Lee Hazlewood O crooner arrumou as botas
Cantor de charme ambíguo, cowboy da country-pop, fazedor de êxitos para os outros, o americano Lee Hazlewood está para a música como os filmes de série B estão para o cinema. Hazlewood morreu - logo agora que o bigode voltou a estar na moda. Por Kathleen Gomes
a Lee Hazlewood está a beber whisky com a eternidade. É das poucas coisas oficiais numa vida nada (mas mesmo nada) oficial: Lee Hazlewood, crooner de garganta funda, Sinatra de meia-tigela, Casanova da country-pop, morreu este sábado e só não é segredo porque meia-dúzia de gente e ainda menos imprensa fizeram o seu obituário.
Imaginamos o ponto de interrogação: Lee quê? O respeitável diário britânico The Telegraph não esteve com meias-tintas e descreve Hazlewood "como uma das mais influentes figuras da pop do século XX". Tendo em conta que nem a pop nem o século XX carecem de "figuras influentes" e que a história oficial não sabe o que há-de fazer com ele, não parece grande definição - soa, antes, como uma enésima tentativa de reabilitação que Lee certamente desdenharia. Mais certeira, e abençoada pelo próprio, é a descrição que se lê na sua página no MySpace: "um dos filhos-da-mãe da indústria musical mais inventivos, inspirados e teimosos". Boa frase para uma lápide.
Hazlewood está para a música como os filmes de série B estão para o cinema. Tarantino nunca o usou nas suas bandas sonoras mas usou o que havia de mais parecido: Nancy Sinatra, que formou com Hazlewood um dos pares mais improváveis (e acesos) da pop e não era só pelo bigode farfalhudo dele e o falso cabelo loiro dela.
Lee tinha 78 anos acabados de fazer e sabia que ia morrer. Há cerca de três anos fora-lhe diagnosticado um cancro renal e sabia-se que tinha os dias contados. O americano Lee Hazlewood, que nunca fez nada do que seria de esperar, editou um álbum, o seu último, no final do ano passado. Cake or Death (Bolo ou Morte), chamava-se, e se era uma despedida assumida, era mais caprichosa do que solene. A última coisa que aí cantava era: "In this place they call forever / Will there be any songs to sing?" ("Nesse lugar a que chamam para sempre / Haverá canções para cantar?") Por esta altura, ele já deve saber.
Foi a segunda vez que Lee Hazlewood morreu. A primeira morte foi quase um hara-kiri cometido nos anos 70: Lee, que enriquecera a produzir êxitos em cadeia para terceiros e erguera carreiras que não iam a lado nenhum, não conseguia vender os seus próprios discos a solo, e eclipsou-se. O mundo não estava de feição para as coboiadas de Lee nem para a sua vagabundagem sonora, à boleia da country, música ligeira, folk e do psicadelismo. Muito provavelmente, constatou que os seus direitos de autor enquanto produtor e compositor chegariam para o tipo de vida que ambicionava - qualquer coisa como uma piscina, um bom stock de whisky e nenhuma moradia fixa. Sim, pode dizer-se que Lee Hazlewood desistiu. Mas foi só ao 17º álbum.
Ele estava lá
Barton Lee Hazlewood nasceu a 9 de Julho de 1929 numa pequena vila do Oklahoma, filho de um explorador de petróleo e de uma mãe com sangue índio - pelo menos, assim rezam as crónicas. Teve uma infância bastante nómada, entre o Texas e o Arkansas, estudou medicina até ser chamado para a tropa, vestiu a farda no Alasca e na guerra da Coreia, onde foi animador numa rádio militar. Decidiu abandonar os estudos e trabalhar na rádio. Foi dos primeiros a pôr Elvis no ar, quando Elvis ainda era, para os padrões da época, "weird", bizarro. Sim, Lee estava lá quando o rock estava a nascer, quando era rock "n"roll, e teve um papel activo na sua definição. Colaborou com o histórico guitarrista Duane Eddy, desenvolveu com ele um som de guitarra - cavo e cheio de vibrato - que se tornou popular e que hoje damos por adquirido (digamos que são os avós de gente como Ry Cooder, por exemplo).
Começou a escrever canções que as editoras não compravam, por isso decidiu montar a sua própria produtora discográfica. Phil Spector, o lendário produtor, deu os seus primeiros passos com Hazlewood: bateu-lhe à porta dizendo que queria fazer discos, Lee deu-lhe uma banda em relação à qual não sabia o que fazer, e um pequeno orçamento. Ou seja, Hazlewood foi o mentor do homem que inventou o "muro de som", mas nunca reclamou nada por isso. Pelo contrário: em 1999, rebobinando a vida à revista francesa Les Inrockuptibles, dizia, a propósito de Spector: "Phil era um génio, eu não" e também "Os meus discos são uma merda ao lado dos de Spector. Eu sou um bom produtor, Phil é um artista."
Diz-se que Lee se preparava para abandonar a indústria musical - tinha 35 anos e já gravara o seu primeiro álbum a solo, Trouble is a Lonesome Town, para quase ninguém - quando lhe pediram para ver o que podia fazer com Nancy Sinatra, filha de um certo ícone, cuja carreira ameaçava nunca descolar. Lee não se limitou a escrever canções para ela: reinventou-a, fez dela a Dulcineia loira dos camionistas, transformou uma menina bem-comportada num tórrido objecto de desejo. Escreveu e produziu êxitos como These boots were made for walking (1966) e Some velvet morning (1967), que ainda hoje perduram com os temas mais conhecidos dele e dela, carregados de ambiguidade e sexo nas entrelinhas.
E, de repente, no início dos anos 70, Lee Hazlewood faz as malas e parte para a Suécia, onde continua a gravar até ao esquecimento (do mundo e, presumivelmente, dele). Mais de 20 anos depois, quando os seus LP originais atingiam preços proibitivos no mercado coleccionista, e uma geração de músicos de que ele nunca ouvira falar lhe presta culto - Nick Cave, Tindersticks, Jesus & Mary Chain, Pulp, Primal Scream, etc. -, Lee Hazlewood ressuscita. Os seus LP, que circulavam em edições piratas, são reeditados em CD na editora do baterista dos Sonic Youth, Steve Shelley. Lee volta aos palcos, volta aos discos, é redescoberto e descoberto. E, entre o entusiasmo e a adulação com que é recebido, é sempre o mais sóbrio e lúcido a falar de si próprio.
Há nele demasiada ligeireza, demasiado nonsense, demasiada excentricidade para ser levado a sério pelos cânones da seriedade; mas também há nele demasiada elegância e lirismo para cumprir as meras funções de guilty pleasure (não, não estamos perante um daqueles casos de "é tão mau que é tão bom"). É pouco provável que alguma vez ultrapasse o estatuto de pequeno culto, mesmo post-mortem. As suas duas vidas não chegaram para mudar isso.
Em Outubro do ano passado, em entrevista a um dos seus músicos-admiradores da nova geração, o ex-guitarrista dos britânicos Pulp Richard Hawley, no suplemento musical do Observer, Hazlewood falou sobre a sua doença: "Não há cura, mais tarde ou mais cedo vamos desta para melhor. Mas, que raio, tive 77 anos de diversão, isso não me chateia tanto quanto outras coisas."
Vai outro whisky?