Bernd uma explicação para o sucesso dos seus alunos, a resposta veio acompanhada com um gesto, como quem desvaloriza esse facto: "Havia por ali muito talento à solta. O resto foi coincidência. Tudo o que fizemos foi voltar ao tempo da fotografia de precisão, que é muito superior ao olho humano". Como se fosse assim tão simples.
Depoimentos completos de Maria do Carmo Serén, David Santos e Sérgio Mah sobre os Becher e post sobre um encontro com a exposição Tipologias de Edifícios Industriais (Berlim, 2005) em http://blogs.publico.pt/artephotographica/