Guiné-Bissau, o primeiro narco-Estado de África
O país esquecido é o principal ponto de passagem da cocaína entre
a América Latina e a Europa, onde chega através de Portugal
a Um manto caiu sobre a Guiné-Bissau, sobre as suas pessoas, as suas casas, as suas estradas de terra, os seus campos verdes depois da passagem das chuvas, os seus sonhos de país independente. Se tivesse cor, esse manto teria a cor de um pesadelo. Cor de chumbo? Ou seria totalmente branco? Branco puro. De cocaína. Sem cor, seria como um manto de silêncio. Invisível. Porque falar do tráfico de droga na Guiné-Bissau - que se tornou na principal porta de entrada da cocaína da África Ocidental - é correr riscos. Nas últimas semanas, activistas e jornalistas, que denunciaram a suposta conivência de figuras do poder com este tráfico, foram ameaçados. Magistrados sofreram pressões para não investigar pessoas envolvidas nos negócios.
Após as duas grandes apreensões de cocaína feitas no país, em Setembro de 2006 e em Abril de 2007, os detidos, entre os quais militares e civis, guineenses e estrangeiros, foram todos libertados.
O director da Polícia Judiciária, Orlando António Silva, cujo trabalho contra os barões da droga fora elogiado internacionalmente, foi demitido em Junho. E os 670 quilos de cocaína da primeira apreensão de Setembro desapareceram - depois de terem sido guardados num edifício do Estado guineense, após uma intervenção dúbia dos militares na acção de apreensão da polícia.
Depois da guerra de 1998-1999, que se seguiu aos anos de regime autoritário do general Nino Vieira, depois das sucessivas crises políticas e lutas fratricidas entre facções militares, a Guiné-Bissau, que viu regressar Nino Vieira à presidência nas eleições presidenciais de Junho de 2005, volta agora a ter medo: a violência pode regressar se surgirem grupos armados em defesa de interesses locais ligados às redes internacionais do tráfico de droga. Mesmo se o Governo se diz pronto a combater o problema. Na semana passada, apresentou um Plano de Emergência de Combate ao Narcotráfico para reduzir a possibilidade de o país ser utilizado para esse fim.
Chocados com a dimensão
O caso tem sido relatado pela imprensa internacional. Fontes dos serviços secretos ocidentais disseram recentemente ao Belfast Telegraph que encontraram na Guiné-Bissau "o mais grave problema de tráfico de droga com que alguma vez depararam no continente africano" e admitem estar perplexas com a magnitude do problema. "Quanto mais sabemos, mais ficamos chocados com os números envolvidos", disse a este jornal um responsável da Agência de Aplicação das Leis Antidroga dos EUA na Europa. Os números não são conhecidos, mas as mesmas fontes dizem que é bem possível que, todas as noites, cheguem à Guiné-Bissau 800 quilos de cocaína em aviões que atravessam o Atlântico.
A Interpol, por sua vez, estima que passem todos os anos pela África Ocidental 200 a 300 toneladas de cocaína, as mesmas que passarão pela Guiné-Bissau, com destino à Europa. Portugal e Espanha são os principais pontos de entrada em território europeu. Bissau está assim no centro daquilo que um responsável da Interpol qualifica em informações à revista TIME de "importante esquema envolvendo suspeitos nos três continentes - África, Europa e América Latina" e "um dos maiores geradores de dinheiro ilícito no mundo".
O quadro ideal
Na actual tendência em que a África Ocidental ganha uma importância crescente nas rotas internacionais do tráfico de cocaína, a Guiné-Bissau surge no topo, ocupando o lugar de principal ponto de trânsito da droga proveniente da América Latina.
Sem infra-estruturas, sem instituições a funcionar, sem recursos, um Governo fraco e vastas zonas (também no arquipélago dos Bijagós) deixadas ao abandono, a Guiné oferece o quadro ideal para os traficantes de droga pousarem os seus aviões de grande porte carregados da cocaína, da América Latina para a Europa, onde o consumo triplicou nos últimos dez anos, ao contrário do que acontece nos EUA, onde diminuiu, segundo dados da ONU.
"Os narcotraficantes encontraram um lugar ideal para transportar a droga para a Europa utilizando a Guiné como um trampolim", diz por telefone a partir de Bissau o professor e cientista Aladje Balde, responsável da organização não governamental Plan International. "Para isso estão envolvidos muitos estrangeiros que vivem aqui. Esta presença de latino-americanos, sobretudo colombianos, aumentou muito no último ano."
No quinto país mais pobre do mundo, segundo a ONU, circula muito dinheiro. Longe de ser em benefício das populações. Estas habituaram-se a ver passar carros de alta gama nas ruas de Bissau, onde se erguem mansões de figuras ligadas ao Governo que enriquecem rapidamente.
Cumplicidades e benefícios
Todos desconfiam, quase todos têm a certeza: se o país está a ser classificado como o primeiro narco-Estado de África não é apenas porque a Guiné-Bissau partilha algumas características dos chamados Estados falhados; é também porque pessoas bem colocadas no topo da hierarquia do Estado são cúmplices e beneficiam desse tráfico. As que se opõem são ameaçadas - entre activistas, jornalistas ou funcionários do aparelho do Estado que tentam denunciar o que se passa.
A Polícia Judiciária guineense apenas tem 70 agentes. E no país não existe uma prisão, apenas centros de detenção colocados nas esquadras. A polícia não dispõe de carros próprios - por isso recorre a táxis - nem algemas ou armas que cheguem para todos os seus agentes. Não há barcos a vigiar as costas. Diz-se em Bissau que a própria Marinha guineense garante livre passagem aos barões da droga.
Na sua tomada de posse, em Abril, o primeiro-ministro Martinho N"Dafa (que substituiu Aristides Gomes) prometeu combater a corrupção e o narcotráfico para voltar a dar credibilidade ao país. Mas o problema mantém-se e aumenta, como confirma Antonio Mazzitelli, responsável da Organização das Nações contra a Droga e o Crime (UNODC, na sigla em inglês) para a África Ocidental, baseado em Dacar, no Senegal: "As informações de que dispomos parecem indicar que aviões e barcos continuam a chegar e a descarregar quantidades muito importantes na Guiné-Bissau."
Os aviões aterram em pistas de terra batida (já existentes ou entretanto construídas) no Sul do país. Aí perto estão estacionados barcos ou avionetas que transportam a cocaína para o arquipélago dos Bijagós. E quem manda neste paraíso de mais de 50 ilhas, algumas desabitadas, com espaço para os esconderijos e os armazéns entretanto construídos, são os barões da droga.